Justiça

Adilson Moreira: ‘Twitter explora economicamente racismo e misoginia?’

Autor de representação de movimentos negros contra o Twitter no MPF fala com exclusividade a CartaCapital

Apoie Siga-nos no

Recentemente, a escritora Djamila Ribeiro fez um boletim de ocorrência por ameaças à sua família. Uma pessoa mandou uma mensagem de texto a ela e sua filha, afirmando saber ela onde morava. A ameaça chegou após dias de Djamila ocupar os “trending topics” do Twitter, empresa de mídia na qual não possui conta. Djamila aponta que em nenhum momento a empresa entrou em contato com ela para que se defendesse e, ao mesmo tempo, auferiu lucro no que considerou a “exploração econômica do racismo e da misoginia”. Além disso, apontou estudos e pesquisas que comprovam que as mulheres negras são o alvo principal de ataques nas redes sociais.

 

A tese de exploração econômica do racismo e da misoginia decorre dos estudos do professor doutor Adilson Moreira, autor de “Racismo Recreativo”. Moreira foi o coordenador da equipe jurídica que representou a empresa no Ministério Público Federal por dano moral coletivo às mulheres, como também para implementação de regras e condutas com vistas ao combate à discriminação. A representação contou com movimentos negros, como a Unegro, a Coordenação Nacional de Articulações Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Mahin Organização de Mulheres Negras, além de Djamila Ribeiro.

Segundo pesquisa da Anistia Internacional, mulheres negras estão mais propensas a receber “tweets problemáticos” em 84% comparadas a mulheres brancas. A organização destacou essa rede social como um ambiente particularmente tóxico para mulheres negras. Outro ponto destacado na representação é a tese de doutorado de Luiz Valério Trindade apresentada na Universidade de Southampton, no Sul da Inglaterra, na qual o pesquisador verificou que as mulheres pretas são o principal alvo do discurso de ódio nas redes. Segundo as pesquisas de Trindade, tal fenômeno decorre do incômodo que a ascensão e protagonismo delas causa em uma sociedade racista e machista.

Em entrevista a CartaCapital, Moreira explica os fundamentos da ação, o dano à saúde mental da população negra decorrente desses ataques, como também a falta de interesse da empresa de rede social em combater essa discriminação. Confira:

CartaCapital: Quais são as principais solicitações deste pedido enviado à procuradoria, juridicamente, como ele está fundamentado?

Adilson Moreira: Basicamente, solicitamos que essa empresa crie mecanismos internos efetivos para evitar o dano moral e material de caráter coletivo causado a minorias, principalmente a mulheres negras, o grupo mais afetado pela proliferação de discursos de ódio nas redes sociais. Esse controle não pode ser feito apenas quantativamente; ele deve ser feito principalmente de forma qualitativa. Também solicitamos que a empresa crie meios para cooperar de forma mais efetiva com as autoridades policiais para que os responsáveis pela propagação de discurso de ódio sejam devidamente identificados e punidos. Quanto ao ataque veiculado historicamente na plataforma, com impacto desproporcional sobre as mulheres negras, e, ainda, considerando o lucro auferido pelo Twitter nesse cenário, bem como a negligência na criação de mecanismos que inviabilizem essa prática, requeremos uma indenização por dano moral coletivo a ser destinado a um fundo de combate ao racismo.

CC: Há um corpo de advogados que está tocando este documento junto com o senhor? Que outros profissionais fazem parte da equipe jurídica?

AM: Somos uma equipe de três advogados. Eu, Paulo Iotti e Djeff Amadeus. Contamos também com o apoio das equipes jurídicas das organizações que também ingressaram na representação.

CC: De que forma a plataforma do Twitter contribui para a permissividade da disseminação do ódio contra as mulheres negras?

AM: A circulação de fatos inverídicos, de estereótipos raciais, de ataques pessoais a mulheres negras nas redes sociais é um tipo de ação coordenada que tem o propósito de reproduzir a animosidade contra elas. Atribuir características negativas a pessoas negras é uma prática comum na sociedade brasileira, é algo que aumenta o interesse pela circulação de tópicos em redes sociais, processo que garante lucros significativos a empresas que oferecem serviços de interação social porque elas ganham dinheiro a partir dos anúncios que aparecem quando pessoas acompanham trocas de mensagem. Quanto mais a “polêmica” vende, mais resultados positivos a empresa apresenta a seus anunciantes. Essa empresa não tem um serviço interno responsável pelo monitoramento da veracidade das informações circuladas por seus usuários, como também não há nenhuma política de contraditório e reparação pelos danos à reputação social circuladas pelos seus usuários. Essa empresa permite que informações inverídicas que fomentam o ódio contra minorias circulem livremente, o que pode prejudicar a vida das pessoas, o que pode ter consequências letais para membros desse grupo. A empresa alega que tem regras direcionadas ao controle do que pode ser dito, porém tais regras, que evidentemente estão omissas em relação a seus usuários, são ainda mais permissivas em relação a quem não usa e não tem o interesse em ser usuário na plataforma. Como diz meu colega na defesa Djeff Amadeus, seria como uma empresa de ônibus dizer que é responsável pelas regras dentro do veículo, que está em clara desconformidade com a legislação de tráfego, e nada tem de responsabilidade contra aqueles grupos sociais que estão sendo atropelados na rua.

CC: Esse raciocínio se aplica ao caso da menina vítima de estupro com informações confidenciais divulgadas na plataforma?

AM: Exatamente. Penso que aquele caso é emblemático: veja, estamos falando de uma pessoa que tinha histórico em ataques fora da legalidade, que está sendo acusada de ameaça, no caso ao ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, entre outros tantos casos de uso danoso das redes. Ainda assim, ela possuía uma conta na rede social e divulgou abertamente aos seus milhares de seguidores informações confidenciais e sensíveis sobre uma menina de dez anos de idade estuprada reiteradamente e que, por ser engravidada, estava sua família realizando os procedimentos burocráticos do aborto legal. O Brasil é um país onde, a cada dia, segundo informações do SUS, ao menos seis meninas realizam o aborto legal. A maioria delas são negras. Segundo uma pesquisa da Georgetown University, nos Estados Unidos, adultos tendem a achar meninas negras menos inocentes e mais entendedoras de “assuntos adultos” como sexo, quando comparadas a meninas brancas. A divulgação pela usuária levou a consequências graves, como observamos. Pessoas se reuniram na porta do hospital para hostilizar a criança e a equipe médica.

O que o Twitter fez? Bom, não apenas essa empresa, como também o Youtube, conforme observamos, abrigaram a divulgação criminosa da identidade e endereço da criança para incontáveis pessoas. Essas plataformas veicularam anúncios aproveitando a divulgação e até o dia seguinte, até uma decisão judicial determinando a retirada, as páginas que estavam espalhando o material de ódio contra a menina estavam no ar. No Twitter, a divulgação criminosa chamou a atenção das demais pessoas nas redes, as quais aumentaram o tempo de uso na plataforma. Nos trending topics, “assuntos mais comentados”, as palavras “estuprada”, “dez anos”, o nome da criminosa, misturavam-se com anúncios.

CC: Há impacto na saúde mental decorrente das mulheres negras serem o principal alvo de discurso de ódio nas redes?

AM: A discriminação ocorre todas as vezes que uma ação ou omissão de algum agente público ou privado coloca uma pessoa ou um grupo de pessoas em uma situação de desvantagem. A discriminação afeta um aspecto central da existência humana: a possibilidade de você ter acesso a direitos que permitem o gozo de uma vida autônoma. Direitos humanos são mecanismos abertos às pessoas para que elas possam planejar suas vidas de acordo com valores moralmente relevantes. O alcance dos meus objetivos pessoais depende do controle que eu tenho sobre aspectos essenciais da minha vida. A negação de direitos faz com que muitos indivíduos desenvolvam o que psicólogos sociais chamam de desamparo aprendido, expressão que designa um sentimento de que não seremos capazes de ter um papel ativo na construção dos nossos destinos. Esse sentimento gera um constante estresse emocional que pode levar ao desenvolvimento de distúrbios psicológicos. Minorias raciais e minorias sexuais são as pessoas mais vulneráveis a esses problemas porque a discriminação estrutural representa a ausência de respeitabilidade social, algo necessário para as pessoas desenvolverem um sentido positivo de autoestima.

CC: O que é compliance e de que forma o senhor acredita que essa ferramenta seria útil ao caso?

AM: O termo compliance designa um elemento central da gestão empresarial no mundo contemporâneo. Seu significado está relacionado com o dever das empresas de pautar suas decisões de acordo com as normas legais que regulam os diversos âmbitos da atividade das empresas. Essas normas incluem questões relacionadas à estrutura de organização interna, aos compromissos tributários decorrentes de negócios, às normas que regulam relações trabalhistas e também à responsabilidade penal e civil por serviços prestados. A ideia de compliance surge em grande parte a partir do interesse da sociedade civil e das autoridades estatais em acompanhar as formas como processos decisórios podem ter consequências negativas para os seguimentos afetados pela gestão empresarial.

Por isso falamos também em compliance antidiscriminatório: a noção de responsabilidade social da empresa também incorpora o princípio da não-discriminação, o que inclui a ausência de tratamento negativo dentro dela e também nos serviços oferecidos por ela. Estamos aqui diante de uma situação na qual os serviços prestados por uma companhia estão em franco desacordo com princípios constitucionais e direitos fundamentais. Ela lucra com o uso estratégico que grupos de pessoas fazem da disseminação do ódio contra mulheres negras, o que também ocorre em relação a outros segmentos.

CC: Como o senhor enxerga o Marco Civil da Internet na discussão desse caso?

AM: Essa é uma referência jurídica relevante porque estabelece de forma clara que direitos e garantias também se aplicam no mundo virtual. Há uma ideia generalizada de que a internet é um lugar no qual todos podem expressar tudo que querem sem qualquer tipo de responsabilidade pessoal ou institucional. As normas presentes nessa legislação deixam claro que empresas são legalmente responsáveis por violações de direitos e também aqueles usuários que atentam contra a dignidade das pessoas. Contudo, sendo justo inclusive com os legisladores que elaboraram o diploma em 2012, 2013, o cenário é muito diferente do existente hoje, em que o discurso de ódio tornou-se um negócio para essas plataformas. É preciso uma atualização da lei. A falta de regulação a essas empresas é algo que deve chamar a atenção dos Poderes, inclusive o Legislativo.

CC: Algo que gostaria de acrescentar?

AM: É importante frisar isso: a empresa não tem regras adequadas em identificar e eliminar usuários que utilizam redes sociais para a promoção de agendas políticas discriminatórias.

Outro lado

Procurada, a empresa afirmou em nota: “O Twitter tem regras que determinam os conteúdos e comportamentos permitidos na plataforma. Violações a essas regras, que seguem em constante evolução para fazer com que as pessoas se sintam mais seguras ao usar a plataforma, estão sujeitas às medidas cabíveis”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo