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“Acordo” com o PCC ou cada um com a facção que merece

Não vejo nenhum problema em que governos anteriores tenham feito acordo com esses presos, e vou explicar por quê

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Muito se fala que o governo Dória vai transferir alguns presos do PCC para penitenciárias federais e que isso vai causar rebeliões, mortes, motins inclusive na cidade de São Paulo, como já ocorreu anteriormente e como ocorre atualmente no Ceará, com atentados, queima de ônibus etc.

O escândalo seria um suposto acordo que os governos anteriores teriam com líderes do PCC, e que o atual governo acabaria com isso, seria rigoroso com a facção. Abro parênteses: não chamarei essas facções nascidas nas penitenciárias de crime organizado enquanto um membro de alguma delas não for dono de uma fazenda onde seja encontrado um helicóptero com meia tonelada de cocaína. Mas então, voltando para o assunto do acordo com o PCC e as mortes que ocorreriam se alguns líderes fossem transferidos para penitenciárias federais.

Primeiro, sinceramente, não vejo nenhum problema em que governos anteriores tenham feito acordo com esses presos, e vou explicar por quê.

Pense comigo, meu raro leitor, se um preso, cumprindo sua pena regularmente, com toda a estrutura do Estado em volta, diz que de hoje em diante vai diminuir o número de mortes na cidade, não vai ter mais depredação de ônibus, nem ataques coordenados em caixas eletrônicos ou prédios públicos, e isso realmente acontece, acabam-se os ataques e menos cidadãos e propriedades são prejudicados, sendo que a única contraprestação do Estado é deixar esse preso como ele já está, ou seja, preso, não haveria nenhum problema nisso.

Para alguns pode parecer imoral, asqueroso, horrível, o fato de o Estado estar reconhecendo a sua incapacidade de fazer o que quiser com o preso, sem que isso acarrete danos à população. Mas esses adjetivos todos não mudam a realidade de que o próprio sistema prisional é a imoralidade instituída, emoldurada, carimbada e registrada, patrocinada por todos nós contribuintes.

Engraçado que esse escrúpulo todo em termos de acordo com criminoso é só com criminoso pobre, porque a tal “delação premiada” não passa de um acordo com criminoso, só que, dentro da própria cultura do crime, com o criminoso da pior espécie, o criminoso mau-caráter, o criminoso dedo-duro.

Assumamos a hipótese, nada descartável, de que algum coronel bata no peito e diga: agora é comigo, esses bandidos não vão mais mandar aqui. Por óbvio, um discurso bonito, populista, mas as eleições já acabaram, e o que importa é que efetivamente tenhamos menos mortes entre a população.

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Uma postura como essa causa o que todos já sabem no meio carcerário. A transferência dos tais líderes é feita e, logo depois, em menos de um ano, a tal facção está novamente estruturada com outros líderes, subordinados ou não aos que foram enviados para a penitenciária federal.

Presos apontados como líderes do PCC são removidos de presídio em RN. Foto: Governo do Estado

Se não forem subordinados, pior ainda, porque os anteriores líderes podem voltar, podem ter outros mais fieis que não tenham sido transferidos, e aí começa a guerra, guerra por liderança que não se restringirá aos muros das prisões, mas atingirá bairros, periferia, rua, calçada, e muitos inocentes morrerão.

De qualquer forma, subordinado ou não, o novo líder pode não ter a mesma concepção de comportamento para a facção e achar producente a guerra generalizada.

Infelizmente nunca ninguém disse: esses bandidos não vão mais mandar aqui porque de hoje em diante o sistema prisional vai cumprir a lei, cada preso estará em sua cela, com seus direitos e garantias resguardados, mas com os seus deveres cobrados corretamente. Não, ninguém nunca diz isso, e os arroubos de valentia da direção são sempre causadores de mortes e de mais violência no meio social.

Se o Estado quisesse cumprir realmente a lei, dificilmente existiriam essas facções. A facção que mandaria no sistema prisional seria o próprio Estado. Mas enquanto isso não ocorre, não há que se fazer de conta que naquele caos, preso dormindo sobre preso durante dias, sem atividade, sem lazer, trabalho ou estudo, não há que se fazer de conta que eles não vão se reunir, se coordenar, da forma como for possível, sendo normalmente da pior forma possível.

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A Lei de Execução Penal prevê inclusive “regalias para presos” com bom comportamento, circunstância que a norma prevê justamente para ser o Estado a lidar com essas regalias, para ser o Estado o grande líder das prisões, mas o que acontece na prática é que regalia no sistema penitenciário é sempre negociada, concedida, entre os próprios presos.

E se o Estado não tem tido condições de ser o líder das prisões, seja quem for o líder do momento, esse é um fato, nossas prisões têm sempre um líder. Faz parte mesmo da natureza do ser humano, reunido, obrigatoriamente ou não, sempre escolhe, tacitamente ou expressamente, um líder.

Pois bem, partindo desse pressuposto, não há problema nenhum que esse líder diga para quem quer que for do lado de fora que não vai mais haver depredação, assassinatos de policiais em massa, atentados contra instituições.

Ah, mas o Estado não pode prometer nada para esse preso! Claro, e nem deve, foi o que eu disse, bastando que ele continue preso e a população morra menos, o “acordo” é melhor para a sociedade.

E coloco o “acordo” entre aspas porque o Estado realmente não precisa prometer nada, vai continuar prendendo quem tiver cometido crime na rua, vai continuar policiando os bairros, vai continuar tentando acabar com a droga do mundo, vai continuar fazendo o que quiser fazer, inclusive mantendo aquele preso, preso.

Ah, mas aquele preso vai ficar rico, mandando no tráfico de drogas! Bem, quando ele, aquele preso, aparecer com uma fazenda onde um helicóptero for encontrado com meia tonelada de cocaína, aí nós voltamos a conversar, aí talvez ele possa ser transferido para um órgão federal, desde que não seja um órgão em Brasília, mas até então, acordo ou não, melhor que morra menos gente nessa bagunça toda.

Luís Carlos Valois é Juiz de direito no Amazonas, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela USP, pós-doutorando em criminologia em Hamburgo – Alemanha, membro da Associação de Juízes para Democracia e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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