Justiça
A raiz da corrupção
Para além dos escândalos noticiados pela mídia, a sociedade precisa falar das práticas legalizadas de apropriação do patrimônio público pelo capital privado


O tema da corrupção e de seu suposto combate volta à pauta com intensidade de tempos em tempos e deverá ser recorrente neste ano eleitoral. Ainda que debater a corrupção seja de extrema importância, é essencial que façamos, enquanto sociedade, uma discussão atualizada e realista de suas implicações e que saibamos identificar onde ela de fato reside.
Antes, é preciso dizer que a corrupção é um fenômeno milenarmente presente na vida social. Surge com o sentido atual que conhecemos, de apropriação privada de patrimônio público, a partir da modernidade, quando o patrimônio do soberano, que se confundia com o Estado, deixa de existir, e o patrimônio do Estado passa a ser visto como propriedade pública.
No campo teórico, a corrupção não é só um conceito jurídico e penal, mas também uma ideia que pertence ao âmbito filosófico-político e de Justiça. Trata-se de uma iniquidade no plano moral e político porque destrói a capacidade de investimento no serviço público. Na atualidade, o enfrentamento à corrupção é quase sempre associado à ideia de combate, e não de controle. A suposta guerra contra a corrupção é meramente retórica, pois o Estado não pode entrar em guerra contra seus próprios cidadãos.
A história mostra que as tentativas de controle da corrupção por parte do Estado, valendo-se de seus aparelhos de investigação, capturam hoje a corrupção de ontem. Os grandes agentes de corrupção sistêmica são pegos quando não têm mais força relevante nos sistemas político e econômico. A Lava Jato, que levou essa ideia de combate à corrupção ao ápice, com todos os seus abusos, fisgou corrupções praticadas por empreiteiros num momento em que estes não tinham mais tanto relevo na economia e na política.
Pouco se fala, mas a principal fonte das práticas corruptas hoje, no mundo inteiro, é o mercado financeiro. A corrupção, não no sentido jurídico-penal, mas como iniquidade moral, espraia-se por esse ambiente de formas menos evidentes do que a corrupção da obra superfaturada. No Brasil, se dá através dos ainda escorchantes juros da dívida pública federal, que fechou o ano de 2021 em 5,613 trilhões de reais. A previsão de gastos no orçamento de 2022 é de 4,82 trilhões, dos quais 1,88 trilhão será usado para refinanciamento da dívida.
No começo da pandemia, em 2020, o governo anunciou a liberação de 1,2 trilhão de reais aos bancos, a fim de, supostamente, combater o efeito da crise sobre o sistema financeiro. Isso lhes permitiria financiar pequenos e médios empresários a juros ultrassubsidiados, o que, obviamente, não vimos acontecer.
A prestação de contas dessa quantia astronômica, a representar 20% do PIB, é feita apenas para o Banco Central, uma caixa-preta sem qualquer possibilidade de controle pela sociedade. A prática moralmente corrupta, aceita do chamado revolving door, ou porta giratória, coloca na direção de órgãos estatais agentes recém-saídos do setor privado, que ao deixarem seus cargos públicos, retornarão imediatamente ao mercado. Figuras como o ministro da Economia, Paulo Guedes, que era agente do mercado financeiro até ocupar o cargo e que mantém interesses particulares junto a este mesmo mercado.
Até o mundo mineral sabe, como diz o grande Mino Carta, que existem práticas corruptas no cotidiano da relação entre capital financeiro e Estado, como o repasse de informações privilegiadas. Mas não temos nem na Polícia Federal nem no Ministério Público Federal a preocupação de formar núcleos e pessoas que conheçam o mercado financeiro e suas práticas. Aliás, não temos essa estrutura nem em órgãos de controle como o TCU.
Outro ponto importante nesta discussão é o domínio do mercado financeiro sobre a mídia, o que lhe confere um absurdo poder, pois controlam a (ausência de) percepção social sobre essas práticas de que ninguém fala. Não vimos, por exemplo, nenhuma investigação jornalística sobre o destino desses recursos liberados aos bancos no início da pandemia.
A presença dos interesses desses agentes econômicos em todos os ambientes da política contrasta com o enorme silêncio em relação às práticas desse setor, a real fonte de corrupção hoje no Brasil. Para além da discussão dos escândalos noticiados pela mídia, a sociedade precisa falar da corrupção legalizada de apropriação do patrimônio público pelo capital privado.
O debate sobre corrupção não se faz apenas no campo penal, da legalidade, pois é também uma discussão moral. O controle da corrupção no Brasil, sob a forma de suposto “combate”, serve apenas a discursos moralistas que obtêm efeitos políticos na disputa de poder. Precisamos atualizar esse debate e colocar na mesa as fontes reais de corrupção do patrimônio público, para que se faça sobre ele um controle sério e efetivo. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A raiz da corrupção”
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