Justiça

‘A Justiça é lenta e torta, mas chega’: leia na íntegra a sentença dos assassinos de Marielle

A Ronnie Lessa coube uma pena de 78 anos e 9 meses de prisão; a Élcio Queiroz, uma de 59 anos e 8 meses

‘A Justiça é lenta e torta, mas chega’: leia na íntegra a sentença dos assassinos de Marielle
‘A Justiça é lenta e torta, mas chega’: leia na íntegra a sentença dos assassinos de Marielle
A juíza Lúcia Glioche lê a sentença dos assassinos de Marielle Franco, em 31 de outubro de 2024. Foto: Pablo Porciuncula/AFP
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Assassinos confessos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio Queiroz foram condenados nesta quinta-feira 31 pelo 4º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro.

A Lessa coube uma pena de 78 anos e 9 meses de prisão; a Élcio, uma de 59 anos e 8 meses.

O júri entendeu que os dois são culpados de três crimes: duplo homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, emboscada e recurso que dificultou a defesa da vítima), tentativa de homicídio contra Fernanda Chaves (assessora de Marielle) e receptação do veículo usado no crime.

Marielle e Anderson foram assassinados na noite de 14 de março de 2018. Ronnie e Élcio, que fecharam acordos de delação premiada, estão presos desde 12 de março de 2019.

Os acusados de serem mandantes dos crimes são os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão — respectivamente, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado e deputado federal. Já o delegado Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro à época da execução, é acusado de agir para prejudicar as investigações. Os três estão presos desde 24 de março.

Coube à juíza Lúcia Glioche ler a sentença de Lessa e Élcio, já no início da noite desta quinta-feira. Leia a íntegra:

O júri é uma democracia. Democracia esta que Marielle Franco defendia.

Aqui prevalece a vontade do povo em maioria. Aqueles que atuam como os jurados nada recebem; prestam um serviço voluntário, gratuito, representando a vontade do povo no ato de julgar o semelhante, que é acusado de ter praticado um crime tão grave que é querer tirar a vida da outra pessoa.

Portanto, senhores jurados, obrigada em nome do Poder Judiciário. Obrigada em nome da população da cidade do Rio de Janeiro.

A sentença que será lida agora talvez não traga aquilo que se espera da Justiça. Talvez justiça que tanto se falou aqui fosse que o dia de hoje jamais tivesse ocorrido. Talvez justiça fosse Marielle e Anderson presentes. Como se justiça tivesse o condão de trazer o morto de volta.

Então dizemos que vítimas do crime de homicídio são aqueles que ficam vivos, precisando sobreviver no esgoto que é o vazio de permanecer vivo sem a vida daquele que foi arrancado do seu cotidiano.

A sentença não serve para tranquilizar as vítimas, que são Marinete, mãe de Marielle; Anielle, irmã de Marielle; Mônica, esposa de Marielle; Luyara, filha de Marielle; Ágatha, esposa de Anderson, e Arthur, filho de Anderson.

Homicídio é um crime traumatizante — finca no peito uma dor que sangra todo dia, uns dias mais, uns dias menos, mas todos os dias.

A pessoa que é assassinada deixa uma falta, uma carência, um vácuo. Que palavra nenhuma descreve. Toda a minha solidariedade e do Poder Judiciário às vítimas.

A sentença que será dada agora talvez também não responda à pergunta que ecoou pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo: Quem matou Marielle e Anderson?

Talvez ela não responda aos questionamentos dos 46.502 eleitores cariocas que fizeram de Marielle Franco a quinta vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro nas eleições municipais de 2016 — e que tiveram seu direito de representação ceifado no dia 14 de março de 2018.

Todavia, a sentença que será lida agora se dirige aos acusados aqui presentes. E mais: ela se dirige aos vários Ronnies e vários Élcios que existem na cidade do Rio de Janeiro — livres por aí.

Eu digo sempre que nesses 31 anos que eu sirvo ao sistema de Justiça, nenhum de nós do povo nunca saberá o que se passou no dia de um crime. Quem não estava na cena do crime, não participou dele, nunca sabe o que aconteceu.

Mesmo assim, o Poder Judiciário e hoje os jurados precisam julgar o crime com as provas que o processo apresenta, e trazer às provas para o processo, para os jurados é árduo.

Porém, com todas as dificuldades e todas as mazelas de investigar um crime, o Ministério Público do estado do Rio de Janeiro denunciou os acusados. Eles foram processados e tiveram garantido o seu direito de defesa — e foram julgados.

Por anos exercendo a plenitude do direito constitucional de autodefesa, os acusados juraram inocência, pondo a todo o tempo em dúvida a prova trazida contra eles. Até que um dia, no ano passado, 2023, por motivos que de verdade a gente jamais vai saber, o acusado Élcio fez a colaboração premiada. Depois o acusado Ronnie a fez também.

Os acusados confessaram a execução e a participação no assassinato da vereadora Marielle Franco.

Por isso, fica aqui para os acusados presentes e serve para os vários Ronnies e vários Élcios que existem por aí, soltos, a seguinte mensagem:

A Justiça por vezes é lenta, é cega, é burra, é injusta, é errada, é torta, mas ela chega.

A Justiça chega mesmo para aqueles que, como os acusados, acham que jamais vão ser atingidos pela Justiça. Com toda dificuldade de ser interpretada e vivida pelas vítimas, a Justiça chega aos culpados e tira deles o bem mais importante depois da vida, que é a liberdade.

A Justiça chegou para os senhores Ronnie Lessa e Elcio de Queiroz. Os senhores foram condenados pelos jurados do 4º tribunal do júri da capital:

a 78 anos e 9 meses de reclusão e 30 dias-multa para o acusado Ronnie;

a 59 anos de prisão e 8 meses de reclusão e 10 dias-multa para o acusado Élcio.


Saem os dois condenados a pagar até os 24 anos do filho de Anderson, Arthur, uma pensão.

Ficam os dois condenados a pagar, juntos, 706 mil reais de indenização por dano moral para cada uma das vítimas — Arthur, Ághata, Luyara, Mônica e Marinete.

Condeno os acusados a pagarem as custas do processo e mantenho a prisão preventiva deles, negando o direito de recorrer em liberdade.

Agradeço às partes, à Defensoria Pública, às defesas dos dois acusados. Agradeço aos serventuários da Justiça, aos policiais militares. Renovo o agradecimento aos jurados.

Encerro a sessão de julgamento e quebro a incomunicabilidade.

Tenham todos uma boa-noite”.

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