3ª Turma

14 de junho: a greve geral e o fim do Estado Democrático de Direito

Finalmente está claro o uso distorcido do discurso contra a corrupção para promover prisões políticas.

Foto: Gibran Mendes
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O dia 14 de junho mostrou, uma vez mais, com muita clareza, o quão distante estamos de uma realidade democrática. Enquanto parte importante da população brasileira foi às ruas protestar contra os desmanches e a censura na educação, e especialmente contra a destruição do sistema de seguridade social através da PEC 06, parte importante da mídia nacional seguia na desesperada tentativa de disfarçar a realidade.

No último domingo, várias trocas de mensagens entre procuradores responsáveis pelas investigações da Operação Lava Jato e o então juiz Sérgio Moro, foram reveladas em reportagem corajosa realizada pelo site The Intercept Brasil. No dia da greve geral, novas conversas foram divulgadas, dando conta de que Sérgio Moro, entre tantas outras sugestões e intervenções, “pediu aos procuradores da Lava Jato uma nota à imprensa para rebater o que chamou de “showzinho” da defesa de Lula após o depoimento do ex-presidente no caso do triplex do Guarujá”.

Com o título “Quem não sabia?”, o amigo e colega Hugo Cavalcanti Mello Filho escreve o que está engasgado na garganta de muitos de nós: Há muito entidades e representantes da sociedade civil vêm denunciando a seletividade e a promiscuidade entre acusação e juízo, como a tônica que eiva de nulidade, e torna mesmo juridicamente inexistentes, vários processos deflagrados pela Operação Lava Jato.

Apesar disso, a cobertura nas principais rádios e TVs seguiu tímida, minimizando os efeitos catastróficos da denúncia. Em um Estado Democrático de Direito, a sugestão na produção de prova e na ordem das investigações, por parte de quem depois teria a função de julgar o processo, teria sido recebida com a devida gravidade. O então juiz, agraciado com o “prêmio” de Ministro da Justiça pelo governo Bolsonaro, já teria sido afastado. Os processos contaminados pela relação espúria entre acusação e juízo já teriam sido anulados ou tornados inexistentes. As pessoas ilegalmente encarceradas em razão desses atos já estariam soltas.

E mais: a grande mídia nacional já teria se desculpado pela inércia na apuração dos fatos e, envergonhada com sua inescusável passividade, emprestado às provas que hoje são de conhecimento público a importância devida.

O que assistimos no dia 14 de junho de 2019 foi a antítese disso. Além de tentar minimizar os fatos, propondo reportagens sobre hackers, quando já se sabe que as conversas divulgadas não foram obtidas por esse meio, houve um silêncio ensurdecedor acerca da necessidade de esclarecer à população que juizes e procuradores conversam sim, mas não trocam conselhos nem orientações sobre processos em que atuam, sobretudo fora dos autos, pois isso poder ser considerado  conluio, inclusive como ato criminoso, verdadeiro estelionato judicial.

Ato em Itaquera. (Foto: MTST)

É um vexame para a república assistir a tentativa de salvar o que é absolutamente incompatível com a postura que se espera de agentes públicos que atuam no Poder Judiciário. E tudo isso para que não se perca a pauta da “reforma” da previdência, tão cara aos interesses de grandes conglomerados financeiros, ávidos em abrir um novo nicho econômico representado pelos fundos de previdência privada.

Constrangidos a enunciar o fato de que milhares de pessoas protestaram contra o desmanche da previdência, alguns veículos de comunicação intercalaram as notícias com entrevistas que buscavam convencer as brasileiras e os brasileiros da necessidade das alterações propostas pela PEC 06. É impossível não sentir vergonha de um jornalismo à serviço de um projeto que carrega consigo alto poder lesivo e que atinge a maioria absoluta da população, justamente aqueles e aquelas que recebem até dois salários mínimos. Já escrevi sobre os efeitos nefastos do desmanche proposto para a previdência, que, diga-se de passagem, nada melhora com as modificações propostas no parecer do deputado Samuel Moreira.

Para além da campanha vergonhosa da grande mídia em favor de uma alteração constitucional (PEC 06) que provocará a miséria e a impossibilidade concreta de vida digna para milhares de pessoas, assistimos a um constrangedor silêncio acerca das arbitrariedades praticadas pelo Estado neste dia de luta.

Em Porto Alegre, 54 estudantes foram detidos já pela manhã do dia 14, e liberados horas depois, sem que a polícia esclarecesse sequer a razão de tamanho constrangimento. O Advogado Ramiro Goulart foi preso por haver desabafado sua indignação para com a truculência policial. O Advogado Rafael Português também foi preso durante as manifestações na Avenida Paulista. Todas essas “detenções para averiguação” não têm previsão legal. É importante que se diga, ou se trata de prisão em flagrante ou não há razão para a privação de liberdade. Até o meio do dia, só em Porto Alegre, a notícia era de que havia mais de 70 pessoas presas. Essa prática se repetiu nas demais capitais do país. Muitas pessoas foram presas por exercerem o direito fundamental de manifestar livremente o pensamento e de protestar contra as injustiças. Algumas passaram mais de 24h detidas.

Nada disso foi suficiente para que um número recorde de pessoas tomassem as ruas das cidades e gritassem em alto e bom som: “nós não vamos trabalhar até morrer”. Há indicativo de que 45 milhões de pessoas foram às ruas no dia 14, contra todo o desmanche do Estado Social que vem sendo realizado em nosso país.

 

A verdade é que mais um capítulo da nossa história foi deflagrado com denúncias que tornaram clara uma realidade que já estava sendo denunciada há algum tempo e com o movimento que levou milhões à rua neste dia 14 de junho.

Finalmente está claro o uso distorcido do discurso contra a corrupção para promover prisões políticas e pautar os rumos tanto da economia quanto da política em nosso país. E nada há de republicano ou democrático nisso.

O fim desse capítulo não está dado, estamos em meio a um processo histórico do qual somos atores. A fala e os atos de cada um de nós fará diferença nos rumos que nosso país tomará nos próximos meses.

É imprescindível seguir exigindo que nossas autoridades respeitem a Constituição e que as pessoas que usam seus cargos para obter vantagens pessoais ou fazer vencer a sua versão do que é certo ou errado, sejam devidamente responsabilizadas por esse uso distorcido da função pública.

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