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As semelhanças entre 2013 no Brasil e os “coletes amarelos” na França

Trata-se de mais uma revolta “contra tudo o que está aí”?

Os "coletes amarelos" miram Macron
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Eles conseguiram se impor como pauta de protesto e indignação social como nenhum outro movimento havia conseguido fazer, desde Maio de 68 na França. Os “coletes amarelos” fizeram o governo francês voltar atrás na terça-feira 4 e congelar o imposto sobre o combustível, taxa ecológica defendida pelo até então intransigente presidente francês, Emmanuel Macron.

RFI conversou com o economista e cofundador da Attac France, Thomas Coutrot, e a socióloga Angelina Peralva, professora na Universidade de Toulouse, sobre até que ponto as “jornadas de junho” de 2013 no Brasil e a febre dos “coletes amarelos” na França se parecem, dialogam ou se diferenciam. Qual análise poderia ser feita destes protestos, separados por cinco anos de diferença, dos dois lados do Atlântico?

Thomas Coutrot é economista, chefe do departamento de Estatística do Ministério do Trabalho na França. Conhecido também por ser um dos fundadores da famosa associação militante cidadã Attac France, ele acredita que existem várias semelhanças entre as manifestações brasileiras de 2013 e a atual mobilização dos gilets jaunes, os “coletes amarelos” na França.

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“Ambos são movimentos ligados à questão da mobilidade e da circulação. Falam sobre a dificuldade dos cidadãos em assumir os custos ligados ao transporte urbano, no caso do Brasil, e do transporte rural, no caso da França”, afirma Coutrot. Confirmando a análise de Coutrot, o diário econômico Les Echos desta terça-feira 4 afirma que “Trabalhadores precários não têm muita escolha na França”.  O autor do editorial, Jean-Marc Vittori, destaca em sua coluna que “normalmente, eles precisam dirigir até 50 quilômetros para trabalhar, em regiões fora da capital”.

Thomas Coutrot lembra que o bloqueio da circulação é, na verdade, um novo formato de protesto, depois que as greves deixaram de se impor como “ferramenta de negociação com o capital”. “Tornou-se muito difícil bloquear a economia através dos movimentos grevistas, como foi feito em Maio de 68, ou em 1995 e 2003. Agora está muito difícil para os trabalhadores fazerem greve, com a precarização do trabalho, pelo medo de perder o emprego, acho que isso explica a forma que tomou esse movimento”.

Para o economista, outro ponto em comum seria a “auto-organização dos protestos”, em grande medida independentes das mobilizações sociais tradicionais. “No Brasil, o Movimento Passe Livre teve um papel importante, mas apenas no início de 2013. Não foi o caso da França. Aqui, nenhum movimento, social, sindical ou político, desempenhou um papel no desencadeamento dos gilets jaunes”, diz o especialista.

Para a socióloga Angelina Peralva, essa é justamente uma das semelhanças entre os movimentos dos dois países. “São protestos que foram articulados a partir das redes sociais, sem enquadramento de entidades representativas identificadas, sejam elas sindicatos ou partidos”, explica.

Peralva ressalta também a importância da violência em ambos os movimentos. “Embora essa violência tenha atingido um grau importante no caso da França, ela não é um fenômeno recente. A violência nas manifestações é apenas um termômetro que mede a temperatura de certos setores da opinião pública, não é a ‘doença’”, diz. A socióloga observa que ainda há várias questões em aberto sobre a violência, como o grau de adesão.

“Na França, parece que os autores da violência foram identificados, o que não foi o caso de imediato no Brasil em 2013. No caso de São Paulo, há estudos que identificam uma parte da população dos black blocks, uma população periférica que se organiza naquele momento para os protestos”, conta.

Exposição relembra junho de 2013 (Foto: Fernando Frazão/ABr)

Para Peralva, outro ponto de identificação é a dupla presença, tanto da esquerda quanto da direita, nos movimentos. “São uma direita e uma esquerda extraparlamentares, no caso do Brasil em 2013. No caso dos gilets jaunes, é ainda um pouco cedo para a gente saber exatamente em que grau essa presença é duradoura e articulada”, analisa.

Ela ressalta que, no caso de 2013, no Brasil, o fenômeno mais importante foi a consolidação de uma esquerda extraparlamentar democrática, no campo das lutas urbanas e também no da informação. “2013 consolida uma série de coletivos que vão adquirir mais visibilidade. No campo da informação, o monopólio da mídia institucional sobre as narrativas políticas é quebrado, e isso é um processo que se mantém”, explica a socióloga.

“Um fenômeno importante foi também a emergência de uma direita extraparlamentar, ou seja, liberal e em parte autoritária, que se alinhou com a extrema direita nas eleições presidenciais e chegou ao Parlamento agora. Contrariamente à esquerda extraparlamentar de 2013,  a direita chegou na esteira dos escombros de um sistema parlamentar extremamente afetado pela Operação Lava Jato”, completa.

Frustração generalizada

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Thomas Coutrot destaca a frustração das camadas pobres e médias da população em relação a seus representantes, tanto na França quanto no Brasil. “Eles não se sentem considerados, e lançam movimentos auto-organizados, espontâneos, partindo da base, sem nenhum tipo de organização prévia”, analisa. Neste contexto, as redes sociais se tornam a ferramenta de convocação primária deste tipo de mobilização social, outra característica em comum nos protestos franceses e brasileiros.

Coutrot lembra que é a primeira vez que a França assiste a uma mobilização nacional que trabalha essencialmente com a questão dos “bloqueios”. “Eles barram o acesso às cidades, aos pontos de gasolina, supermercados, lojas, estradas. Ataca-se a mobilidade. Interrompem-se os fluxos de carros, ônibus e caminhões, a principal forma de circulação de mercadorias na Europa”.

“É interessante, porque os ‘coletes amarelos’ não bloqueiam a produção (como as greves), eles bloqueiam a circulação. Mas os efeitos são similares: uma paralisia da economia”, destaca. Para Coutrot, uma diferença essencial entre as manifestações brasileiras de 2013 e os “coletes amarelos” é que a mobilização francesa é desde sempre essencialmente dirigida contra o presidente Macron e a  atitude de desprezo constante que ele tem manifestado em relação às camadas populares, uma “espécie de desprezo de classe muito grande”.

O outro ponto de honra do movimento francês é, segundo o economista, o fim do ISF, o Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna, que taxava patrimônios privados acima de  1,3 milhão de euros, até ser cancelado por Macron. “Era um imposto muito simbólico, por isso Macron foi logo considerado um presidente que governa para os ricos”, diz.

Abre-alas para a extrema direita?

Se no Brasil as manifestações de junho de 2013 acabaram por abrir caminho para a destituição de Dilma Rousseff e à eleição de Jair Bolsonaro, uma declaração de um porta-voz dos “coletes amarelos” causou polêmica recentemente na França. Christophe Chalençon declarou à rádio Europe 1 que ele veria com gosto “um general de Villiers” como chefe do governo (primeiro-ministro) da França. Chalençon se referia à Pierre de Villiers, general que pediu demissão como chefe das Forças Armadas em 2017, após criticar Macron. Será que os gilets jaunes apoiariam um governo militar na França?

Thomas Coutrot destaca que as manifestações brasileiras de 2013 não eram de extrema direita. “O que aconteceu foi que a rejeição desse movimento pelo governo e pela esquerda, pelo PT, favoreceu a sua retomada pela direita e pela extrema direita no Brasil”, analisa. “A mesma coisa poderia estar acontecendo na França, se o sindicalismo e os partidos de esquerda tivessem a mesma atitude”, destaca.

Coutrot pensa, no entanto, que não é o caso. “Se organizações sindicais e a esquerda tiveram muita desconfiança num primeiro momento na França, depois de três semanas ficou muito claro que não se trata de um movimento autoritário, mas a favor da redistribuição da renda. Esse porta-voz que pediu um general no poder foi um caso isolado. A exigência francesa é por mais democracia, não é por ditadura”, diz.

Apropriação política dos movimentos sociais

Coutrot não acredita que os “coletes amarelos” terão seu discurso apropriado por partidos políticos. “O mais importante é o rastro que essa mobilização vai deixar na França. Qual a intepretação que a população dará a esse movimento? Um movimento de direita contra os impostos ou um protesto por justiça social?”, questiona.

Mas uma coisa é certa, segundo o economista. Os “coletes amarelos” devem produzir consequências profundas no cenário político francês, mesmo que não seja no curto prazo. “Macron é muito rígido na concepção que tem do poder. Em sua ignorância sobre os anseios da população. O movimento deve conseguir paralisar o governo nas próximas reformas. A lição que os franceses aprenderam com os gilets jaunes que a única maneira de bloquear as ações deste governo é ‘tacar fogo’ na rua, fazer barricadas”, avalia.

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