É extremamente complicado entender a dinâmica da política doméstica de um país. Mesmo quando se mora nele. Para alguém que nunca morou ou trabalhou, com algumas raras exceções — estudos acadêmicos, visitas repetidas, ou razões profissionais. é praticamente impossível.
Por esse motivo – como já escrevi nessa revista – me recusei por muito tempo a comentar política brasileira. Mesmo quando tinha bastante visibilidade na mídia brasileira, durante o caso Snowden, sempre evitei perguntas sobre política doméstica, ainda que morasse aqui já há oito anos.
Antes de me considerar competente para julgar, analisar e opinar sobre os detalhes da política interna de um país grande e complexo, era preciso ter a humildade de entender que isso demanda muito tempo, dedicação e estudo. Foi em 2016 — quando já morava aqui há 10 anos — que comecei a escrever sobre política brasileira: comecei me opondo ao impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, e, uma vez que isso atraiu uma audiência ampla, fundei o The Intercept Brasil.
Por setenta anos, Democratas e Republicanos insistiram que é não só o direito, mas o dever dos EUA mudar o governo em Cuba
É natural o mundo todo se interesse pela política dos EUA — que são, afinal, o país mais poderoso do mundo. Por conta de sua postura imperialista e interferência em vários países, o que acontece na política doméstica nos EUA influencia a vida de centenas de milhões de pessoas no mundo inteiro.
Mas isso não significa que seja mais fácil desenvolver uma compreensão sofisticada e precisa das dinâmicas políticas internas nos Estados Unidos do que seria para um americano ou alemão que nunca morou no Brasil desenvolver uma compreensão sofisticada do Brasil. O Brasil, afinal, não é para amadores.
Para ilustrar essa dificuldade, pode-se ressaltar uma entrevista que dei no programa de notícias de maior audiência da TV dos EUA: o Tucker Carlson Tonight, na Fox News. Fui lá para falar dos perigos que eu acredito que são criados pela pressão que o governo Biden está exercendo sobre o Facebook e outras redes sociais, exigindo que censurem conteúdo político sob ameaças legais.
Para ilustrar o argumento, comentei que é muito comum ouvir nos EUA críticas contra a postura chinesa de controlar a internet, e que políticos democratas e republicanos estão criticando o governo cubano por restringir o acesso a internet em meio a protestos. Minha pergunta foi: porque os americanos são tão rápidos em condenar censura na internet de adversários geopolíticos, mas toleram (ou ainda, celebram) quando ela ocorre em seu país? É o que fizeram muitos democratas antes das eleições, quando o Facebook e o Twitter se uniram e proibiram discussão sobre documentos autênticos publicados pela imprensa sobre os negócios familiares estrangeiros de Joe Biden.
Em resposta ao meu comentário, Carlson condenou veementemente os congressistas republicanos que passaram a semana agitando por uma intervenção americana em Cuba. Ele utilizou um argumento que está se tornando comum na direita pró-Trump: os EUA não tem que interferir na política doméstica de outros países e devem, ao invés disso, focar em melhorar a vida de seus cidadãos.
A partir daí tivemos a seguinte conversa:
CARLSON: Mesmo hoje, os republicanos idiotas no Congresso passaram o dia inteiro falando sobre a falta de liberdade em Cuba, que não é um país livre, o que não deixa de ser verdade. Mas cada vez mais nós também não somos e eles parecem não notar o que está acontecendo no país que deveriam estar administrando e ficam gastando todo esse tempo focados nesta nação caribenha que não é o foco de nossos interesses…
GREENWALD: Pois é, eu pensei que toda a questão da política externa Make America Great Again/America First como articulada por Donald Trump e seus aliados no Congresso fosse que não deveríamos estar consertando outros países, mas em vez disso estar focando em nosso próprio país.
CARLSON: Sim, era isso que eu imaginava, também.
GREENWALD: É muito fácil falar sobre censura em Pequim ou Havana, mas e quando ela está acontecendo bem debaixo do seu nariz, em Washington?
É difícil expressar o quão raro é ouvir coisas desse tipo na imprensa dos EUA. Por setenta anos, Democratas e Republicanos insistiram que é não só o direito, mas dever dos EUA mudar o governo em Cuba. O presidente John Kennedy, democrata, autorizou a tentativa fracassada de invasão em 1961 com esse objetivo. E muito pouco mudou desde então.
Ainda que o ex-presidente Barack Obama tenha suspendido algumas restrições contra Cuba (que foram restabelecidas por Trump e vem sendo mantidas por Biden), o embargo e bloqueio continuam em vigor porque pouquíssimas pessoas estão dispostas a defender o que Carlson defendeu naquele segmento: não cabe aos EUA decidir como os cubanos se governam. Mesmo a congressista Alexandria Ocasio-Cortez, do setor mais à esquerda do Partido Democrata, quando criticou o embargo, denunciou o governo cubano, que acusou de repressivo, e expressou solidariedade com os protestos.
We stand in solidarity with the Cuban people and condemn the suppression of the media, speech and protest.
We also call for an end to the U.S. embargo and additional Trump-era restrictions that are profoundly contributing to the suffering of Cubans. pic.twitter.com/Fw6Quv5TAN
— Rep. Alexandria Ocasio-Cortez (@RepAOC) July 16, 2021
Por que, de todas as grandes cadeias de notícias americanas, a Fox News foi a única disposta a veicular a ideia de que os EUA não tem o direito de interferir nas questões domésticas em Cuba? Por que Tucker Carlson parece ser mais comprometido em seu anti-imperialismo do que a AOC?
As razões são complexas e não serão claras para quem acompanha tudo de longe, se informando através de artigos no New York Times, segmentos na CNN e seguindo no Twitter alguns repórteres da Vox e Vice — da mesma forma que um estrangeiro não teria uma visão muito sofisticada sobre o Brasil depois de assistir alguns debates na GloboNews com o Gerson Camarotti, ler algumas colunas da Eliana Cantanhêde no Estadão e ler os tweets da Vera Magalhães ou Lauro Jardim. Imagina como soaria arrogante um americano que, sem ter nenhuma conexão com o Brasil, comentasse os meandros da política brasileira com base nessas fontes superficiais.
As divisões ideológicas tradicionais nos EUA se confundiram desde a era Trump. Quando Trump disputou as primárias republicanas em 2016, se colocou contra o establishment do partido, contra o ideário econômico padrão da era Reagan e contra a política externa Bush/Cheney. Trump criticou cortes aos programas sociais e previdenciários, e, principalmente, manifestou seu desprezo pelas guerras de intervenção no Iraque, Síria e Líbia.
Como a maior parte dos políticos, Trump nem sempre governou de acordo com o que prometeu. Ele deu benefícios fiscais para grandes empresas e aumentou os bombardeios contra o Estado Islâmico, por exemplo. Mas, em alguns casos, seguiu a transformação ideológica que indicara, tendo sido o primeiro presidente americano em décadas a não iniciar novas guerras. A mera retórica, mesmo que violada na prática, ajudou a mudar o teor da discussão entre segmentos da direita, como mostra a disposição de Carlson — e mais ninguém — em denunciar os esforços dos EUA de mudar o regime cubano. Os anos Trump tiveram o mesmo efeito entre os democratas, mas ao contrário: políticos do partido criticavam Trump por não ter sido agressivo o bastante com a Rússia e exigiam uma intervenção mais incisiva contra o governo Assad na Síria.
Essas mudanças são sutis, mas significativas. E não são imediatamente óbvias quando vistas de longe. Mas são mudanças reais. É sempre fácil se confinar aos espaços midiáticos e de imprensa onde todo mundo compartilha a nossa visão de mundo. Mas se o objetivo for causar mudanças efetivas — e não só fazer pose ou ganhar seguidores nas mídias sociais — reconhecer essas oportunidades e mudanças de paradigma é fundamental, e é nosso papel tentar se aproveitar delas para construir coalizões ampliadas e obter resultados políticos.
Que a Fox News tenha sido o único veículo de imprensa mainstream onde pude defender que os EUA não tem o direito de interferir na política cubana é evidência de que uma mudança vital nas identidades partidárias e ideológicas está acontecendo nos EUA. É fácil negar essa realidade — ou condenar os esforços de construir ganhos políticos sobre ela — quando não se examina essas mudanças sutis. É por isso que humildade e cautela são importantes antes de se formar decisões definitivas sobre a política de um país complexo e distante. Os contornos simplórios e crus oferecidos pelos veículos mainstream muitas vezes confundem mais do que informam.
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