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Jogo viciado

Mais uma vez, o futebol brasileiro é atingido em cheio por um escândalo de manipulação de resultados

Eduardo Bauermann, zagueiro do Santos, é um dos jogadores que toparam participar do esquema de apostas fraudulentas – Imagem: Raul Baretta/Santos FC
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No duelo contra o Bahia, na quarta-feira 17, pelas oitavas de final da Copa do Brasil, o time do Santos jogou desfalcado de um de seus principais jogadores, o zagueiro Eduardo Bauermann. Esta seria uma notícia trivial se o atleta tivesse ficado de fora da partida por motivo de contusão, mas o que afastou ­Bauermann do gramado – e deve afastar por um longo período – é o fato de seu nome ser um dos oito que integram a lista de jogadores de futebol suspensos preventivamente por 30 dias, pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva, por participação em um esquema de manipulação de apostas. A suspensão, anunciada na terça-feira 16, é resultado da Operação Penalidade Máxima, do Ministério Público de Goiás, que chega à sua segunda fase trazendo novas revelações sobre a atuação do grupo de fraudadores que contou com a participação ativa de jogadores no aliciamento de colegas dispostos a “honrar” as apostas da quadrilha.

É inevitável uma segunda leva de suspensões a ser anunciada pelo STJD, uma vez que a quebra do sigilo de Bruno­ ­Lopez, o BL, apontado pelos promotores goianos como chefe do esquema de manipulação, puxou um fio de conversas que desnuda a ação de diversos jogadores. Em antecipação, equipes da Série A, a exemplo de Internacional, Fluminense, Cruzeiro, Coritiba, Athletico e América, anteciparam o afastamento de atletas, em um movimento que pode atingir proporções catastróficas justamente no momento em que os principais clubes brasileiros, aos trancos e barrancos, buscam se organizar em uma ou duas ligas nacionais para vender os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro.

Apostadores se uniram a atletas aliciadores, afirma o promotor Fernando Cesconetto – Imagem: MP/GO

Segundo estimativas do mercado, investidores estrangeiros estão dispostos a desembolsar até 4,8 bilhões de reais, mas o produto oferecido, além de apresentar um espetáculo de alta qualidade, precisa ser confiável: “As denúncias transformam o futebol brasileiro em caso de polícia e é evidente que degradam seu potencial como produto, porque se perde a confiança no resultado ético em campo. O apostador fraudador vai aonde tiver a oportunidade, o crime se instala ao perceber sistemas de proteção mais frágeis”, comenta o ex-secretário-geral da CBF Walter Feldman.

O governo pretende agir rapidamente para enfrentar o problema e o presidente Lula determinou ao Ministério da Fazenda e à Casa Civil que acelerem o envio ao Congresso, na forma de Medida Provisória, a proposta de regulamentação das empresas e sites de apostas no Brasil. Com validade imediata a partir de sua publicação, a MP só será divulgada após o grupo de trabalho governamental, a incluir os ministérios dos Esportes, Planejamento, Gestão, Saúde e Turismo, finalizar os ajustes em sua redação feitos à luz das novas denúncias trazidas pela Penalidade Máxima II.

Além de tributar sites de apostas, o governo pretende criar mecanismos para coibir fraudes

Agora, além do objetivo primordial de taxar os sites de apostas e deixar no País um naco da movimentação anual que, segundo dados extraoficiais, chega a 150 bilhões de reais, a proposta do governo determinará a suspensão cautelar de apostas atípicas e a retenção de prêmios conquistados em situações sob suspeita de manipulação.

Após a esperada aprovação da MP pelo Congresso no prazo máximo de 120 dias, cada ministério envolvido na discussão publicará portarias específicas para criar mecanismos e campanhas de combate à manipulação das apostas. O objetivo é adotar uma série de políticas transversais e estabelecer uma parceria permanente com a CBF e o Comitê Olímpico Brasileiro. Às empresas de apostas, além de informar imediatamente as autoridades sobre qualquer suspeita de irregularidade, será determinado também que promovam ações informativas e de prevenção sobre “transtornos psicológicos” eventualmente provocados pelo hábito de apostar. “É preciso garantir a saúde mental dos apostadores e evitar que as apostas se transformem em vício”, diz o texto da proposta do governo.

Não é a primeira vez. Em 2005, o árbitro Edilson Pereira de Carvalho foi o pivô da Máfia do Apito. Em 1982, a revista Placar denunciou um esquema a envolver mais de 100 atletas e dirigentes. Não deu em nada – Imagem: Paulo Pinto/Estadão Conteúdo

Em outra frente, o Ministério da Justiça e Cidadania determinou, na sexta-feira 12, a abertura de inquérito pela Polícia Federal sobre a manipulação de apostas esportivas que terá como ponto de partida os indícios de fraude coletados pelo MP de Goiás. A nacionalização da investigação foi anunciada pelo ministro Flávio Dino após conversa com Lula e atendeu a uma solicitação da CBF. O inquérito será levado a cabo pela Diretoria de Inteligência Policial da PF, mesmo setor que investiga a participação do ex-ministro Anderson Torres nos atos golpistas de 8 de janeiro e a fraude nos cartões de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Na quarta-feira 17, também foi instalada na Câmara dos Deputados a CPI das Apostas, promessa cumprida pelo presidente daquela Casa Legislativa, Arthur Lira, do PP. Indicado por Lira como relator da comissão de inquérito, com a anuência do governo, o deputado federal Felipe Carreras, do PSB, pede pressa: “Os novos elementos trazidos pela Justiça de Goiás aumentaram a urgência de instalarmos a comissão. Queremos jogar luz nesse escândalo que vem se revelando o maior do futebol brasileiro”. O parlamentar diz que a lista de convocados a depor será extensa: “É fundamental, de forma muito transparente, ouvir os principais atores do futebol e os players do mercado de apostas. Vamos trabalhar em parceria com os órgãos investigativos para não somente revelar as engrenagens desse esquema como também punir exemplarmente os envolvidos e promover uma legislação que coíba esse tipo de crime”.

Na Câmara dos deputados, uma CPI se propõe a jogar luz sobre o escândalo

A meta da CPI, afirma Carreras, é proporcionar a abertura de inquéritos diversos: “As investigações em Goiás começaram com a Série B, mas avaliamos que esses esquemas devem permear todas as divisões do campeonato. Na semana passada, surgiram os primeiros indícios de manipulação na Série A”. Os deputados também proporão investigações sobre os campeonatos estaduais: “No Ceará, o Crato foi suspenso das competições estaduais. No Piauí, o Flamengo entrou com denúncia junto ao Ministério Público local contra jogadores do próprio clube”, exemplifica Carreras. Outro objetivo da CPI é que as investigações extrapolem o futebol masculino: “Em junho de 2022, o presidente do Santos, Andrés Rueda, comunicou que um funcionário do clube tentou subornar uma atleta do Bragantino em um jogo do Campeonato Brasileiro Feminino. O clube confirmou a denúncia”. Os demais esportes também não serão esquecidos, diz o deputado. “A manipulação de resultados evoluiu e tornou-se sofisticada e direcionada. O objetivo é salvar não somente o campeonato de maior audiência, que é o da Série A. Vamos atuar para acabar com essa chaga em todas as divisões e, se necessário, em outras modalidades.”

Além do santista Eduardo Bauermann, foram suspensos de forma preventiva pelo STJD os jogadores Kevin Lomónaco (Bragantino), Gabriel Tota (Juventude, atualmente no Ypiranga), Igor Cairús (Cuiabá, atualmente no Sport), Fernando Neto (Operário-PR, atualmente no São Bernardo), Moraes (Juventude, atualmente na Aparecidense), Paulo Miranda (Juventude, atualmente sem clube) e Mateus Gomes (Sergipe, atualmente sem clube). Os oito atletas foram denunciados com base nos artigos 243 e 243A do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, que, respectivamente, especificam a “atuação deliberada de modo a prejudicar a equipe que defende” e a “atuação de forma contrária à ética desportiva com o fim de influenciar o resultado da partida, prova ou equivalente”.

Dino colocou a PF para investigar o esquema. Feldman defende uma fiscalização permanente – Imagem: Wilson Dias/ABR e Marcelo Camargo/ABR

Se condenados, os jogadores estarão sujeitos a penas como multa que pode chegar a 100 mil reais e suspensão de até 720 dias. Se comprovada também a atuação organizada e reincidente em um grupo de manipulação de resultados, a pena prevista é de banimento definitivo do esporte.

Até o fechamento desta edição, a Justiça de Goiás havia aceitado denúncia contra 16 atletas. Na primeira fase da Operação Penalidade Máxima, realizada em fevereiro e concentrada em jogos da Série B, já haviam sido tornados réus Joseph de Oliveira Figueiredo (Tombense), ­Gabriel Domingos de Moura e Marcus Vinícius Barreira (Vila Nova) e Ygor de Oliveira Ferreira, Allan Godói dos Santos, André Luís Siqueira Júnior, Paulo Sérgio Corrêa e Mateus da Silva Duarte (Sampaio Corrêa). O total de citações de jogadores no inquérito, entretanto, chega a 43 e isso precipitou uma série de afastamentos feitos pelos clubes, inclusive de jogadores de destaque, casos do artilheiro da Copa do ­Brasil Alef Manga ­(Coritiba) e do meia Maurício ­(Internacional). ­Somente na Série A foram afastados os atletas Pedrinho ­(Athletico), Bryan ­Garcia ­(Athletico), Richard ­(Cruzeiro), ­Vitor Mendes ­(Fluminense) e Nino ­Paraíba (América).

O setor é favorável à regulamentação, só discorda da taxa de 15% que o governo pretende cobrar das apostas

Um aspecto alarmante trazido à tona pelas investigações é a participação direta de alguns jogadores no aliciamento de colegas de profissão para participar do esquema de manipulação de apostas. Um dos indiciados, o volante Fernando Neto, chega a sugerir a Bauermann: “Só precisa tomar um amarelo no primeiro tempo. Mais fácil que da última vez”. Em outra conversa revelada pela quebra de sigilo de Bruno Lopez, o lateral-esquerdo Denner Barbosa, ex-jogador do Corinthians e à época no Operário-PR, afirma ter aliciado “a linha de trás todinha” do Goiânia para a partida contra o Goiás pelo último campeonato estadual. O time alvinegro perdeu de 2 a 0, com gols anotados ainda no primeiro tempo: “Preciso saber quanto você paga, que aí eu corro atrás aqui na ligação com os caras”, disse Barbosa a BL na véspera da partida. Horas depois, confirmou o acerto: “Tá ­fechado o nosso aqui. Os Goiânia (sic) é meu”.

O aliciamento de atletas chegou ao campeonato nacional dos Estados Unidos, com a comprovada participação do meia brasileiro Max Alves, que jogava pelo Colorado Rapids e foi rapidamente afastado: “Nós percebemos que os apostadores se uniam aos jogadores aliciadores na manipulação das apostas”, diz Fernando Cesconetto, procurador responsável pelo inquérito.

Rápido também foi o enriquecimento dos integrantes da quadrilha, como mostram as vultosas quantias movimentadas. Em uma única rodada – a 25ª da Série A do Brasileirão no ano passado – eles pagaram 260 mil reais a seis jogadores aliciados para, em seguida, ganhar 730 mil reais em 40 apostas feitas em ­sites diversos ao custo de 8 mil reais. Com a aposta de que os seis atletas levariam cartões, obtiveram um lucro instantâneo de 470 mil reais, que, segundo os investigadores, pode ter se repetido em várias outras rodadas. A “planilha” da 25ª rodada foi obtida com a quebra de sigilo do grupo de fraudadores. Após a conclusão do esquema, o dinheiro ganho naquela ocasião foi retirado pouco a pouco dos sites.

Cardia, da Associação Nacional de Loterias e Jogos, diz que as casas de apostas são vítimas da quadrilha liderada por Bruno Lopez, o BL – Imagem: Redes sociais

O modus operandi da quadrilha consistia em convencer os jogadores a provocar cartões amarelos ou vermelhos e, em alguns casos, a cometer pênaltis. A mulher de BL, Camila Silva da Motta, também sua sócia na empresa BC Sports Management, era responsável por fazer a transferência do dinheiro aos atletas em duas etapas, sempre com o pagamento de um sinal que, em alguns casos, chegava a 50 mil reais. Além de BL e Camila, também já foram denunciados pela cooptação dos jogadores ou pela realização das apostas Ícaro Calixto dos Santos, Luís Felipe de Castro, Victor Yamasaki Fernandes e Zildo Peixoto Neto.

Não é a primeira vez que o Brasileirão é maculado por denúncias de manipulação de resultados. Em 2005, no escândalo que ficou conhecido como Máfia do Apito, 11 partidas da Série A foram anuladas pelo STJD e tiveram de ser novamente jogadas, após uma reportagem revelar que um grupo de criminosos havia feito um acordo com os árbitros Edilson Pereira de Carvalho, então integrante do quadro da Fifa, e Paulo José Danelon, para garantir resultados anotados em sites de aposta. Os dois foram banidos do futebol e denunciados pelo Ministério Público por estelionato, falsidade ideológica e formação de quadrilha. Em 2009, no entanto, a investigação criminal foi suspensa pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Em 1982, outra reportagem já havia denunciado a Máfia da Loteria Esportiva, que envolveu 125 atletas, técnicos, dirigentes e árbitros, embora somente 20 tenham sido indiciados e nenhum condenado. Ambas as reportagens ganharam prêmios, mas o problema continuou e sempre reaparece: “No Brasil, você corre atrás do prejuízo só depois que a casa é arrombada. Depois dá uma relaxada porque o tema saiu das manchetes. E aí volta a esperar um novo escândalo”, lamenta Walter Feldman. O ex-secretário-geral da CBF afirma que a questão ética é um problema de formação da cultura nacional: “Enquanto não houver sistemas permanentes para identificar desvios, o Brasil sempre correrá atrás do próprio rabo. As mudanças só ocorrem se forem estruturantes”, diz.

Mas o Brasil não está sozinho. Vários casos de manipulação de resultados foram registrados também no rico futebol da Europa, e alguns deles tiveram grande repercussão internacional. Em 1980, Milan e Lazio, fortes equipes da Série A italiana, foram rebaixados após o escândalo de manipulação conhecido como ­Totonero, que culminou com a suspensão por dois anos de vários jogadores, entre eles o centroavante Paolo ­Rossi, que dois anos depois seria o carrasco do Brasil na Copa do Mundo. A Itália é useira e vezeira nesse tipo de caso, que se repetiu em 2006, quando a Juventus teve cassados os títulos daquela temporada e da anterior. Outro escândalo célebre aconteceu na França em 1993, quando o Olympique de Marsella, então administrado pelo polêmico empresário Bernard Tapie e vencedor da Liga dos Campeões da Europa, perdeu o direito de disputar o Mundial de Clubes após ter manipulado um jogo do campeonato nacional.

Na América do Sul, a manipulação de resultados já resultou em tragédia. O zagueiro Andrés Escobar, que chegou a ser capitão da seleção da Colômbia, foi assassinado semanas após fazer um gol contra em uma partida na Copa do Mundo de 1994, realizada nos EUA. Embora a polícia colombiana jamais tenha chegado aos autores do crime, a linha de investigação principal apontava para um acerto de contas feito por grupos criminosos de Medellín, que teriam julgado o gol contra proposital e ligado Escobar a um esquema de manipulação de resultados.

Até aqui, o entendimento do governo Lula e dos procuradores é de que tanto os clubes quanto as empresas de apostas são vítimas da Máfia das Apostas. Criada em março pelas empresas do setor de apostas, a Associação Nacional de Loterias e Jogos faz questão de reforçar essa ideia: “A manipulação funciona fora do âmbito da casa de apostas, que é a grande vítima desse processo. No momento em que o jogo é manipulado, dá um resultado completamente diferente do previsível e a casa de apostas, em vez de pagar hipoteticamente duas vezes o valor, vai pagar 30 vezes”, disse o CEO da nova entidade, Wesley Cardia, em entrevista ao jornal O Globo. Embora as empresas discordem da alíquota, em torno de 15%, com o qual o governo pretende taxar o setor, o empresário se diz a favor da iniciativa: “Brigamos há muito tempo pela regulamentação”. •

Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jogo viciado’

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