Esporte
Insuperável 7 a 1
Futebol brasileiro começa 2024 à deriva, sem treinador na Seleção e sem presidente na CBF


“No fim, as coisas saíram como eu queria.” A declaração de Carlo Ancelotti na terça-feira 2, durante a coletiva de imprensa na qual foi confirmada a renovação de seu contrato com o Real Madrid até 2026, revela que a proposta de treinar a Seleção Brasileira a partir de maio jamais foi referendada pelo italiano. De fato, a confirmação do acordo por parte de Ancelotti nunca aconteceu, mas sua chegada ao Brasil era garantida pelo agora ex-presidente da CBF, o cartola baiano Ednaldo Rodrigues, afastado do cargo desde dezembro por determinação da Justiça em mais um episódio a atingir a entidade. “Quero agradecer ao Ednaldo porque me demonstrou carinho e interesse para que eu treinasse a Seleção, mas dependia da minha situação no Real Madrid, que isso fique claro para todos. E agora aconteceu que ele não é mais presidente da Confederação”, esclareceu Ancelotti. Com ambos fora de jogo, o futebol brasileiro começa 2024 à deriva, sem treinador para comandar a Seleção e sem presidente na instituição responsável por sua gestão.
Ainda neste mês, em data exata a ser confirmada, desembarcarão no Brasil inspetores da Fifa e da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) para, segundo as entidades, “entender as causas e acompanhar os desdobramentos” da intervenção judicial que afastou Rodrigues, além do processo instaurado para a sua sucessão. Em tese, se a dupla inspeção constatar que houve interferência indevida da Justiça comum, isso pode levar a punições esportivas e financeiras para a Seleção e os clubes brasileiros participantes de futuros torneios internacionais. Em carta enviada ao presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), José Perdiz, nomeado interventor na CBF pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, as entidades pedem que novas eleições não sejam convocadas antes de sua chegada ao País para a elaboração de um parecer conjunto a ser encaminhado à presidência da Fifa. Segundo determinação do TJ, confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, Perdiz permanecerá como interventor por 30 dias, contados desde 11 de dezembro, período no qual, obrigatoriamente, deve organizar novo processo eleitoral na CBF.
Ancelotti deixou claro que treinar o time canarinho nunca foi a sua primeira opção
Não se sabe se haverá tempo para adequar as agendas de Fifa e STJ, mas Perdiz se julga pronto ao diálogo. “É dever conduzir essa etapa transitória observando rigorosamente os marcos legais com independência e imparcialidade, em consonância com o estatuto da própria CBF e da Fifa, tendo como único objetivo atender à determinação da Justiça. Nenhum prejuízo haverá para a entidade, já que toda administração será feita com mínima interferência nas questões desportivas, que deverão ser tratadas pela futura gestão”, declarou em nota. Antes do Natal, o presidente do STJD reuniu-se com representantes dos clubes das séries A e B. “Levei uma mensagem de tranquilidade e transparência. Tenho recebido representantes de clubes de várias séries e também as federações, e conversado com profissionais da CBF de todas as áreas, levando a todos a clareza da minha missão aqui. O importante é que a CBF siga funcionando normalmente, sem prejuízo em todas as suas áreas”, diz.
Enquanto o calendário não se define, é esperada pelas diversas forças políticas do futebol a colaboração do presidente afastado da CBF. Segundo a Justiça, Rodrigues poderá concorrer em um novo pleito, já que não recai sobre ele acusação alguma, tendo sido anulado somente o processo eleitoral que o levou à presidência, em março de 2022, após a cassação de Rogério Caboclo, de quem era vice. Caboclo, por sua vez, foi acusado de assédio sexual e moral contra funcionárias da entidade, em caso posteriormente arquivado. O afastamento de Rodrigues aconteceu após o TJ considerar irregular o Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre a entidade e o Ministério Público para a realização daquele processo eleitoral.
O osso é meu. Afastado do cargo pela Justiça, Ednaldo Rodrigues ainda sonha em reconquistar o comando da CBF – Imagem: Sérgio Dias/CBF
Por ora, e talvez por saber que suas chances em uma nova eleição são exíguas, Rodrigues parece aferrar-se ao cargo, no qual pretende permanecer pelo menos até o fim deste ano. Após o insucesso no STJ, ele recorreu ao Supremo Tribunal Federal, onde o ministro Gilmar Mendes determinou, em 27 de dezembro, o prosseguimento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo PCdoB contra o afastamento do dirigente. “Buscarei diálogo com todos para fazer as mudanças necessárias até a eleição de 2025, da qual não participarei”, diz Rodrigues.
As forças políticas se preparam para a sucessão de Rodrigues. Por ora, há três candidatos efetivamente no páreo: Flávio Zveiter, ex-presidente do STJD e ex-dirigente da CBF; Reinaldo Carneiro Bastos, presidente da Federação Paulista de Futebol; e Gustavo Feijó, atual vice da CBF, também afastado, porém liberado para concorrer. Carneiro Bastos conta com o apoio das três grandes agremiações da cidade de São Paulo e dos clubes reunidos no grupo Forte Futebol, que negocia a criação de uma liga no Brasil e a posterior venda dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro. Adversários na batalha pela liga, os clubes reunidos no grupo Libra apoiam Zveiter. Já Feijó tem nos bastidores o apoio dos cartolas “históricos” da CBF, os ex-presidentes Ricardo Teixeira e Marco Polo Del Nero, ambos banidos do futebol pela Fifa após casos de corrupção.
Ricardo Teixeira e Marco Polo Del Nero atuam nos bastidores, em prol de Gustavo Feijó
Em 29 de dezembro, dirigentes de 30 clubes reuniram-se em São Paulo para o lançamento da candidatura de Carneiro Bastos. Na véspera, havia sido lançada no Rio de Janeiro a candidatura de Zveiter, aliado de Rodrigues até alguns meses atrás, que elencou o fomento das federações estaduais, a criação da liga de clubes e a busca por uma arbitragem de alta performance como os três pilares para sua eventual futura gestão. “Vou reconstruir a CBF e resgatar o orgulho da Seleção Brasileira”, prometeu. Correndo por fora, Feijó fez no início de dezembro uma denúncia que abalou Rodrigues: “No seu discurso de posse, você disse que era um cara simples, que estava vendendo as aeronaves da CBF e que não se incomodava de voar em voo comercial. De repente, aparece um contrato em que você está voando na própria aeronave que vendeu. Você quer enganar as pessoas”, acusou o cartola alagoano.
Rodrigues viu seu capital político ruir na medida em que passou a cancelar acordos comerciais firmados há muitos anos pela CBF. Foi o caso, por exemplo, da empresa de marketing esportivo Klefer, comandada pelo ex-presidente do Flamengo Kléber Leite, substituída pela concorrente Brax, mais próxima ao grupo no poder até o mês passado. Rodrigues também se viu acuado pela divulgação de uma carta conjunta de três patrocinadores de peso da Seleção – Vivo, Itaú e Mastercard – que questionava sua gestão. “Houve no último período um grande fechamento da CBF, além de recuos administrativos importantes e perda da saúde financeira. Isso fez com que tivéssemos problemas até mesmo do ponto de vista dos resultados internacionais”, avalia Walter Feldman, ex-secretário-geral da CBF. Para ele, mesmo com a decisão do STF que dá fôlego a Rodrigues, a necessidade de uma renovação eleitoral está consagrada. “Ainda que se decida pela volta do Ednaldo, o mais provável é que as eleições ocorrerão.”
Assombração. Os cartolas “históricos” ressurgem das cinzas na disputa pela sucessão – Imagem: Alessandro Dantas/PT no Senado e Michele Limina/AFP
Presente em todas as discussões sobre a modernização da gestão do futebol brasileiro travadas nos últimos anos, Feldman considera que, mesmo improvável, a busca de unidade entre as forças políticas da CBF nas próximas eleições seria fundamental para o processo de reconstrução da entidade. Ressalta, porém, que essa unidade deve estar assentada em um sólido programa: “É preciso resgatar os avanços que a CBF teve durante um importante período, que se perderam por diferenças políticas e de modelos administrativos. Questões como governança, compliance, rigor fiscal e, particularmente, transparência e prestação de contas. Há grandes chances de se retomar um modelo que dá confiança tanto ao mundo do futebol quanto à sociedade brasileira. É o momento de um breque para arrumação da casa e do estabelecimento de um compromisso com o processo de renovação pelos eventuais candidatos”.
Vice-presidente do Botafogo e representante de uma nova geração de dirigentes no futebol brasileiro, Vinícius Assumpção avalia que o momento é propício para que seja rediscutido o papel da CBF como um todo. “A CBF pode cuidar melhor da Seleção principal e das seleções de base e repensar toda a sua metodologia, para que o Brasil volte a ter um futebol em condições de ser campeão mundial. Deve deixar os clubes organizarem os campeonatos internos, como o Brasileirão e a Copa do Brasil, e discutir com as federações o tamanho dos campeonatos estaduais”, diz. É uma discussão longa, admite, mas é importante que seja feita: “Não adianta escolher qualquer nome, é preciso discutir projetos. Qual candidato está disposto a rediscutir o papel da CBF?”
A pancadaria no Maracanã deve render punições da Fifa à Seleção
Assumpção aponta um grave problema, que é o próprio sistema eleitoral da CBF. Hoje, um pretenso candidato à presidência da entidade precisa ter, no mínimo, o apoio de oito federações estaduais para concorrer. Na votação propriamente dita, embora todos participem, cada voto tem peso distinto: as federações estaduais têm peso 3 e somam 81 votos; os clubes da Série A têm peso 2 (40 votos) e os clubes da Série B têm peso 1 (20 votos). Com essa matemática peculiar, apenas as federações estaduais – que em 2023 receberam quase 200 milhões de reais de repasses da CBF – decidem, na prática, quem comandará a entidade.
Desde 2018, após o pleito que elegeu Caboclo, o Ministério Público move uma ação contra a CBF por considerar que o estatuto da entidade fere a Lei Pelé, que prevê peso igualitário entre todos os votos. “Quando for dada aos clubes a prerrogativa de gerir o futebol brasileiro através da liga, é preciso também rediscutir e democratizar o sistema eleitoral. E, quando a gente fala em democracia, não é simplesmente ter o voto, mas também democratizar o processo. Hoje, os clubes são os menos ouvidos dentro da CBF. As federações estaduais se juntam, decidem quem vai ser o presidente e acabou”, lamenta o dirigente do clube carioca.
Para Feldman, o sistema de escolha do presidente da CBF é muito fechado: “A democracia se dá de fato quando permite uma ampla escolha”, afirma. Ele avalia não haver tempo para mudanças já para o próximo pleito, mas defende o início de um processo de renovação também dos mecanismos eleitorais: “É preciso uma transição para que nas eleições seguintes já esteja em vigor um modelo de escolha mais amplo e que abarque todo o mundo do futebol, e não esse modelo restrito, no qual praticamente tudo é definido pelas federações estaduais. Seja em uma composição ou disputa, tem de haver o compromisso de abertura desse sistema, o que será bom para todos”.
Barbárie. O Brasil pode perder o mando de jogos devido à desastrosa atuação da PM – Imagem: Carl de Souza/AFP
O ex-secretário-geral diz que o primeiro desafio do futuro presidente da CBF é a retomada da estabilidade das seleções: “Qualquer instabilidade no comando do futebol as afeta diretamente. As seleções sofrem com equívocos e conduções inadequadas”. Esse problema, avalia Feldman, atinge a base, o futebol feminino e a Seleção principal que hoje vive “inédita perda de prestígio e uma situação dramática nas Eliminatórias”, onde se encontra em sexto lugar após derrotas em sequência para Colômbia, Uruguai e Argentina: “Isso afugenta os patrocinadores, que são a parcela mais importante de sustentabilidade financeira do futebol. Como a CBF injeta recursos nas federações estaduais, os equívocos em relação à Seleção afetam a sustentabilidade de todo o futebol brasileiro”.
Paralelamente aos problemas eleitorais e questionamentos na Justiça, a CBF é alvo de uma segunda investigação pela Fifa, que abriu processo disciplinar após o jogo contra a Argentina pelas Eliminatórias, realizado em novembro no Maracanã, durante o qual a Polícia Militar agrediu covardemente e feriu torcedores argentinos. De acordo com a denúncia, a CBF responde pelo artigo 17 do Código Disciplinar da Fifa, que trata sobre a garantia de segurança nas partidas de futebol. Se punida pelo Comitê Disciplinar da entidade internacional, a Seleção poderá ter de mandar seus próximos jogos pelo torneio em campo neutro ou com os portões fechados aos torcedores. Na ocasião, Rodrigues foi acusado pelo presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, Rubens Lopes, de ter “deliberadamente dispensado a expertise local” para a segurança do estádio. O episódio, combinado ao péssimo momento da Seleção em campo, marcou o início do fim para mais um presidente afastado da CBF. •
Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Insuperável 7 a 1’
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