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Falta liga

Os clubes brasileiros não se entendem e o sonho de uma associação vira pesadelo

Cada um por si. A LFF é um dos três grupos pelos quais se dividem os 40 clubes da primeira e da segunda divisão. O espírito de comunidade passa longe – Imagem: LFF e Mailson Santana/Fluminense F.C
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Nas últimas duas semanas, dirigentes dos principais clubes de futebol começaram a ser convocados pela Rede Globo para discutir os direitos de transmissão das séries A e B do Campeonato Brasileiro. Seja na grama natural ou sintética, há cinco décadas a emissora da família Marinho é dona da bola. Desde que passou a monopolizar a transmissão das partidas na tevê aberta e, mais tarde, a mina de ouro do pay-per-view no cabo, tornou-se para os times uma parceira mais importante do que a própria CBF. Sem o fôlego financeiro do passado e fustigada por novos e poderosos concorrentes, a ­Globo corre contra o tempo para manter as agremiações sob suas asas. Os atuais contratos terminam no próximo ano e a empresa quer estendê-los até 2030.

Não está fácil e a razão é a guerra travada entre os clubes desde o início das negociações para a criação de uma liga nacional que encare os campeonatos de maneira unificada, como acontece nos países europeus. Acostumados ao cada um por si, os times nacionais mostram-se incapazes de pensar no bem comum. Neste momento, as 40 equipes das duas principais divisões se dividem em três grupos, a Liga do Futebol Brasileiro (Libra), a Liga Forte do Futebol (LFF) e o Grupo União. E tem sido um deus nos acuda.

Além da valorização do Brasileirão como opção de entretenimento no exterior, outro pilar da criação de uma liga seria corrigir as distorções nos pagamentos dos direitos de transmissão que, após anos de arbítrio da Globo e seus critérios que privilegiam os aspectos comerciais em detrimento dos esportivos, colocaram os clubes de maior torcida em posição de privilégio. As dificuldades até aqui para um acordo em torno da liga nacional tornam difícil, no entanto, a ­venda do campeonato antes de 2025. Apesar das promessas de entendimento em torno de uma proposta comum, o racha entre os clubes acontece justamente quando o assunto recai sobre a divisão do bolo, estimado em 5 bilhões de reais.

Flamengo e Corinthians tentam prolongar o privilégio na divisão das receitas

Acostumados ao atual modelo de pagamento baseado na venda de pacotes pay-per-view, que lhes atribui montantes até seis vezes superiores aos destinados aos adversários, os clubes de maior torcida controlam a Libra, que conta com nove representantes da Série A e sete da B. A LFF levanta, por seu turno, a bandeira do fair-play financeiro, uma divisão mais equilibrada dos recursos, e congrega sete equipes da Série A e 13 da B. Em julho, quatro clubes da Série A convertidos em Sociedades Anônimas do Futebol ­(SAFs) estabeleceram, no entanto, uma dissidência e criaram o Grupo União. Liderado politicamente pelo presidente do ­Flamengo, ­Rodolfo Landim, a Libra reúne ­Corinthians, Palmeiras, São ­Paulo, ­Santos, ­Bragantino, Bahia, ­Grêmio e Atlético Mineiro. O grupo tem um contrato de exclusividade firmado com o fundo internacional Mubadala Capital, sediado nos Emirados Árabes Unidos, disposto a desembolsar 4,75 bilhões de reais por 20% dos direitos de transmissão do Brasileirão em um período de 50 anos.

O porta-voz da LFF é o presidente do Fluminense, Mário Bittencourt, e é integrado por Atlhetico Paranaense, Internacional, América, Goiás, Fortaleza e Cuiabá. O União é formado por Botafogo, Vasco, Cruzeiro e Coritiba. A turma das SAFs, assim como o LFF, tem como parceiro outro fundo internacional de ­grande porte, o Serengeti Asset Management, dos Estados Unidos, além da brasileira Life Capital Partners (LCC), que acena com 2,3 bilhões de reais, também por 50 anos, e 20% dos direitos de transmissão.

Negócios à parte. Leila Pereira, do Palmeiras, anda incomodada com a voracidade de Landim, do Flamengo – Imagem: Fábio Menotti/Sociedade Esportiva Palmeiras e Paula Reis/Flamengo

Os três grupos, ao menos na teoria, se comprometeram a diminuir o fosso entre os clubes: a equipe com maior montante nunca receberia mais do que três vezes e meia o valor daquela com menos dinheiro. Ótimo, não fossem os detalhes. O principal nó das negociações neste momento é a proposta da Libra de adoção de um “período de transição” de cinco anos para a divisão dos recursos atingir gradualmente o patamar desejado. Nesse período, Flamengo e Corinthians, donos das maiores torcidas, continuariam a ser privilegiados, como nos moldes atuais. Os integrantes da LFF e do União discordam. Querem que as novas regras passem a valer no momento da assinatura do contrato.

Outras diferenças não seriam intransponíveis. A proposta da Libra é dividir igualitariamente 40% dos recursos obtidos com os direitos de venda da marca e das transmissões do Brasileirão. Outros 30% levariam em conta as vendas de pay-per-view e audiências de cada clube e os demais 30% conforme a performance esportiva (colocação no campeonato). A LFF sugere 45% divididos igualmente e 25% com base na audiência das equipes.  Em nota, o Grupo União, alinhado à LFF, afirma que seu objetivo é atuar para destravar as negociações e “ser a ponte” entre as duas frentes. Na prática, a dissidência idealizada pelo proprietário do futebol do Botafogo, o norte-americano John Textor, busca aproveitar o prestígio internacional dos donos das SAFs para alinhavar pré-acordos internacionais que fortaleçam o cacife do grupo tanto na oposição à Libra quanto na própria negociação com os fundos internacionais. “A ideia é chegar à proposta de divisão da LFF, mas também atingir um montante pelos direitos de transmissão que se aproxime mais do que anuncia a Libra”, descreve um integrante da SAF alvinegra. Sobre as negociações em torno da liga de clubes e também com a G­lobo, os CEOs de Botafogo e Vasco, Thairo Arruda e ­Lúcio Barbosa, disseram preferir não dar declarações públicas neste momento.

A Globo, detentora dos direitos até 2024, assiste de camarote às desavenças

A briga intensificou-se nos últimos dias, com direito a traições de ambos os lados. Pressionados pelo banco BTG, principal credor do clube, os dirigentes do Atlético Mineiro, recentemente transformado em SAF, anunciaram, em 11 de julho, a troca da LFF pela Libra, na qual vislumbram “maiores benefícios financeiros e institucionais”. O BTG é parceiro da Libra e recentemente anunciou aos clubes interessados dispor de uma “linha de crédito” de 500 milhões de reais para aqueles que desejarem “adiantar os recebíveis” de uma liga nacional ainda no papel. Proposta idêntica foi feita pela XP Investimentos à LFF. É uma iniciativa perigosa, sobretudo diante da possibilidade do ­Mubadala ou do Serengeti saírem de cena em caso de o acordo não avançar. Com isso, os “adiantamentos” se tornariam novas dívidas. Sobre o que será feito com os eventuais adiantamentos ofertados pelas instituições financeiras, representantes da Libra e da LFF afirmam ter adotado “regras para o direcionamento dos investimentos”, mas ressaltam que a decisão caberá a cada clube.

Como esvaziar o adversário significa estar mais próximo da vitória, a estratégia de cooptação será mantida pelos três grupos. Com divergências internas, a Libra, após ganhar a adesão do Atlético Mineiro, procura convencer os dirigentes do Internacional a mudar de lado. Paralelamente, o Grupo União mantém conversas com o Palmeiras, que faz um contraponto às pretensões de Flamengo e Corinthians. A presidente do clube, Leila Pereira, chegou a criticar publicamente o colega ­Landim: “Um clube não pode se achar melhor que os outros. O Flamengo não joga sozinho e precisa dos outros clubes. Temos de esquecer um pouco a vaidade de cada um para o bolo crescer”.

Confraria. O Fluminense, de Bittencourt, e o Botafogo, de Arruda, buscam caminhos alternativos nas negociações – Imagem: Nelson Perez/Fluminense F.C e Redes sociais

A despeito das diferenças entre os grupos quanto aos cálculos dos índices de audiência ou de performance esportiva, existe a esperança de um acordo amplo, geral e irrestrito ainda neste ano, a tempo de destravar as negociações dos direitos de transmissão a partir de 2025. Para tanto, as tratativas precisam avançar muito. Enquanto isso, a Globo assiste de camarote aos confrontos e acena com divisão de 40-30-30, semelhante à proposta da Libra, avanço em relação ao modelo atual. Para o futebol brasileiro e seu principal campeonato, o maior risco é permanecer como produto subvalorizado e com visibilidade nula no mercado internacional. “Se a Libra não atrair a LFF e o Grupo União, ou vice-versa, e nenhum investidor desistir, resta saber como se conseguirá organizar um campeonato negociado por dois blocos comerciais. Na prática, não haverá liga alguma, e a Globo continuará a dar as cartas”, resume um dirigente. •

Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.

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