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Vontade não basta

O governo avança em pautas relevantes, mas precisa ter orçamento adequado para combater as disparidades, avalia Matilde Ribeiro

As cotas no serviço público mexem nas estruturas, mas o efeito não é imediato, avalia – Imagem: ZeRosa Filho/Defensoria Pública do Ceará/GOVCE
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O terceiro governo Lula é o que mais conta com ministros negros desde o fim da ditadura, dentre eles Sílvio Almeida (Direitos Humanos), Anielle Franco (Igualdade Social), Margareth Menezes (Cultura) e Marina Silva (Meio Ambiente). Talvez essa presença negra na gestão tenha levado o governo a apresentar, logo na largada, um conjunto de iniciativas de alto poder simbólico, visando minimizar o racismo estrutural enraizado no Brasil. Na entrevista a seguir, concedida à repórter Fabíola Mendonça, a ex-ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, avalia os cem primeiros dias do governo Lula e fala da luta da população negra no enfrentamento ao racismo. A íntegra em vídeo está no canal de CartaCapital no YouTube.

CartaCapital: Como a senhora avalia os primeiros cem dias do governo Lula? Foi um período bastante turbulento, não?

Matilde Ribeiro: Desde que Lula venceu as eleições, sabíamos que o novo governo enfrentaria muitas dificuldades, porque o estrago deixado pela gestão anterior foi muito grande. Com Bolsonaro, houve um desmonte das políticas públicas, um descaso com questões ultraperigosas para a população, como a negligência em relação à pandemia de Covid-19, ao avanço do desemprego e ao vertiginoso aumento do número de pessoas em situação de rua, entre outras. Em cem dias, seria impossível encaminhar políticas de maneira célere. Mesmo assim, foi retomado o Minha Casa Minha Vida, o Bolsa Família e políticas educacionais. O governo retomou o trato com o Legislativo à base do diálogo, as relações internacionais foram restabelecidas. As coisas estão andando. Políticas públicas não são construídas em um passe de mágica.

“As debilidades são bem maiores hoje do que há 20 anos. Por outro lado, o governo está mais preparado”, diz a ex-ministra

CC: A senhora fez parte do primeiro governo Lula. Quais as diferenças e semelhanças que a senhora identifica entre o atual cenário e aquele de 20 anos atrás?

MR: Assumi a pasta da Igualdade Racial em 21 de março de 2003, peguei o bonde andando. O que posso destacar? Bem, naquela primeira gestão não havia tanta ­expertise de gestão pública como se tem hoje. Era tudo novo tanto para Lula quanto para seus ministros e gestores. Havia uma bússola para seguir, criada no período de transição, mas os dados que encontrávamos na realidade eram muito diferentes daqueles que nos foram informados pela gestão anterior. À época, dizíamos ter recebido do governo FHC uma herança maldita. Não fazíamos ideia da herança maldita que iríamos receber agora, após as gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro. As debilidades são bem maiores. Por outro lado, hoje, o governo está mais preparado.

CC: Nos primeiros cem dias, foram anunciadas diversas iniciativas para atenuar o racismo estrutural no País, começando pelo número recorde de ministros negros e a reserva de 30% dos cargos de confiança na administração federal para pessoas afrodescendentes. O presidente Lula também sancionou a lei que equipara a injúria racial ao crime de racismo. Essas ações são suficientes para abalar uma estrutura racista erguida durante três séculos e meio de escravidão e que segue de pé até os dias de hoje?

MR: Essa pergunta é bem interessante, porque esses encaminhamentos são marcos importantes. Os 30% em relação aos cargos mexem com a estrutura, mas não mexem imediatamente, porque deverá acontecer até dezembro de 2026, o último ano de gestão. Tem de ser feito um planejamento muito detalhado e, ao mesmo tempo, um monitoramento eficaz, porque não será fácil chegar a esses termos em quatro anos. Além disso, 30% parece um número aleatório, considerando que a população negra soma quase 60% dos habitantes do País. Então, eu diria que, sim, é possível inovar em relação ao que foi feito nas gestões anteriores, mas é também necessário retomar um conjunto das políticas antirracistas e assegurar um orçamento adequado, porque sem recursos não adianta ter vontade política. A questão racial tem de passar pelo arranjo da transversalidade entre os vários ministérios.

CC: Por enquanto, as iniciativas parecem estar muito no plano simbólico, mas faltam ações efetivas para reduzir as disparidades raciais. A lei do ensino obrigatório de História e Cultura Afro-Brasileira, por exemplo, acaba de completar 20 anos, mas ainda não emplacou nas escolas. O que falta para que essa disciplina faça parte da grade curricular da educação básica e qual é a importância de projetos como este no combate ao racismo?

MR: Na verdade, é muito mais que uma disciplina. A Lei 10.639, de 2003, indica uma mudança do modus operandi que tem a ver com a Lei 11.645, de 2008, a indicar a mesma necessidade de recuperação da história e cultura do povo indígena. Isso requer capacitação dos professores, revisão de livros didáticos, envolvimento da comunidade escolar e das famílias. Em 20 anos, o resultado pode ser considerado pequeno, mas nenhuma lei é colocada em prática de maneira a suplantar rapidamente as dificuldades. O Brasil é muito racista. O SUS tem mais de 30 anos e até hoje necessita de fortalecimento para atender a população de maneira adequada. A sociedade civil precisa estar atenta e cobrar do governo ações efetivas. É importante ter mais participação da sociedade e isto se aplica em todas as áreas, sobretudo nessa que estamos falando, porque mexe com costumes, crenças e estruturas.

O terceiro governo Lula tem o maior número de ministros negros da história republicana. O avanço simbólico é relevante, mas é preciso atacar as desigualdades que afetam a base da população – Imagem: Lula Marques/ABR e Nelson Almeida/AFP

CC: Ainda no campo da educação, gostaria que a senhora fizesse um balanço dos dez anos da Lei de Cotas nas universidades públicas.

MR: Hoje, sou professora universitária da Unilab, uma universidade diferenciada, que tem por missão a interiorização e a internacionalização, uma vez que recebe alunos de países de língua portuguesa, sobretudo estudantes vindos da África. As cotas mudam a fotografia da universidade e isso significa ter muito mais negros e negras nas instituições federais. Dez anos é um período importante para implementação, mas insuficiente para se trabalhar a consciência. Então, é muito importante que essa política continue e que pobres, negros e indígenas possam estar mais e mais nas universidades.

CC: Preocupado com o genocídio da juventude negra nas periferias, o ministro Sílvio Almeida sugeriu a descriminalização do porte de pequenas quantidades de entorpecentes para acabar com a malfadada política da “guerra às drogas”. A senhora acha que o presidente Lula está disposto a levar esse debate adiante, mesmo possuindo uma frágil base parlamentar e tendo de enfrentar uma extrema-direita barulhenta no Congresso Nacional?

MR: A extrema-direita está cada vez mais atenta aos nossos passos e a forma como tem tratado a existência e a construção de uma gestão democrática e popular tem sido vexatória, haja vista o que aconteceu em 8 de janeiro. Não podemos pestanejar diante desse grupo. Em relação ao genocídio e à violência cotidiana contra os pobres e, sobretudo, os jovens negros, mortos diante da chamada bala perdida, o atendimento a essa questão é premente. O sociólogo Emir Sader tem um artigo que diz que a violência e o genocídio que abatem a juventude negra são um dos maiores escândalos do Brasil. Ele fecha a ideia dizendo que a gestão pública tem de, muito urgentemente, mexer no seu corpo de segurança, no sentido de qualificá-la, humanizá-la e puni-la. Concordo plenamente. Não acho que qualquer matéria que abale a estrutura das milícias, muito bem conhecidas pela extrema-direita, vá passar facilmente no Congresso. O Brasil é muito reacionário, temos histórico de ditaduras, de coronelismo, de colonialismo. Não é fácil avançar.

CC: Em relação à representatividade, existe um movimento que defende a indicação de uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal. Qual seria a importância de uma iniciativa como essa?

MR: Quando se fala de cargos públicos pelo olhar conservador da sociedade, a visão é de que os negros não estão capacitados para assumir espaços de poder. Isso não é verdade. Já tivemos ministros no Executivo, no próprio Supremo, como o ministro Joaquim Barbosa, uma figura muito controversa, mas não por falta de competência, e sim por motivos ideológicos. Vejo os indígenas fazendo um movimento muito forte para cada vez mais ocuparem as estruturas de poder. Temos a comunidade LGBTQIA+ com deputadas federais, estaduais. Estamos num momento proativo e muito importante. Por isso, a campanha é mais que justa e necessária. Passou da hora de termos mais negros e negras em cargos de comando, em outros espaços de poder.

“O Brasil é muito reacionário, temos histórico de ditaduras, de coronelismo, de colonialismo… Não é fácil avançar”

CC: Sabemos que o racismo está impregnado nas instituições e em todas as relações sociais. Quando ministra, a senhora enfrentou algum tipo de dificuldade pelo fato de ser negra, inclusive na divisão do Orçamento?

MR: O presidente Lula, no discurso da minha posse, me deu dois conselhos: “Não peça licença para entrar na sala de nenhum colega seu, seja ministro ou ministra, porque eu estou te empossando como ministra igual a todos”. E o outro foi: “Você será uma peregrina na Esplanada”. Nunca me esqueci disso. Parecia uma fala sem importância para muitas pessoas, mas entendi logo de cara. Não é fácil ser negro neste país e transitar no mundo dos brancos. Eu vivi situações muito palpáveis, desde discriminações e vetos em elevadores, em salas e gabinetes dos donos de jornais, e até mesmo dentro do governo. A mídia, por duas vezes, me colocou na berlinda. Uma vez por uma fala pública entendida como racista, mas não era, e a segunda por gastos nos cartões corporativos. Tive de sair do governo tanto pela pressão midiática quanto pelos trâmites dentro do governo, e nem todo mundo entendeu o que ocorreu comigo. Não roubei o governo, a honestidade é fundamental. Tanto que continuo sendo uma trabalhadora, sou professora, pouco viajo porque não tenho dinheiro para isso. O que mudou foi minha estrutura como pessoa, como ativista, como estudiosa. Fiquei mais humana, no sentido de entender as necessidades dos brasileiros. Sou uma pessoa muito melhor do que era.

Nota da redação: Matilde Ribeiro deixou o governo após a mídia fazer enorme estardalhaço com seus gastos no cartão corporativo. Quase a totalidade das despesas era para o aluguel de automóveis usados por sua equipe. A ministra reconheceu ter usado o cartão, por engano, no período de férias, incluindo uma compra de 461 reais em uma loja free-shop, que alimentou as manchetes dos jornais por semanas. Antes de se demitir, ressarciu os cofres públicos. Seu colega no Ministério do Esporte, Orlando Silva, também foi execrado por comprar uma tapioca de 8 reais. Passados 16 anos, os ministros negros de Lula continuam sendo alvo de ataques rasteiros nas redes sociais por conta desses gastos irrisórios. Já Jair Bolsonaro, adulador de torturadores que torrou milhões de reais em hotéis de luxo em suas férias, recebeu um tratamento bem mais condescendente. O ex-capitão, como todos podem notar, é branco. Mas isso deve ser apenas mais uma coincidência no último país das Américas a abolir formalmente a escravidão. •

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vontade não basta’

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