Entrevistas

Vladimir Safatle: ‘A esquerda não pode nunca mais perder a sua força de pautar a agenda política’

Em entrevista a CartaCapital, o filósofo e professor comenta o papel que enxerga para esquerda brasileira nos próximos anos

VLADIMIR SAFATLE. FOTO: DIVULGAÇÃO
Apoie Siga-nos no

Diante da expectativa de um novo governo Lula, Vladimir Safatle, filósofo e professor, reivindica espaço para uma oposição à esquerda. Em sua opinião, não haveria mais ‘benéfico’ e ‘positivo’ para o petista do que conviver com uma oposição do próprio setor dentro do Congresso.

Esta oposição, explica é um dos caminhos para que Lula não seja forçado pelo jogo político tradicional, por uma série de circunstâncias, a ‘pender para a direita’. “Não tem nada melhor para o governo que virá do que ele ter uma oposição de esquerda”, diz. “Ele vai ter um setor que vai estar forçando ele a não cair para direita. Política funciona como um sistema físico”.

Na entrevista ele ainda explica o porque, apesar de suas críticas históricas a Lula, ter decidido apoiar o petista.

Na conversa com CartaCapital, Safatle explica ainda o que o motivou a organizar, neste momento político atual do Brasil e da América Latina, os discursos de Salvador Allende, ex-presidente chileno deposto e morto pela Ditadura Militar no país durante os anos de 1970. Para ele, a tradução brasileira, inédita até então, é uma forma de contribuir com a criação de um novo modelo de governança para a esquerda local.

“Você tem um continente que procura novas formas e, dentro desse horizonte, seria importante nós recuperarmos as dimensões fundamentais dessa nossa grande história de transformação de Allende”, diz. Ele enfatiza na conversa o fato de Allende ter conseguido fazer mudanças significativas na força de se fazer política sem a necessidade de militarizar o seu governo.

Editado sob o título de ‘A Revolução Desarmada’, pela Ubu, o livro reúne os principais discursos de Allende, incluindo a sua última declaração pública do golpe sofrido, proferida em 11 de setembro de 1973. A publicação traz ainda o prefácio de Gabriel Boric, novo presidente chileno.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

CartaCapital: Por que reunir as palavras de Allende neste contexto de retomada de governos progressistas na América Latina? 

Vladimir Safatle: Essa é a primeira vez no Brasil que os discursos Allende são editados e traduzidos na forma de um livro. Então, ainda que seja algo de mais de 50 anos, é uma obra original. Ao meu ver, a importância desse material não é só documental, embora também se trate disso, da visão do que foi essa experiência revolucionária a partir de um dos seus protagonistas principais. Mas, além do caráter documental, tem também um caráter de recuperar uma matriz da experiência de transformação social revolucionária latino-americana, que é essa que foi tentada no Chile, e que era descrita na época como a via chilena para o socialismo.

Pois bem, quando eu escolhi colocar como título a revolução desarmada para mim era muito importante que o termo revolução estivesse ali. Muitas vezes se lê a experiência chilena, ou sobre as vias do populismo latino-americano, como uma discussão entre revolução ou reformismo. Só que eu diria que a via chilena é outra coisa, não é nenhuma dessas duas alternativas. Acho que é importante saber mobilizar melhor categorias analíticas e não tentar criar grandes conjuntos, porque eles não existem. E por que que eu digo isso? Porque, primeiro, não há nenhuma condição de chamar a experiência chilena de uma experiência reformista. Não há reformismo no mundo que tenha estatizado o sistema bancário. Não está, por exemplo, dentro do horizonte reformista, estatizar o setor principal da economia nacional, que na época era o cobre. Então na verdade a gente está diante de um processo de revolução gradual e é um processo revolucionário que tem como uma das suas exigências impedir a militarização da sociedade.

O Brasil não teve, durante todo esse tempo, um único projeto no Congresso para redução da jornada de trabalho. Isso é uma vergonha, é um absurdo completo

Então, respondendo a segunda parte da questão, acho que é importante colocar isso hoje porque, de fato, a América Latina se vê diante de uma espécie – é caso brasileiro – de uma mobilização de resistência a tendências fascistas de certos setores da sociedade. A gente sabe que existe esse fascismo no Brasil desde os anos 30 e que volta agora com Bolsonaro, que é alguém que termina os seus discursos usando o lema integralista: ‘Deus, Pátria, Família e Liberdade’. Então você tem esse tipo de mobilização junto com processos de esgotamento do populismo latino-americano no modelo argentino; dificuldades do mesmo modelo no Chile e na Colômbia; e também algumas coisas interessantes que aconteceram na Bolívia. Você tem um continente que procura novas formas e, dentro desse horizonte, seria importante nós recuperarmos as dimensões fundamentais dessa nossa grande história de transformação de Allende.

CC: Muitas explicações para esse novo movimento da América Latina estão sendo formuladas neste momento. Para você, o que melhor explica essa retomada progressista na região?

VS: Olha eu diria o seguinte: primeiro você tem o esgotamento daquilo que chamamos de progressivo latino-americano, que foi o que a gente viu nessa primeira década do Século XXI. É um modelo que pregava uma certa luta pela igualdade social, mas preservando de forma absolutamente inequívoca as características fundamentais do capitalismo. Mas esse modelo se esgota na segunda década do Século XXI de várias maneiras. No Brasil, ele se esgota de forma dramática e aí vem crescendo o Bolsonaro, todos os desmontes, toda a destruição de direitos trabalhistas e das estruturas de seguridade social. Mas ele entra então no segundo momento de consolidação recente. Esse segundo momento não é claro ainda se efetivamente você tem a tentativa de recuperação do progressismo.

Acho que o Brasil tem um pouco disso, de recuperação desse modelo. Aqui, todo mundo sabe que não há nenhuma condição de ter Bolsonaro por mais quatro anos. Eu diria que parece que uma das contribuições fundamentais desse momento é lembrar que a esquerda não pode nunca mais no continente, principalmente no Brasil, perder a sua força de pautar a agenda política, impor uma agenda mais claramente vinculada ao horizonte de uma sociedade igualitária e uma sociedade pautada pela soberania popular.

Agora, a gente tem no continente desde disso que eu falei do Brasil, até, por exemplo, situações onde um populismo infinito de esquerda, como era na Argentina, que tem suas tensões internas. Inclusive, por lá, há um risco muito grande de perder a próxima eleição. Há também o modelo chileno, que ainda se bate, procura uma alternativa. Tentaram uma grande transformação institucional através da nova constituição que foi rechaçada. Isso foi um trauma histórico para a esquerda latino-americana. Com certeza foi uma derrota brutal. Então ele está, digamos assim, em uma situação meio atordoada. Por fim, você tem alguns outros países, caso da Colômbia do Petro, que a gente ainda espera para ver o que de fato acontecerá.

Na América Latina a gente fica entre uma espécie de tentativa de grandes conciliações como garantia de governabilidade, né? O Brasil foi o grande modelo nesse sentido e o modelo que, no mínimo, a gente pode dizer que não deu muito certo. E há essas tentativas que são exatamente como essas do Chile de Allende, que motivaram a editar esse livro agora. É uma tentativa de recuperar as matrizes da constituição de uma agenda profunda de transformação. O caso chileno é interessante porque ele te obriga a não mais fazer aquele tipo de recusa meio primária de dizer que o que você quer é uma revolução, logo, não vai dar certo, porque revolução teria luta armada e não se tem estrutura para essa luta armada. Falar isso é uma maneira muito desonesta de você expulsar e terminar o debate uma vez por todas, evitando essa outra alternativa, porque a experiência chilena mostra que você pode efetivamente conservar estruturas políticas da Democracia Liberal, mas forçando elas por todos os lados, criando dinâmicas cada vez mais profundas de Democracia Direta.

A esquerda não pode nunca mais no continente, principalmente no Brasil, perder a sua força de pautar a agenda política

Por exemplo. Ele criou 61 fábricas autogeridas. Eram chamados cordões industriais, que é uma clássica pauta da esquerda no mundo inteiro e que eu sempre questiono aos colegas brasileiros sobre: o que aconteceu com essa pauta entre nós? Onde ela está? Quem está falando sobre isso? Por que ela não está sendo discutida? A inteligência prática da classe trabalhadora sabe como fazer essa autogestão, essa redução de jornada sem redução salarial. No Brasil há exemplos disso, eles bateram na porta do governo Lula, mas não foram recebidos, nunca receberam absolutamente nada até o momento que alguém chegou para eles e falou que aquilo ali, autogestão, não era uma prioridade para nós.

Então acho que é importante pensar nisso agora ainda mais nesse momento. A gente precisa não deixar que alguma coisa como essa ocorra de novo em hipótese alguma. E é aí que o modelo e a experiência chilena seriam interessantes.

CC: Quando a gente fala de América Latina, eleições, democracia, inevitavelmente, a gente deságua a falar em golpes. Estamos na iminência de um novo golpe?

VS: Há quatro anos a gente está nessa situação. Desde que o Bolsonaro entrou ele nunca cansou de colocar em risco a continuidade da democracia brasileira. Ele tentou golpes em várias situações. Ele está criando uma dinâmica que a gente poderia chamar de autoritarismo furtivo. Ele vai tirando o horizonte de funcionamento das instituições até o momento em que você terá todas as instituições alteradas. Hoje, por exemplo, vivemos em um país em que as Forças Armadas acham que são um poder moderador. Elas não têm o menor problema em sair chantageando o Tribunal Federal de Justiça. Mesmo do ponto de vista da democracia liberal, não há cabimento em vocês saber o nome de general. Isso não existe. O Exército não faz parte do processo político e conseguiu fazer isso agora.

É sempre bom lembrar que, na verdade, ele simplesmente recupera uma matriz de tensão que interna na América Latina. É uma junção fascista-militarista que nós vemos no Brasil, mas que não é um exceção na América Latina, é um elemento constituinte da história latino-americana, eu diria. Essas mesmas tendências da extrema-direita estavam presentes no Chile, por exemplo. Na eleição de Boric tivemos Kast.

No Brasil, o que acontece é que esse pessoal da ditadura, dos porões, voltou. Não tem militar na política na Argentina, por quê? Porque ela soube tratar o tema e responsabilizar os responsáveis pela ditadura, foram presos. Algo que o Brasil não fez e a gente passou décadas insistindo nesse ponto, que o Brasil não poderia negligenciar, que era dever construir uma Justiça, suspender a Lei da Anistia e efetivamente julgar todos aqueles que foram responsáveis por crimes de terrorismo de estado e crimes contra humanidade. A gente tinha que ter feito isso se nós quiséssemos ter uma democracia minimamente assegurada, mas não fizemos. O resultado é esse.

CC: O senhor defende um projeto que se intitula radical no quesito de igualdade. Possivelmente teremos um terceiro mandato de Lula. Qual é, então o papel que o senhor vislumbra para essa esquerda mais radical? 

VS: Eu vou falar de uma forma muito clara, porque eu acho que é muito importante ser claro nesse momento. Eu vou dar, inclusive, um exemplo. Veja, o PT e o governo do Lula são de uma tradição sindical e uma das pautas clássicas do sindicalismo é a redução da jornada de trabalho, é um clássico, né? E até hoje nos temos jornadas de 44 horas semanais. O Brasil não teve, durante todo esse tempo, um único projeto a ser votado no Congresso para redução da jornada de trabalho. Desculpe, mas isso é uma vergonha, é um absurdo completo. E aí podem me dizer: ‘Ah, mas não tinha correlação de força suficiente’. Que diferença faz isso? A política não funciona assim.

Veja o que as feministas argentinas ensinaram pra gente. Elas foram apresentaram um projeto de lei sobre o aborto que sabiam que não seria aprovado, não tinha a correlação de força. E não fizeram por masoquismo, elas sabiam que, ao fazer isso, obrigavam a sociedade a discutir a questão. Criaram uma agenda e, ao criar uma agenda, você consegue mobilizar as pessoas, você coloca as ruas para discutir, o trabalho, a imprensa. E o que aconteceu depois disso? Elas perderam sabendo que iam perder, mas acumularam força para retornar com o tema. Elas mudaram a correlação de forças, entendeu? Quatro anos depois, apresentaram o projeto de novo e ganharam.

Ou seja, para ganhar, tem uma questão fundamental, você precisa querer ganhar, entendeu? Então esta é a função de uma bancada de esquerda, fazer com que isso tudo nunca mais se repita. ‘Ah isso vai mas isso vai tencionar a nossa coalizão’, pouco importa! A defesa da classe trabalhadora vem em primeiro lugar. Não existem essas estratégias florentinas de não você faz tudo ao contrário do seu interesse para depois dar tudo certo no final. Isso nunca vai acontecer. Por fim, eu diria: não tem nada melhor para o governo que virá do que ele ter uma oposição de esquerda. Ele vai ter um setor que vai estar forçando ele a não cair para direita. Política funciona como um sistema físico. É o sistema físico de ação e reação, de pressão. Então se você não tem pressão, você não tem um polo que vai te puxar para um lado, você cai para o outro. É isso que sempre aconteceu na política brasileira.

CC: O Brasil foi um ator relevante globalmente durante os governos Lula. Hoje, esse papel foi completamente destruído. Há como recuperá-lo? 

VS: Os dois setores mais bem-sucedidos do governo Lula foram a política externa e a educação. Eles têm realmente contribuições muito relevantes e significativas, porque havia uma visão estratégica bastante correta, a parte, claro, a questão do Haiti. Mas a política Sul-Sul foi uma estratégia extremamente importante. A maneira com que o Brasil e a Turquia, por exemplo, negociaram o acordo nuclear com o Irã, curto-circuitando todo o eixo dos países centrais e mostrando que era possível um acordo, foi muito positiva.

Mas falando daqui em diante, tem duas coisas importantes. Existe uma espécie de diplomacia ecológica que acho que seria um elemento fundamental a ser pensado atualmente e o Brasil hoje é a maior fronteira de devastação ecológica do mundo devido ao agronegócio e seu extrativismo brutalizado e colonial. É algo que tem consequências catastróficas para a vida humana no geral. Essa questão toda exige uma diplomacia, uma articulação cruzada, porque isso não é só um problema brasileiro ou da região, é um problema global. O Brasil tem condição de liderar esse processo.

Outro ponto é que o eixo de uma política de esquerda vai ser sempre tentar recuperar a dinâmica dos países não alinhados do terceiro mundo é isso. Acho que isso seria uma coisa importante a se recuperar. Há também o fortalecimento regional da América Latina, espera-se que o Brasil retome a sua posição, deixa de ser o doente da sala e retoma, de fato, sua posição de mediador e interlocutor privilegiado.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo