Entrevistas

Solução para o conflito Israel-Palestina só virá pelas grandes potências, diz professor

Para Bruno Huberman, da PUC-SP, retorno à opção agressiva resulta da explosão de uma panela de pressão que ferve há 50 anos

Registro do bombardeio de Israel sobre a Faixa de Gaza, em 9 de outubro de 2023. Foto: Mahmud Hams/AFP
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Se os governos de Israel e Estados Unidos tivessem se esforçado mais, nos anos 1990, pela criação de um Estado da Palestina, a situação seria distinta e milhares de vidas israelenses não teriam sido perdidas. Por isso, a responsabilidade sobre a violência não pode ser imposta apenas sobre os palestinos. A avaliação é de Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, em entrevista a CartaCapital nesta segunda-feira 9.

O histórico conflito entre o Estado de Israel e os palestinos do Hamas se agravou desde o último sábado. “Começamos”, disse o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, na noite desta segunda, após horas de intenso bombardeio na Faixa de Gaza.

Resumidamente, as últimas 48 horas foram marcadas por:

  • uma invasão, via terra, mar e ar, de guerrilheiros do Hamas a áreas do território israelense, na ação mais violenta dos últimos 50 anos;
  • uma declaração de guerra de Israel, iniciando uma retaliação em larga escala. Há intenso bombardeio sobre a Faixa de Gaza;
  • mais de 1,5 mil mortes, segundo o balanço mais recente, além de milhares de feridos;
  • negativas de ambos os lados sobre a negociação pela troca de prisioneiros.

Na tarde desta segunda, pelo horário de Brasília, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, o português António Guterres, disse estar “profundamente angustiado” com a imposição de um cerco total por Israel à Faixa de Gaza.

“Embora reconheça as preocupações legítimas de Israel com a sua segurança, também lembro que as operações militares devem ser realizadas de acordo com o direito humanitário internacional”, afirmou. Ele ainda condenou os “ataques abjetos” do Hamas.

Leia a seguir os destaques da entrevista com Bruno Huberman:

CartaCapital: É possível projetar até que ponto essa nova etapa do conflito escalará?

Bruno Huberman: A referência são os ataques anteriores. Em 2014, Israel fez ataques por semanas, em que milhares de mísseis foram disparados contra a Faixa de Gaza. A reação popular foi tamanha diante do massacre que Israel ficou anos sem fazer operações em Gaza por meio de bombardeios aéreos. Veio a fazer somente em 2021.

Prever o que vai acontecer é difícil, mas estamos vendo a maior mobilização militar de Israel desde a Segunda Intifada [no começo dos anos 2000], quando houve um conflito na Cisjordânia e na Faixa de Gaza entre Israel e forças guerrilheiras palestinas, seguido por um confronto militar com o Hezbollah, em 2006, na fronteira entre Israel e Líbano.

Então, o que temos visto, seja pelos libaneses como o Hezbollah, seja pelos grupos palestinos, sempre são reações a ocupações israelenses. E a ocupação israelense do território da Palestina dura desde 1948, seguida por 1967, quando teve a ocupação dos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Já a colonização sionista do território palestino remonta ao final do século XIX.

Toda a violência e toda forma de resistência palestina devem ser entendidas dentro desse contexto de resistência à colonização e à ocupação militar, nesse contexto de tentativa de buscar caminhos para a libertação nacional.

CC: Em que estágio do conflito estamos?

BH: Em um estado de sítio. Israel cortou todo o fornecimento de energia, água e alimentação na Faixa de Gaza. Todo mundo diz que a Faixa de Gaza está desocupada, mas o que a gente vê desde 2005 é um cerco. Israel retirou os assentamentos que tinha na Faixa de Gaza e desde então tem um cerco marítimo, terrestre e aéreo. Ninguém entra, ninguém sai. Fornecimento de energia, esgoto, alimentos, tudo é regulado pelo Estado de Israel.

É uma panela de pressão esquentada há mais de 50 anos que explodiu. Nunca tantos israelenses foram mortos pelos palestinos

Mesmo durante a guerrilha palestina na Guerra Fria, que foi muito mais forte do que o Hamas é hoje, os guerrilheiros palestinos não conseguiram agredir os israelenses como foi feito neste fim de semana. Estamos diante de um momento histórico.

CC: A solução a partir da criação de um Estado da Palestina ficou mais distante?

BH: A solução da questão Palestina-Israel é muito difícil. O Estado da Palestina seria construído na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, mas a Cisjordânia tem por volta de um milhão de colonos judeus, toda uma infraestrutura residencial, viária e militar.

Se fosse criar um Estado palestino, significaria remover esses colonos – coisa que Israel não aceita – ou criar um Estado palestino em territórios menores do que os palestinos reivindicam, que já são apenas 22% da Palestina histórica.

Os palestinos já aceitam ficar com 22% e reconhecem o Estado de Israel, mas mesmo assim o Estado não foi criado, porque os israelenses não aceitam esse mínimo que os palestinos passaram a defender.

Os palestinos sempre foram contra a criação do Estado de Israel, sempre reivindicaram a criação de um único Estado democrático para todos e todas que vivem naquele território, mas o Estado de Israel não aceita isso, porque um Estado democrático significa o fim do projeto sionista, fundado na maioria demográfica judaica sionista do Estado. E o Estado Democrático de Direito para todos e todas significa o fim do projeto sionista e do Estado de Israel como ele é hoje.

Parcelas gigantescas da sociedade israelense não aceitam um acordo. Do outro lado, a Autoridade Palestina, liderada pelo Fatah, tem feito tudo o que os israelenses e a comunidade internacional demandam, e o que Israel e os americanos dão em troca? Absolutamente nada.

São 30 anos desde os Acordos de Oslo e até hoje não há um Estado da Palestina. Enquanto isso, o Hamas age de uma forma violenta e conquista muito mais coisas. Ele sequestra um soldado israelense e consegue libertar mil prisioneiros. O Fatah não conseguiu nada nos últimos 30 anos. Então, de certa forma, o Estado de Israel e o Ocidente fortalecem o Hamas, ou seja, fortalecem a opção violenta e enfraquecem a opção pacífica.

Esse retorno mais agressivo da opção violenta e o apoio da sociedade palestina resultam desses 30 anos de decepção e de acúmulo dessa panela de pressão de raiva, rancor, depressão, ausência de futuro e distopia

A gente tem de entender a violência dentro desse contexto. Há 30 anos, Israel e Estados Unidos poderiam ter feito um esforço maior de criação do Estado da Palestina, e a gente estaria numa situação muito distinta. Esses milhares de israelenses não teriam morrido. Então, a responsabilidade sobre isso não pode ser repousada somente sobre os palestinos, mas sobre as elites políticas governantes de Israel ao longo de sua história, particularmente nas últimas décadas, que colocaram Israel nessa situação. Essa situação faz da violência a única possibilidade para ambos os lados se relacionarem.

[Nota: Considerado por Israel, pela União Europeia e pelos Estados Unidos como uma organização terrorista, o Hamas controla a Faixa de Gaza desde que expulsou pelas armas seu rival Fatah, em 2007, dois anos depois de Israel ter se retirado do enclave, onde tinha colônias]

CC: Em Israel, Benjamin Netanyahu vive seu momento de maior contestação. Esse cenário pode impactar a resposta à ofensiva do Hamas?

BH: Pode ser um ingrediente no cálculo dos palestinos de fazer uma agressão militar desse tamanho, vendo que a sociedade israelense está dividida de uma forma tão profunda como não estava desde os anos 1990.

A sociedade israelense sempre teve uma unidade grande, e essa unidade passou a ser cindida pela ascensão de grupos religiosos nos anos 1970 e que foram se fortalecendo. E sob o atual governo de Netanyahu é a primeira vez que esses grupos de extrema-direita, messiânicos e ultranacionalistas estão no poder.

A gente tem visto grandes manifestações em Israel, mas elas não pedem o fim do apartheid, o fim da ocupação, um Estado democrático para todos e todas que vivem entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, que é toda a Palestina histórica, incluindo o que a gente considera Estado de Israel, território da Palestina, Cisjordânia e Faixa de Gaza.

O que está em disputa em Israel é a democracia para os judeus. Da mesma forma como havia democracia para os brancos sul-africanos no apartheid, há democracia para os judeus em Israel. Só que a gente vê no território um apartheid, em que você tem uma parcela soberana no território e outra parcela desse Estado com pessoas sem nenhuma forma de cidadania.

Em Israel, o que a gente tem visto é o crescimento da união, isso é o que historicamente acontece quando Israel é agredido, em um primeiro momento. Mas em um segundo momento pode gerar novas divisões.

Além dessa divisão interna em Israel, essa agressão de uma coalizão liderada pelo Hamas tem como alvos os acordos políticos de normalização das relações diplomáticas de Israel com as nações árabes. É um processo antigo, vem de 1979 com o Egito, em 1994 com a Jordânia e, mais recentemente, em 2020, com os Acordos de Abraão, em que Israel normalizou relações com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos.

Foi um grande isolamento diplomático dos palestinos. E na semana passada a notícia era a normalização das relações entre Arábia Saudita e Israel.

São nações árabes que sempre defenderam o Estado da Palestina, mas essa defesa tem sido mais entre as populações do que entre as elites que governam os Estados – estas têm abandonado a questão palestina. A Arábia Saudita é o principal ator do mundo árabe, faz essa movimentação e vai provocar transformações profundas na geopolítica da região. A aproximação já tem provocado, e uma normalização das relações vai provocar ainda mais.

CC: O Wall Street Journal informa que o Irã teria ajudado a planejar a ação do Hamas. Qual é a ligação entre Irã e Hamas? E quais atores podem emergir como mediadores em um futuro processo?

BH: O Irã tem negado, a inteligência americana tampouco confirma.

O Irã compõe o chamado Eixo da Resistência, do qual fazem parte também a Síria, o Hezbollah no Líbano e o Hamas na Palestina. São grupos mais alinhados com a Rússia e, agora, com a China. O Irã entrou para o Brics, mas está ao lado da Arábia Saudita, como parte dessa mediação que os chineses lideraram para fazer um acordo de paz entre Irã e Arábia Saudita. Uma atuação inédita dos chineses no Oriente Médio.

Irã e Hamas são aliados, o Catar também é um importante apoiador do Hamas, além da Síria. Mas é difícil saber como esse apoio se dá hoje em dia.

Por exemplo: não tem banco internacional em Gaza, então como se recebe esse dinheiro? Os túneis são todos fechados, a fronteira com o Egito é fechada, a fronteira com Israel é fechada. Como o Hamas se financia? Como a vida em Gaza se mantém minimamente, além das doações internacionais? A dimensão desse apoio é difícil de saber.

CC: E os possíveis futuros mediadores?

BH: Historicamente, o Egito tem sido mediador de cessar-fogo na Faixa de Gaza, mas o cerco à Faixa de Gaza só é possível com o apoio do Egito. O Egito já foi o maior aliado da luta palestina, nos anos 1970, e se tornou aliado de Israel e dos americanos.

O Egito é o segundo país que mais recebe ajuda militar dos Estados Unidos, depois de Israel. Então, o Egito, caso rompa, tem muito a perder. O Egito pode atuar como mediador para um cessar-fogo, mas a gente nunca viu uma agressão desse tamanho, então não sei se o Egito seria um ator capaz de fazer essa mediação.

Emirados Árabes? Talvez. O próprio Catar pode vir a ser. Estados Unidos, também. Para a solução de fato chegar, é com grande potência. Pode ter cessar-fogo por quaisquer vias, mas solução política se dá através de intervenção de grande potência. Ou seja, Estados Unidos e China.

A China, neste ano, tem avançado sobre a questão palestina e de Israel, mas não parece querer se meter nesse entrevero. Ganharia como player em favor da paz, mas não a vejo com capital político neste momento para atuar como mediadora.

Não há ator internacional que a gente veja interessado em mediar novamente isso. A União Europeia cortou relações de ajuda para os palestinos, liderada pela Alemanha. A situação é a mesma. A intenção dos palestinos é provocar uma transformação desse cenário internacional, porque sabem que isso é absolutamente central.

CC: O apoio incondicional dos EUA a Israel pode mudar a dinâmica da guerra na Ucrânia, caso o conflito na Faixa de Gaza se estenda?

BH: Os Estados Unidos não precisariam fornecer muitas armas. O Exército de Israel já é suficiente para conduzir com suas próprias forças uma ação militar de grande vulto, como planejam. Os Estados Unidos já dão muita ajuda militar anual, além de fornecer armas, negócios a preços especiais, através de vários acordos que os países têm. Não vejo a necessidade de os Estados Unidos apoiarem Israel como têm apoiado a Ucrânia, cujo Exército tem sido treinado pelos americanos e pelos europeus.

Se há uma pressão para diminuir a ajuda a Israel e Ucrânia, é uma pressão interna nos Estados Unidos. O envolvimento direto nos conflitos é muito mal visto no país. A maioria dos americanos é contra o envolvimento na Ucrânia, vê um mau uso do dinheiro público, não vê sucesso. Outros países, como a Polônia, têm pulado fora.

Joe Biden é um grande aliado de Israel, mas essa é uma posição que a gente observa cada vez mais restrita às elites política e empresarial americanas. As elites ainda são muito apoiadoras de Israel, há elites que ganham muito dinheiro em negócios com Israel. Tem a força do lobby israelense nos Estados Unidos, principalmente dos evangélicos, assim como no Brasil, mas a gente tem visto na judentude do Partido Democrata e na juventude da população judia dos Estados Unidos um apoio cada vez menor ao Estado de Israel e cada vez maior ao Estado da Palestina.

CC: Como analisar a reação imediata do governo brasileiro à ofensiva do Hamas sobre Israel?

BH: Foi uma reação bem condizente com a posição histórica do Estado brasileiro, do Itamaraty, que sempre defendeu a solução de dois Estados e o direito internacional, no qual a solução de dois Estados está fundamentada.

Sempre defendeu as posições na ONU, votou a favor da partilha da Palestina, reconhece o Estado de Israel desde o início – foi um grande ativista e defensor da formação do Estado de Israel, em 1948. O Brasil condena sempre as violências, sejam do Estado de Israel ou de grupos guerrilheiros palestinos.

O Brasil, mesmo quando liderado pelo PT, sempre foi um grande aliado de Israel. Tem relações econômicas e militares muito próximas de Israel. O apoio que o Brasil dá a Israel é muito maior que o apoio aos palestinos, politicamente, economicamente, diplomaticamente, embora discursivamente possa parecer o contrário.

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