Entrevistas

Santos Cruz aposta em boa relação entre Lula e militares e diz que o silêncio de Bolsonaro é ‘inaceitável’

A CartaCapital, o general e ex-ministro da Secretaria de Governo rechaçou riscos de ruptura institucional e criticou a ‘seita’ bolsonarista

O General Santos Cruz. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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O general Carlos Alberto dos Santos Cruz ascendeu à política como ministro-chefe da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro (PL). Não permaneceu, porém, por muito tempo na gestão do ex-capitão. Em junho de 2019, já deixava a pasta, substituído por Luiz Eduardo Ramos.

De lá para cá, Santos Cruz se afastou do bolsonarismo e não poupou críticas sobre o que vê como um culto organizado em torno do presidente – que, agora, leva militantes de extrema-direita a se amontoar em frente a quartéis clamando por um golpe militar.

Em meio a esses protestos, Santos Cruz publicou o livro Democracia na prática: por um Brasil melhor (Grupo Almedina). Em entrevista a CartaCapital ele avalia o impacto destes quatro anos sobre a Forças Armadas e projeta o futuro da relação de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com a caserna.

Confira os destaques:

CartaCapital: Por que decidiu escrever um livro sobre a democracia? E por que resolveu lançá-lo agora?

Santos Cruz: Decidi escrever esse livro na metade de 2020, quando fiz um primeiro artigo para o jornal O Estado de S.Paulo falando que as Forças Armadas não deveriam ser arrastadas para a política. E também entusiasmado por um amigo que falou para eu colocar as minhas ideias em um livro. O lançamento agora, com esse título, é uma coincidência que vem por conta de uma coisa óbvia: que a democracia precisa ser traduzida em ações práticas.

Todo mundo fala em democracia, até quem não tem a mínima noção do que é democracia. É um termo muito forte. Mas as pessoas comuns pensam que quando falam em democracia significa que ela vai ligar o interruptor e ter luz em casa, vai abrir a torneira e ter água, vai ao posto de saúde e vai ter remédio e médico. Então, para o cidadão comum, democracia é isso. É uma obrigação daqueles que têm qualquer posição decisória traduzir a democracia em ações, e não é o que a gente vê em todos os setores, uma verdadeira conversa fiada. Isso tem de ser traduzido em ações práticas.

CC: Como o senhor vê os atos de bolsonaristas que pedem intervenção militar?

SC: Essas manifestações na frente dos quartéis vêm de um estímulo, há bastante tempo, de que o Exército tem a atribuição de interferir na política, de administrar o País, de assumir o poder político. Isso vem sendo estimulado há bastante tempo, inclusive com uma interpretação absurda, divulgada por um jurista famoso, de que as Forças Armadas têm esse direito de atuar como um Poder Moderador, baseado no artigo 142 da Constituição.

Tudo isso vem sendo martelado há muito tempo e leva à convicção dessas pessoas de que as Forças Armadas precisam assumir o comando do País, o que não tem necessidade nenhuma, porque o Brasil tem gente na classe política e na classe empresarial, tem produtores fantásticos no mundo agrícola, tem gente na ciência, na educação. Tem gente em tudo o que é área para administrar o País e exercer o poder político. Mas as pessoas estão motivadas por um estímulo de muito longo do tempo. Esse é o problema.

CC: E o silêncio de Bolsonaro?

SC: O silêncio do presidente desde a vitória de Lula no segundo turno é inaceitável, não pode acontecer. Um presidente da República – ou qualquer autoridade pública – ganha para trabalhar e tem de se manifestar sobre os principais problemas nacionais. É uma obrigação.

A pessoa não tem o direito de ficar calada em uma função dessas. Tem de se manifestar, tem de dizer o que ela pensa. Tem a obrigação de transmitir paz social ou uma orientação segura, mesmo que seja errada. Ela tem de ter convicção daquilo que vai transmitir à população. Não tem cabimento, não se pode aceitar o silêncio de uma pessoa que está nesse nível do Poder Público.

CC: As Forças Armadas, enquanto instituições de Estado, saem desgastadas deste período?

SC: Pouca coisa desgastadas, porque esse desgaste não é por conta delas, mas por conta comportamental da pessoa do presidente. Os militares da reserva que trabalham na área política e exercem funções públicas não têm nenhuma influência no andamento da instituição militar. Mas, como a gente carrega o título no nome, acaba sempre tendo um desgaste político, ainda mais nesse ambiente que se criou no Brasil, de polarização política.

As Forças Armadas, na realidade, não participam disso. Mas a impressão para a população é de que sim, então, acaba tendo um desgaste. Mas isso é plenamente recuperável com comportamento profissional.

CC: O que esperar da relação do governo Lula com as Forças Armadas?

SC: O governo Lula não vem com grande surpresa. Por duas vezes ele já foi presidente, então, ter muita expectativa de surpresa é fugir da realidade. Das outras duas vezes não me lembro de ter problema nenhum das Forças Armadas ou do Ministério da Defesa com o governo do presidente Lula. Não vejo nada disso.

O próprio governo tem de reconhecer algumas coisas que fez de errado lá nos outros dois governos, gente que se comportou de maneira errada e etc., mas na área militar não me lembro de nada marcante que tenha prejudicado as Forças Armadas. Pelo contrário, foi uma convivência normal. E acredito que vai ser normal também. Não tem nenhuma razão para ficar com apreensão nessa área.

CC: Qual a sua avaliação sobre José Múcio, o mais cotado a assumir o Ministério da Defesa?

SC: Eu tive oportunidade de conversar por duas vezes com ele, mas o assunto não era de Defesa. É uma pessoa que me pareceu bastante equilibrada, com um senso de humor muito apurado, de extrema simpatia. Tudo isso vai servir para conduzir, se ele for o escolhido, o Ministério da Defesa dentro de um bom ambiente de trabalho.

CC: Por que o senhor diz no livro que Bolsonaro e os apoiadores dele têm características de seita?

SC: Em um comportamento de seita você tem uma liderança que não é nunca questionada. Ela pode cometer seus erros e seus seguidores a seguem cegamente. Os seguidores perdem completamente o senso crítico. Se o líder se omite, os seguidores acham que naquele silêncio ali tem alguma coisa estratégica. Então, você tem um comportamento completamente fanatizado, e isso não é bom, não conduz a lugar nenhum.

Esse comportamento de seita é extremamente prejudicial e leva a atitudes que são às vezes insanas. Acho que nós tivemos no Brasil esse fenômeno, estamos tendo esse fenômeno, e é muito ruim em qualquer situação que se tenha lideranças que estimulam esse comportamento fanático, de seita, o que sempre acaba em violência, em alguma desgraça ou em alguma grande desilusão.

CC: As Forças Armadas erraram ao participar da fiscalização da eleição? O relatório traz uma conclusão dúbia

SC: Ali tem vários erros. O primeiro erro é quando o Tribunal Superior Eleitoral convida as Forças Armadas a participarem do processo de validação. Forças Armadas não têm essa atribuição (têm gente com capacidade técnica, mas não a atribuição). E nesse processo de validação você tem instituições como a Polícia Federal, a Universidade de Brasília, a Universidade de São Paulo, o Tribunal de Contas da União. Você tem uma variedade de instituições que participam desse processo, e não tinha nenhuma necessidade de convidar as Forças Armadas. Mas convidaram.

Aí vem o segundo erro, o de aceitar. O relatório eu não li, porque não tenho condição técnica de ler um relatório técnico desse. O pessoal técnico normalmente faz só observações técnicas. O problema não são as observações técnicas, mas na conclusão, em um ambiente extremamente politizado, colocar que não existe prova de que houve fraude mas fazer uma outra observação de que pode ter [fraude]. Isso aí deixa margem para as pessoas interpretarem do jeito que atende a elas, e a gente tem esse tumulto com base nas interpretações.

Se o relatório era para ver se teve fraude ou não, tem de dizer se foi possível comprovar ou não. Mas no momento em que você deixa essa conclusão de maneira dúbia, você dá chance de interpretações, e isso aí só alimenta o tumulto.

CC: O Brasil correu um risco real de ruptura institucional com apoio das Forças Armadas nos últimos anos? E neste momento?

SC: De maneira nenhuma. O Brasil jamais sofreu risco de ruptura institucional com participação das Forças Armadas. Isso não tem o mínimo cabimento. Os comandantes das Forças Armadas são pessoas responsáveis, todos eles com 45 anos de serviço, selecionados ao longo de toda a carreira, gente que tem capacidade para comandar. Nunca correu esse risco.

Agora também não tenho a mínima sensação de que se pode ter esse risco. O público tem de confiar nas Forças Armadas e não alimentar esse tipo de apreensão. Isso não tem sentido. As Forças Armadas são muito bem preparadas e têm responsabilidade nas suas funções constitucionais. Nunca vi risco nenhum e não vejo nenhum aí para frente.

CC: Como o senhor vê a discussão sobre a chance de as Forças Armadas anteciparem a troca dos comandantes?

SC: Vi comentários na imprensa, mas não vi confirmação de nada disso pelos comandantes militares, nem pelo Ministério da Defesa. O que vi foi conjectura, foi comentário na imprensa. Mas vejo que os comandantes têm a responsabilidade deles de ponto a ponto, do primeiro ao último dia.

Não vejo qual seria a razão para sair antes, e também nunca vi eles falarem pessoalmente. Faltam vinte e poucos dias para o final do ano. Se fosse sair antes, teria de anunciar. Isso tem um protocolo, um anúncio a fazer. Ninguém anunciou nada. Não vejo nenhuma razão para sair antes do previsto.

CC: Quais são os principais desafios do novo governo Lula?

SC: Ele tem de ser um governo de diálogo, de união nacional – não todo mundo pensando igual, mas um governo que restabeleça o respeito nas discussões, nas diferenças de posicionamento. Até para diminuir esse clima de animosidade e de confrontação que existe hoje. Ele tem de ter essa visão de ser um governo para todos os brasileiros, inclusive para sua grande oposição. Que isso seja construtivo para o País.

Tem de verificar o que fez errado nas duas outras oportunidades em que governou e não repetir os erros. É natural que tenha uma visão bastante social, mantendo os princípios do liberalismo econômico, mas colocando uma observação bem forte na parte social, porque tem muita gente que precisa desse auxílio governamental.

Outra coisa é a transparência absoluta. O governo sofreu determinadas críticas, e esse pessoal tem de corrigir a conduta e fazer um governo absolutamente transparente. Se fizer isso, o governo recupera seu prestígio, sua credibilidade. A transparência será fundamental.

CC: Bolsonaro passará a faixa a Lula?

SC: Sinceramente, acho que isso é uma coisa protocolar. Não é uma vergonha você perder a eleição, e não tem vergonha em passar a faixa ao seu sucessor. Agora, tem o seguinte: se, por questões pessoais, não quiser, não vai acontecer nada. O governo vai começar seu mandato e quem sai perdendo é o presidente que sai. Se ele não participar do protocolo previsto, ele sai perdendo, mostrando uma limitação muito grande no entendimento do que é transferência de poder.

CC: E quais são os seus próximos passos?

SC: Tenho atividades particulares que gosto de desenvolver. Gosto muito de agricultura de pequena escala, em que eu mesmo sou o agricultor. Já tenho 70 anos, não tenho interesse nenhum de fazer carreira política. Talvez escrever mais um pouco, mas só para participar da vida política nacional, sem interesse de poder. E colaborar da maneira que posso para que não se tenha essa polarização perigosa.

O Brasil é um país doente, com paranoia, em que algumas parcelas têm uma verdadeira esquizofrenia social. O fanatismo político é péssimo, não vai levar o Brasil a lugar algum. O que eu puder fazer para ajudar o Brasil a caminhar para frente, eu vou fazer.

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