Entrevistas

O que explica o sucesso da Copa do Mundo feminina em 2023, segundo a diretora do Museu do Futebol

Em entrevista a CartaCapital, Marília Bonas analisa a evolução técnica da modalidade e o legado que jogadoras deixam nesta edição da competição

Foto: WILLIAM WEST / AFP
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A visibilidade alcançada na Copa do Mundo Feminina de 2023, através do apoio do público, gira a máquina da indústria do futebol e faz garantir um dos maiores investimentos registrados na história da modalidade. O maior aporte, como consequência, fomenta a maior qualidade dos atletas em campo. Esta é a análise da historiadora e diretora técnica do Museu do Futebol, Marília Bonas

“Essa edição fez muita diferença pro futebol, é um esporte que depende da torcida, do alcance, para as pessoas acompanharem. Então nesse sentido ela foi de fato muito importante para trazer, enfim, a visibilidade que a modalidade merece”, destaca Bonas. 

O recorde de audiência no Brasil e no mundo fez com este mundial feminino fosse o mais visto da história. Somente na fase de grupos, mais de 1,2 milhão de espectadores foram aos estádios, com uma média de mais de 25 mil pessoas por jogo. O que simboliza um aumento de 29% em relação à Copa do Mundo de 2019 na França apenas nessa fase da competição.

De acordo com dados prévios do Painel Nacional de Televisão, PNT, no dia de estreia da seleção feminina na Copa, a TV Globo teve a maior audiência na faixa desde agosto de 2008, com cerca de 16 pontos — um crescimento de 100% em comparação com a mesma faixa nas últimas quatro semanas.

Além disso, esta também foi a maior competição da história, com 32 seleções competindo pelo título, oito a mais levando em comparação aos 24 times dos dois últimos campeonatos.

A conquista de espaço, nesta edição, garantiu também uma maior movimentação da publicidade em torno do esporte. O aporte de marcas conhecidas no mercado da bola fez com que as mulheres deixassem de ser chamadas somente como o cumprimento de uma agenda social, pela igualdade de gênero, e passassem a discutir questões técnicas da profissão. 

“Eu acho que essa visibilidade tem uma questão cultural mesmo, de entender que a modalidade não é essencialmente masculina, tem toda uma trajetória do futebol feminina muito grande e muito importante”, afirma a historiadora. “Finalmente pôde ter a visibilidade e, com isso, a possibilidade das marcas de apoiarem. Isso ajuda a ampliar a discussão da qualidade das atletas e incentivo em muitas partes do mundo.”

Um exemplo desta discussão é a evolução evidente na qualidade técnica das goleiras neste mundial. Enquanto a maior goleada da Copas femininas aconteceu há poucos anos, em 2019, com o 13 a 0 dos Estados Unidos sobre a Tailândia. Desta vez o placar mais elástico ocorreu na partida entre Vietnã e Países Baixos, com 7 a 0 para as europeias. 

“Na final a gente viu a goleira do Reino Unido fazendo grandes defesas. Era para ter um placar até mais amplo”, cita Bonas. A boa atuação fez com que o placar da final inédita entre Inglaterra e Espanha fosse de apenas 1 a 0 para a La Roja.

A goleira da equipe inglesa, Mary Earps — Foto: AFP

E emenda: “No atual cenário, tem um desempenho diferente das atletas em campo. Também tem uma cobrança do desempenho de técnicos e técnicas. No caso do Brasil [comandada pela Pia Sundhage] isso foi muito forte [após a derrota] e é muito bom sinal para todo mundo. É o nosso sonho poder sair da discussão do futebol feminino como uma modalidade de resistência para uma modalidade atlética esportiva.”

O caso brasileiro e quando o futebol era um caso de polícia

Apesar da saída precoce e lamentada da Seleção Brasileira Feminina de Futebol, esta audiência é uma vitória e tanto, avalia Bonas. Principalmente, conquistar esse feito 60 anos depois das primeiras atletas terem fugido da polícia para jogar.

Nos anos de governo Getúlio Vargas, o Decreto-lei número 3.199, artigo 54, proibia as mulheres de jogar por entender que o futebol era “incompatível com a natureza feminina”. 

Com isso existe um antes e depois dessa geração que se aposentou, avalia. Esse trecho da história do País pode ser visto de perto na exposição Rainhas da Copa no Museu do Futebol, que conta o papel dos grandes nomes na modalidade. 

“Essas atletas deixam o legado, de fato, da passagem de uma geração em que o futebol feminino tinha pouca visibilidade, inclusive muitas violência simbólicas, para uma geração que está podendo se dedicar exclusivamente a isso”, destaca.

Apesar do novo momento, as questões de gênero estruturais permanecem em campo. Após a final jogada entre Inglaterra e Espenha, Luis Rubiales, presidente da Federação Espanhola de Futebol, deu um beijo na boca de surpresa na jogadora Jenni Hermoso. A situação gerou revolta da atleta, mas seguiu sendo tratada como ‘brincadeira’ pelo autor e seus aliados.

Nessa mesma linha, a outra questão evidente é a disparidade salarial ainda vigente entre homens e mulheres. Desta vez, de acordo com lista feita pela revista Forbes, as 15 mulheres mais bem pagas faturam menos de um terço do que os astros masculinos, Lionel Messi, Cristiano Ronaldo e Mbappe. 

Juntos eles faturaram 120 milhões de dólares no último ano, enquanto 15 mulheres ganharam, ao todo, cerca de 36,5 milhões de dólares no mesmo período.

O que o Brasil tem a aprender com a Espanha?

Fomentar, ainda mais, o investimento em política pública. A historiadora Bonas destaca que, em comparação aos outros mundiais, há uma nítida diferença entre atletas que ainda precisam ter uma segunda profissão.

“Tem sim um investimento na base em países como Espanha e o próprio Reino Unido que mostra a qualidade técnica que um atleta bem preparada, que pode viver apenas como atleta. Isso é muito recente no Brasil”, aponta.

O bojo do problema começa na infância, quando projetar uma carreira como atleta parece um sonho muito distante da realidade. As escolinhas de futebol feminina ainda são muito escassas, se comparada com as masculinas — não há sequer registro sobre esta quantidade, por exemplo.

“Ainda é uma coisa que sofre muita resistência das famílias, né? Então quando a gente ouve a trajetória, por exemplo da Tamires, né? E ela fala: ‘Olha, meus pais eram todo o apoio, mudaram de cidade e investiram para que eu pudesse ser atleta’. Isso ainda é uma exceção no futebol feminino”, conta a estudiosa do tema. 

“Mesmo em seleções multicampeãs como os Estados Unidos, em que o futebol é de fato uma modalidade feminina considerada feminina, há uma luta ainda muito grande por igualdade de salários”. 

A realidade é que o investimento e a audiência do futebol feminino foram feitos pela pressão e pela obrigação dos entes públicos e privados. Em 2016, por exemplo, a FIFA lançou uma grande ação global de valorização do futebol feminino, que ganhou destaque neste ano, com a Copa.

Nessa linha, a Conmebol criou uma regra em que os clubes de homens que jogam a competição organizada pela liga são obrigados a terem times femininos. A contragosto, em muitos casos, é assim que elas seguem ganhando espaço.

No Brasil, o Ministério do Esporte fez uma avaliação em março, via decreto, e deve lançar um plano de ações para o desenvolvimento do esporte no país com ações previstas até 2025.

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