Entrevistas

Luiz Valério Trindade: ‘Mídias sociais são passivas frente ao discurso de ódio’

Doutor pela Universidade de Southampton no Reino Unido, o professor esteve no Brasil para lançamento do seu livro ‘Discurso de ódio nas redes sociais’

Professor Luiz Valério Trindade no lançamento de seu livro "Discurso de ódio nas redes sociais". Foto: Rodrigo Trevisan Dias.
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O pesquisador Luiz Valério Trindade, doutor acaba de lançar o livro Discurso de ódio nas redes sociais, parte da coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro.

Na noite de lançamento, ocorrida na última terça-feira 6 em São Paulo, Trindade se emocionou ao lembrar que seus antepassados tiveram as costas marcadas por castigos para que sua geração não tivesse cicatrizes. E disse que ele trabalhava para que suas sobrinhas não experimentem o racismo que ele e sua geração.

A declaração remete à obra, que revisita as raízes históricas do racismo brasileiro para mostrar por que a população negra é alvo da maioria dos ataques feitos no Facebook. “Por uma questão de metodologia de pesquisa, tive que me concentrar em uma plataforma”, explica.

Conteúdos de cunho odioso racista, homofóbico, misógino tendem a continuar engajando por até três anos

Trindade conclui que 81% das vítimas de discursos de cunho racista na rede social de Mark Zuckerberg são mulheres negras, com idade entre 25 e 35 anos e em ascensão social.

O livro é resultado de seu doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Southampton, no Reino Unido.

Confira a entrevista:

CartaCapital: Sua pesquisa aborda o fenômeno de construção e disseminação de discursos racistas nas redes sociais brasileiras, mas apenas no Facebook? Alguma razão em especial?

Luiz Valério Trindade: É importante tocarmos neste assunto. Minha pesquisa utilizou dados do Facebook por uma questão metodológica. No entanto, é importante esclarecer que não significa dizer que esse comportamento é exclusivo [daquela rede]. Mas, por uma questão de metodologia de pesquisa, tive que me concentrar em uma plataforma. Não dava para abraçar diversas ao mesmo tempo, senão o trabalho teria uma dimensão muito grande e ficaria difícil de gerir durante o tempo disponível para a pesquisa. Mas o comportamento é o mesmo.

CC: E qual o mecanismo que você identificou entre as plataformas?

LVT: A gente não pode esquecer que a corporação Facebook, que agora se chama Meta, é proprietária não só do Facebook, como do Instagram e do WhatsApp. Portanto, a integração entre essas plataformas é muito grande, o que facilita o trânsito de discursos de ódio. Uma postagem feita hoje em determinada rede social circulará por meio de outras.

E é importante ressaltar que aquilo que é postado nas redes não desaparece do dia para a noite. Na pesquisa, eu identifico que conteúdos de cunho odioso racista, homofóbico, misógino tendem a continuar engajando usuários novos e recorrentes por até três anos. E isso causa um impacto muito grande sobre a vítima, sobre a pessoa que foi atacada.

CC: E quais são os efeitos dessa cauda longa?

LVT: O primeiro, e mais importante naturalmente, é o impacto na vítima. Inclusive, um dos casos que analiso no livro diz respeito a uma pessoa que desenvolveu síndrome do pânico após ser vítima de ataques. Ela tinha pânico de sair de casa porque, em seu imaginário, as pessoas à sua volta – no metrô, na rua – iriam reconhecê-la e rir dela.

O segundo aspecto que deve ser destacado diz respeito ao lucro que essas plataformas auferem por meio do discurso odioso que ali circula de uma para outra. Por que o fato de conteúdos de ódio continuarem engajando usuários por até três anos – com compartilhamentos, ‘likes’, comentários, retuítes – faz com que as marcas anunciantes sejam expostas, gerando mais lucro para elas.

O ordenamento jurídico, não só o brasileiro, como também o internacional, ainda não acompanha a evolução dessas tecnologias

CC: E a crença, por parte do agressor, de que o anonimato nas redes dá direito a proferir ofensas?

LVT: Posso dizer que isso é uma falácia, porque é uma crença em algo que não se confirma com fatos. O indivíduo acredita que, por estar atrás da tela do computador, pode desencadear toda a sua intolerância contra qualquer grupo social ou pessoa, achando que não pode ser localizado e identificado. Mas existem diversos casos ilustrativos que demonstram claramente que, quando essas atitudes levam a processos na esfera judicial, as autoridades competentes possuem mecanismos para identificar e localizar os responsáveis.

CC: Quando uma pessoa é “pega” no discurso de ódio, há um padrão de resposta?

LVT: Sim, outro aspecto que identifiquei na pesquisa é que as pessoas que se engajam nessa prática de construção e disseminação de discursos de ódio nas redes sociais se sentem, de certa forma, empoderadas por estarem atrás de um computador, e não necessariamente no anonimato.

Entretanto, quando tais casos entram no radar de algum veículo de comunicação – revista, jornal, programa de televisão -, elas tomam uma das quatro seguintes atitudes: 1) correm para deletar o post; 2) mudam o status da conta de público para privado; 3) cancelam a conta; 4) alegam que tudo não passou de uma brincadeira. Então, esses quatro comportamentos evidenciam que aquela pessoa tinha noção de que estava fazendo algo errado, ofensivo. Do contrário, não recorreria a tais atitudes.

CC: Você acredita que o fato de as plataformas se definirem como empresas de tecnologia, e não como empresas de mídia, tira de alguma forma a responsabilidade delas?

LVT: Sim. Esse é um debate muito importante, que tem sido fomentado na União Europeia. Não tenho informação sobre a situação no Brasil, mas na Europa é um debate que vem sendo travado de forma intensa desde, pelo menos, 2013. E a cobrança é para que as plataformas sejam classificadas como empresas de mídia ao invés de empresas de tecnologia. Porque quando o Facebook – agora Meta – e o Twitter se classificam como empresas de tecnologia, eles se isentam da responsabilidade com relação ao conteúdo que circula nas plataformas.

É como se dissessem: “eu sou uma empresa de tecnologia, forneço uma ferramenta digital e o que o usuário faz com ela não é minha responsabilidade. É responsabilidade do usuário”. Mas o interessante é que legisladores da União Europeia têm pressionado essas empresas para que sejam classificadas como empresas de mídia. Porque, nesse caso, como outras empresas do gênero, passariam a ser responsabilizadas pelo conteúdo que circula. Teriam de aderir a certas regras que as empresas de tecnologia não têm.

Professor Luiz Valério mora na Itália e esteve no Brasil especialmente para o lançamento de seu livro. Foto: Rodrigo Trevisan Dias,

CC: Você concorda que se exige muito pouco para criar uma conta em uma rede social?

LVT: Atualmente, para abrir uma conta nas principais redes sociais basta ter 13 anos de idade, um e-mail válido e criar uma senha. Então, essa geração precisa ser educada para não fomentar esse tipo de conteúdo e, quando for exposta, ser orientada a saber para quem reportar: para um professor, um pai, um tutor. A educação é fundamental para que a gente forme novas gerações que não alimentem essa espiral de ódio.

Então, no livro trato a respeito das próprias empresas, no sentido de educar seus usuários para explicar muito claramente que as redes sociais não são terra de ninguém. O que se faz nas redes é, sim, passível de punição de acordo com o ordenamento jurídico.

CC: Sanções econômicas, como multas, funcionam? Seria o caso de criar agências reguladoras?

LVT: Esse é um debate que ainda não tem consenso. Naturalmente, as regulações esbarram no limite da liberdade de expressão. Ou seja, é uma linha muito tênue, mas é um debate necessário, e que vem ocorrendo em muitos países, em outros contextos sociais. Uma regulação seria importante no sentido de coibir práticas de discursos de ódio, incentivo ao suicídio, entre outros fenômenos desse gênero.

E um outro aspecto importante de destacar é que o ordenamento jurídico, não só o brasileiro, como também o internacional, ainda não acompanha a evolução dessas tecnologias. Elas evoluem de uma forma tão acelerada, que é difícil de o ordenamento jurídico acompanhar o mesmo ritmo. Então, é preciso também uma certa atualização do ordenamento jurídico, nacional e internacional, para fazer frente a esses novos fenômenos que surgem por meio dessas tecnologias digitais.

CC: Como você chegou à conclusão, na sua pesquisa, de que os discursos de ódio afetam mais as mulheres negras?

LVT: É importante ressaltar que esses dados estavam publicamente disponíveis. Ou seja, são dados de pessoas que publicaram conteúdo de forma aberta. Eu analisei os posts, sem nomear. Foram centenas de páginas de Facebook, além de uma série de entrevistas com pessoas no Brasil.

Até o momento da análise teórica, eu imaginava que o fenômeno afetava homens e mulheres negros em igual proporção. Mas quando fui a campo, em 2016, conforme os dados começaram a ser coletados e analisados, comecei a perceber que as principais vítimas eram as mulheres negras. Identifiquei que 81% das vítimas eram mulheres negras, jovens, na faixa de 20 a 35 anos de idade, em ascensão social. Ou seja, mulheres negras engajadas em profissões como jornalismo, administração, engenharia, ou estudantes universitárias. E isso me chamou muito a atenção.

CC: Quais são as origens históricas desse comportamento hostil?

LVT: Para desenhar o projeto de Brasil moderno, a elite incentivou a imigração de mão de obra remunerada europeia, de camponeses europeus, provenientes principalmente da Alemanha, da Itália, da Polônia, entre outros países. E por que isso? Alguns pensadores daquela época defendiam a ideia de que com a vinda desses imigrantes haveria uma mistura com a população brasileira, que era predominantemente mestiça e negra, e essa mistura daria origem, no prazo de até três gerações, a uma população essencialmente branca. Esse era o pensamento vigente na elite brasileira, o qual podemos chamar de ideologia do branqueamento.

Um dos formuladores desse pensamento, Raimundo Nina Rodrigues, dizia que a população brasileira predominantemente mestiça e negra era degenerada. E, para ele, como essa população causaria o atraso da modernidade brasileira, então seria preciso extirpar esse “problema social”. Daí surge a chamada ideologia do branqueamento, que, na prática, consiste na valorização de atributos positivos associados à branquitude e no reforço de atributos negativos associados à negritude.

CC: Por que as mulheres são o principal alvo dos discursos de ódio?

LVT: Essa pergunta é de fundamental importância para compreender como se deu os primórdios da ideologia do branqueamento na sociedade brasileira. Essa ideologia preconiza que aspectos de ordem positiva, ou seja, inteligência, beleza, ascensão social, determinadas profissões nobres são atributos associados a pessoas brancas, geralmente homens de classe média, classe média-alta. Esse é o quadro que predomina no imaginário coletivo. E, obviamente, o contrário, os atributos de ordem negativa, são associados à negritude.

Então, nesse sentido, mulheres negras em ascensão social contradizem esse modelo de Brasil moderno. Ou seja, quando elas passam a ocupar determinados espaços sociais que no imaginário coletivo estiveram e continuam sendo associados à branquitude, isso causa um choque e uma não aceitação. Então, àqueles indivíduos que têm essa ideologia enraizada causa estranheza uma mulher negra médica, e todo esse choque se manifesta por meio dos discursos de ódio.

CC: Como reagir a esses ataques?

LVT: O combate ao racismo se dá por meio do empoderamento das mulheres negras. Na pesquisa, observo que as ações antirracistas não se dão na mesma linguagem dos agressores. As mulheres negras que estão na linha de frente têm fomentado esse combate ao racismo oferecendo suporte às mulheres atacadas e assumindo um posicionamento político forte e explícito, no sentido de valorização da beleza negra, como por exemplo o cabelo afro, natural, que é um símbolo de resistência e de afirmação das suas raízes, da sua negritude; e também, claro, no sentido da conscientização, de que ela merece ocupar aquele lugar, de que ela não é um “estranho no ninho”.

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