Entrevistas

Jacqueline Muniz: ‘Nenhum deles está enfrentando as questões centrais’

Em entrevista a CartaCapital, a cientista política, pesquisadora e ex-chefe de segurança no Rio aponta as insuficiências dos planos de governo para a segurança pública brasileira

Jacqueline Muniz no programa Voz Ativa, da Rede Minas em parceria com o EL PAÍS - Foto: Reprodução
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Falta transparência, responsabilização e protocolos coordenados para as ações dos agentes de segurança. Esse é o alerta da professora e pesquisadora Jacqueline de Oliveira Muniz, da Universidade Federal Fluminense, sobre os planos de governo que podem determinar o andamento da segurança pública no País em 2023. 

Muniz, também antropóloga e cientista política, foi chefe Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro no ano de 1999, onde criou e implementou projetos, como o Instituto de Segurança Pública, a Corregedoria Geral Unificada das Polícias e o Fundo Nacional de Segurança Pública. 

Em 2003, foi diretora do departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública no Ministério da Justiça. 

Em entrevista a CartaCapital, ela avalia os programas dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas.

Confira a seguir.

CartaCapital: De forma geral, qual é sua avaliação dos planos dos candidatos, Lula, Bolsonaro, Ciro Gomes e Simone Tebet, que são hoje os mais bem colocados nas pesquisas de intenção de votos?

Jacqueline Muniz: Os quatro programas vão de um programa conservador a um programa moderado. O programa do Lula seria resultante de um marco de alianças, é moderado, o do Bolsonaro é extremamente conservador, o da Tebet é conservador e caminhando para o do Ciro e do Lula que são mais moderados, mas todos pisam em ovos, fica evidente que nenhum deles está enfrentando as questões centrais da estruturação da segurança pública do Brasil, na construção de um sistema de segurança pública que produza governabilidade dos meios de força. 

Fica claro que muitas das intenções – todas elas muito boas, sobretudo dos programas mais moderados – não tem ferramentas para serem postas de pé. Como princípios, alguns são pertinentes, outros absolutamente ingênuos. Está faltando a ferramenta do como fazer e do por que fazer isso. 

CC: Qual a marca do plano de Bolsonaro?

JM: No programa do Bolsonaro é a segurança do Estado contra a sociedade. Essa é a marca de um programa extremamente conservador. O que tem em jogo ali é o indivíduo que tem que se resolver sozinho diante do mercado e a oferta de benefícios aos segmentos de força — em especial, as Forças Armadas. Então a segurança, para quem? A segurança para os próprios atores, digamos assim.

Quem é contemplado no programa do Bolsonaro? Além do agronegócio e da comunidade rural da chamada segurança no campo, também é contemplada a mulher e a família, então a sociedade se reduz à mulher em um papel tradicional e a família. 

Não existe mais pluralidade e outras expressões de cidadania, nem de vulnerabilidade social. É um programa de segurança voltado para os mesmos, para beneficiar a sua própria base eleitoral. Não tem uma segurança pública para todos, é para atender o agro, a mulher dentro do ambiente familiar… Os outros: raça, juventude, população de rua, quilombolas, população LGBT, também desaparecem, não existem.

Se nós pudéssemos criar uma frase, o programa seria: “Mais do mesmo. Mais para mim, menos para todos”. Portanto, não se trata de um plano de segurança propriamente dito, e sim de mecanismos conservadores de proteção, proteção esta seletiva e desigual. 

CC: Quais são os acertos e erros das propostas do Lula para a segurança? 

JM: O programa do Lula tem uma pluralidade maior. Você vai encontrar mulheres, você vai encontrar a juventude negra, a população LGBT, outros segmentos expostos à vulnerabilidade. Mas cai na fantasia de mais preparo, mais inteligência e mais tecnologia. 

Na prática, se tem uma ênfase na mudança da política de drogas – isso é importante para sair de uma leitura de uma falsa guerra às drogas e trabalhar numa perspectiva de redução de danos e riscos que produzem mais efeitos, maior controle. Cita também o combate ao crime organizado, mas sem dizer para que veio. E isso acontece porque? Por que não se discute o sistema, apenas diz que vai melhorar. 

Há políticas setoriais de curto fôlego, não mudanças estruturais e substantivas para garantir os resultados para além do imediato. Vai ficar todo mundo refém de um futuro, e que nesse futuro tudo vai mudar. 

CC: E de que tipo é o plano da candidata Simone Tebet? 

JM: Na perspectiva da candidata Tebet, a segurança pública não é um problema do governo federal, é dos estados e municípios. Ou seja, o problema da segurança ela empurrou para porta do Palácio do Governador e da prefeitura. 

Ela deixa muito claro, por isso ela vai falar da coordenação da União, também de maneira abstrata e genérica porque ela vai reproduzir numa espécie de discurso normativo legal, jurídico-político, a segurança pública como responsabilidade dos estados e não cabe apenas a União articular. 

Essa é uma leitura conservadora da segurança pública que destitui a própria lógica federativa porque evidentemente inviabiliza a capacidade de êxito, já que as pessoas moram na cidade, no bairro e sem articulação com o governo federal, sem esse entendimento reduz-se muito a capacidade de dar conta da pluralidade dos problemas da Segurança Pública. 

A retomada do Ministério da Segurança Pública é uma tentativa de dar prioridade de produzir orçamento próprio, mas que atende muito mais a uma lógica classista do ponto de vista do programa dela, o interesse de incorporar corporações, do que propriamente de uma discussão de uma segurança pública ampla e para todos. É muito mais assegurar orçamento e cargos de comissão, de confiança, do que pensar uma política com prioridade. 

Na questão das drogas, a Tebet aposta no legalismo, ela vai reestruturar o Código Penal, o Código de Processo Penal, uma aposta numa Lei e Ordem, como se passasse a criar uma lei e o mundo no dia seguinte estaria mudado.

[No geral], o programa da Tebet é um programa melhor do que o do Bolsonaro, na medida em que traz discussões pertinentes, sobre o SUSP,  menciona o controle de armas, a questão das fronteiras mas de maneira muito genérica, porque na verdade ela quer transferir o serviço para os Estados, ela quer dar serviço para os outros. Se a gente pudesse dizer uma frase, o programa da Tebet, a cobertura dele é limitada e também aparece a mágica da inteligência, a mágica da tecnologia e a mágica do preparo individual.

CC: O que é o diferencial na proposta do candidato Ciro Gomes? 

JM: No programa do Ciro, que é um pouco mais moderado, já vai aparecer a população LGBT, a questão do racismo, a questão de gênero, da mulher, as populações originárias, os vulneráveis como a população em situação de rua. Também há pouca discussão sobre as políticas de drogas, por exemplo.

Há uma aposta no desenvolvimento e mais uma vez na fantasia do Admirável Mundo Novo da modernidade, todo mundo é “modernoso”. Olha a tecnologia vai mudar tudo, a integração tecnológica, mas sem ferramentas não tem como integrar, nem reestruturar, se você não tem delimitação das competências entre as agências de Segurança Pública. 

Para o cidadão comum, então soa como algo modernizante, como algo desenvolvimentista mas sem que isso tenha consequência concreta ali na esquina, porque não se reestruturou o sistema de segurança pública, não se gerou ferramentas de controle de governabilidade que permita, portanto fazer com que as diretrizes políticas dos atuais presidenciáveis possam ser cumpridas ali dentro.

Ciro aposta no desenvolvimento que naturalmente resolveria o crime e a violência, portanto, uma leitura conservadora associando pobreza ao crime. Uma leitura que já foi refutada nos anos 50 e 60.

Há uma leitura ingênua do que é crime e violência – que, antes de ser um problema econômico, é um problema de exercícios de poder, de lógicas desiguais no exercício do poder. A proposta dele, ainda que tenha coisas interessantes, tem essa fantasia na integração de informação, coisas que não vão se dar na prática porque não é assim que funciona. Então demonstra também pouco conhecimento sobre como opera o sistema de segurança pública. 

CC: Que prioridades estruturais a senhora percebe que ficaram fora dos planos? 

JM: Nenhum deles pensou de maneira substantiva na estruturação do Estado, no serviço de segurança pública numa perspectiva federativa e descentralizada. Não é mencionada a delimitação das competências exclusivas, partilhadas e redundante entre as agências de segurança pública, também não são mencionados mecanismos de controle da ação policial. É fundamental o controle, responsabilização, transparência e a accountability. No programa do Lula, por exemplo, é mencionado a resposta, a transparência e protocolos, mas sem desenvolvimento sem saber como, por que e para quê. 

Os programas moderados caem na fórmula fácil de mais preparo, mais inteligência e mais tecnologia. O mantra do preparo, inteligência e tecnologia revela uma visão conservadora da segurança. A questão não é de preparo, é de sistema formativo, não é o preparo individual. O problema é que a inteligência pode ser do bem ou do mal, né? Quando você não tem mecanismos de transparência e responsabilização. A outra coisa que tecnologia quando você não quer mudar as práticas, não quer mudar valores e você acredita que o problema está “na geladeira” e não na ação humana, percebe? Então não se muda. 

A impressão que dá é que basta você dar “brinquedos” para polícia, melhorar salário e dar cursinho que no dia seguinte as coisas vão funcionar bem. Ao invés de você mudar as práticas, mudar a mentalidade, você fica mudando a ferramenta. Falar de tecnologia dissociada disso, é você achar que a ferramenta desenha a mão e que a mão desenha o pensamento. Nada mais conservador, nada mais ilusório que apostar no shopping center da Segurança Pública. O crime organizado é só dizer que vai combater com rigor, com firmeza. De que maneira? Com a brincadeira da tecnologia e do preparo?

Todos os candidatos fugiram deliberadamente de falar da estrutura federal de Segurança Pública, né? Seja dos presídios federais, seja da Polícia Federal, da Rodoviária Federal demonstrando a medinho a pisar em ovos. Ou seja, a ideia de blindar as polícias do uso político partidário e da lógica privatista, de interesses corporativistas desapareceu dos programas, então a ingerência é muito falada, na demanda por autonomia, mas é autonomia demais, ninguém mexe [na polícia]. Nenhum deles se propõe a criar um sistema de segurança pública. 

Olhando o plano do Ciro de quatro anos atrás, olhando o plano de Lula e Haddad de 4 anos atrás e os outros planos, a gente observa o encolhimento da agenda da segurança pública, todos eles fugindo de discussões centrais, ou seja, é uma espécie de decisão de marketing. Ninguém quer comprar brigas como organizações que viraram verdadeiros partidos políticos, como é o caso das Forças Armadas e das polícias, que sentam a mesa como se fosse o quinto e o sexto poder isso construído pelos políticos que estão aí.

CC: Em resumo, qual a identidade do plano de cada candidato?

JM: A proposta do Ciro se nós pudéssemos construir uma frase seria: “Tudo está na conta do desenvolvimento. O desenvolvimento resolve tudo, o desenvolvimento salva”. O Bolsonaro: “o indivíduo avulso no mercado, se vira sozinho”. A Tebet: “Transfere-se o problema, o problema é do Estado, não é comigo. Empurra a segurança pública para os estados com a fachada legalista normativa”. A marca do Lula é o social, o problema é que social pelo social não resolve o problema da segurança. 

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