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Futuro em disputa

É preciso restabelecer o debate público e encontrar um novo projeto comum de nação, diz Heloísa Starling

A solidão do indivíduo atomizado alimenta o medo, diz a historiadora Heloisa Starling – Imagem: Redes sociais e iStockphoto
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A historiadora Heloísa Starling não se deixa levar pela esperança e pelo otimismo, embora não esconda um e outro sentimento ao analisar os primeiros cem dias do governo Lula, liderança, segundo ela, essencial, talvez única, no processo de reconstrução do País. O relançamento de programas sociais consagrados, entre eles o Bolsa Família e o Mais Médicos, diz a professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de livros seminais, é um piso, a base para que se ergam coisas novas e se recupere o ideal de um projeto de nação. “Perdemos a dimensão de futuro”, lamenta. Sua maior preocupação está no combate ao bloqueio do debate público e na solidão dos indivíduos, que alimenta o medo e a impotência. “É preciso abrir a janela da internet para o pensamento entrar”, afirma. Entre as tarefas urgentes? Estimular, enfim, uma cultura democrática, única maneira de transformar uma sociedade hierárquica, racista, desigual e violenta.

CartaCapital: Esta não é uma pergunta à historiadora, mas à cidadã. Que sentimentos resumem os primeiros cem dias?

Heloísa Starling: É um grande alívio, antes de tudo. Quando vi a posse do presidente Lula, a simbologia da rampa, foi uma sensação de esperança, ou melhor, de expectativa. Por outro lado, o Brasil vive uma conjuntura completamente diferente, inédita na sua trajetória. Ao mesmo tempo, há essa possibilidade de respirar e dizer “agora vamos poder reconstruir o País”, mas a tensão política continua. Logo em seguida à posse veio o 8 de janeiro, a revelação do genocídio Yanomâmi e a evidência, mais uma vez, do problema militar. Eu me pergunto: o que se passa no Brasil? Como vamos enfrentar essa realidade nova?

CC: O que é novo?

HS: As instituições e as estruturas têm sido, ou foram até três meses atrás, destruí­das por dentro. Nunca tivemos um presidente da República legitimamente eleito que passasse a usar o poder para destruir a democracia por dentro. Antes, ela só caiu à força de golpes de Estado. Não há referência na história de um processo de degradação como aquele que vivemos nos quatro anos de Bolsonaro. O objetivo agora deve ser construir ferramentas para enfrentar esse processo e impedir que ele volte a acontecer. Aliás, Bolsonaro nunca mentiu a esse respeito. Em um evento para empresários em Nova York, ele disse que tinha vindo para destruir, não para construir. Se a gente olha para o panorama, é assustador. Não há uma área ou lugar em que essa política de destruição não tenha sido ao menos iniciada. Os brasileiros hoje sabem como morre uma democracia. Mas como ela renasce?

“Não há referência na história de um processo de degradação como aquele que vivemos nos quatro anos de Bolsonaro”

CC: Lula, a esta altura, continua a ser a liderança capaz de conduzir essa reconstrução?

HS: O presidente Lula é a liderança política essencial neste processo. De qualquer forma, obviamente, precisamos também de novas lideranças. Mas para enfrentar a reconstrução é o Lula. Não há outro nome. Lembremos: o presidente teve pela frente no primeiro mês de mandato o 8 de janeiro e o genocídio Yanomâmi. Não é pouca coisa. Lula tem uma experiência de vida distinta daquela de 2003 a 2010, e isso faz diferença. Minha esperança é grande. A esperança, você sabe, é uma certeza incerta sobre um bem que virá.

CC: O governo, nestes primeiros cem dias, até como parte da reconstrução, relançou projetos bem-sucedidos de mandatos petistas anteriores: Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, Mais Médicos. É este o caminho?

HS: É um conjunto de iniciativas importantíssimo. Trata-se de refazer as bases, o chão. A partir desse chão erguem-se coisas novas. A gente dançava na beira do abismo. Demos alguns passos para longe dele. Mas há duas coisas que precisamos enfrentar, a partir dessas políticas. Uma: nesse processo de destruição, o espaço público para o debate se esgarçou. Existe uma solidão muito grande e é preciso enfrentá-la, trazer o debate público de volta. Os brasileiros precisam se reencontrar. A solidão é péssima para a democracia, pois alimenta o medo e a impotência. A ideia de comunidade está desgastada e os indivíduos estão cada vez mais solitários, e isso é caldo de cultura do medo. Você entende?

CC: Entendo. Mas essa interação não passou para as redes sociais, que muitos consideram a nova ágora?

HS: Isso não é ágora, não, viu…

Nem no impeachment de Dilma Rousseff percebemos a profundidade da fratura social, cujo estopim se deu nos protestos de 2013. Nabuco era visionário – Imagem: Acervo/Fundação Joaquim Nabuco, Victor Moriyama/Getty Images/AFP e Juca Varella/ABR

CC: … Certo. Mas como lidar com o fato de que as redes sociais predominam nessas interações, no compartilhamento de informação?

HS: Nas redes, não me parece que os usuá­rios procurem informação. As bolhas alimentam o vazio do pensamento. E se você não pensa, não questiona. É preciso abrir a janela da internet para o pensamento entrar. O vento entrar e desarrumar tudo. Na hora em que se rearruma, criam-se as conexões para ser crítico. Outra coisa fundamental é como criar as ferramentas para gerar uma cultura democrática no Brasil. O Joaquim Nabuco, lá no século XIX, diz uma coisa que parece que ele olhava para o Brasil atual. É o seguinte: este é um Estado nacional fundado sobre uma única estrutura, a escravidão. E em volta de um projeto fundado na escravidão, dizia o Nabuco, vai florescer uma sociedade hierárquica, racista, desigual e muito violenta. Como lidamos com isso? Ele fala: recobrimos essa sociedade com uma epiderme civilizatória, mas é uma epiderme. Corta fácil e o fundo recessivo brota. E essa, afirmava, é a nossa ficção engenhosa de nação. Quando acaba a ditadura e vem a Constituinte de 1988, colocamos muita energia na questão da defesa das instituições e da prática formal da democracia, eleições regulares etc. Deixamos de lado, porém, a nossa ficção engenhosa de nação. Não nos preocupamos em estimular uma cultura democrática para enfrentar uma sociedade com essas características. Além disso, qual a nossa imaginação de futuro, que projeto de Brasil desejamos? Perdemos a dimensão do futuro nos últimos quatro anos. Reinou a destruição.

CC: Quando Bolsonaro venceu as eleições, muitos analistas vaticinaram o fim da Nova República. Quatro anos depois, Lula, um produto da Nova República, está de volta ao poder. Aquele projeto iniciado nas Diretas Já e que desaguou na Constituição de 1988 ainda dá conta das urgências do País?

HS: A grande transformação no fim da ditadura foi o fato de que o ideal da democracia deixou de ser encarado como um meio de se alcançar outra forma política. Nos anos 1960, os progressistas viam no combate à ditadura o caminho para se chegar ao socialismo. Depois, a busca pela democracia passou a ser um fim em si mesmo. É a grande herança do fim do regime militar. E isso marca nossa Constituição, que tem várias falhas, mas é forte no campo dos direitos civis e das políticas públicas. Ela não está ultrapassada. É como nos versos do Paulinho da Viola: quando penso no futuro, não esqueço do passado. Toda a luta dos anos 80, a Constituinte, oferece os padrões, o repertório, para a gente pensar no Brasil que queremos fazer juntos. Não à toa, o governo Lula tem se dedicado a relançar programas sociais destruídos por Bolsonaro. É preciso um chão.

CC: O extremismo de direita veio para ficar, será uma força constante na disputa política e eleitoral?

HS: A sociedade brasileira tem uma fatia reacionária muito grande. Tem um texto muito bom do Felipe Nunes, da Qaest, no qual ele chama atenção para o fato de que essa força, surgida nas franjas das manifestações de 2013, se calcificou. Se for assim, o objetivo de quem almeja uma democracia deve ser quebrar essa calcificação. O desaparecimento de um centro político é ruim. Aconteceu algo parecido em 1964. Do jeito que está, não tem debate. É só enfrentamento.

“Nunca nos preocupamos em estimular uma cultura democrática para enfrentar uma sociedade hierárquica, racista, desigual e violenta”

CC: Dez anos depois, como interpretar as chamadas jornadas de junho de 2013?

HS: Vamos saber melhor em breve. ­Angela Alonso vai lançar um livro sobre a pesquisa que ela fez sobre o tema logo, logo. Havia duas coisas estranhas naquele movimento. O reacionarismo sai da toca e vai da margem para o centro, até tomar as ­ruas das forças progressistas. Falo especificamente de 2015 e 2016. Lembro de uma imagem simbólica, no dia da votação do impeachment de Dilma ­Rousseff, quando em frente ao Congresso se formam dois grupos, contra e a favor. Separados por uma espécie de muro. Foi sintomático. Ao mesmo tempo, o movimento de reivindicações também era diferente, por não ter criado interlocução fora daquele ambiente. Era uma pauta difusa, vaga, embora englobasse temas importantes, entre eles o direito às cidades, novas formas de viver. Foi formulado de maneira caótica, mas enviou um recado ao governo que a Dilma não considerou, a importância das políticas públicas e sociais. O que aconteceu foi ignorado pelo governo e, talvez, se a presidenta e seus assessores diretos tivessem prestado mais atenção, essa ascensão do extremismo de direita acabasse contida naquele momento. Subestimou-se o que estava acontecendo.

CC: Caso a senhora e a Lilia Schwarcz atualizassem o livro ­Brasil, Uma Biografia, como seria?

HS: Até conversei com a Lilia a respeito. Certamente, voltaremos a falar do assunto. Não sei ainda exatamente o que ela pensa, mas esse nosso biografado é muito surpreendente e difícil. Faz coisas que não daria para imaginar que ele fosse capaz de fazer. Tenho me assustado muito nos últimos tempos. O que a ­Lilia me chamou a atenção, e eu concordo, é que precisamos esperar um pouco para ver os desdobramentos deste período iniciado em janeiro. Até para entender essa reconstrução, senão o biografado fica em suspenso. Posso dizer apenas que é o biografado mais difícil da história das biografias no mundo (risos)…

CC: … Quiçá do universo…

HS: … Quiçá, olha… Como é difícil ­(risos). •

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Futuro em disputa’

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