Entrevistas

Em Israel, é proibido expressar simpatia pelas crianças mortas em Gaza, diz parlamentar israelense

Em entrevista a Glenn Greenwald publicada com exclusividade por CartaCapital, Ofer Cassif, do partido Hadash, fala sobre os ataques do Hamas e a reação de Israel

Foto: Reprodução/Rumble/Glenn Greenwald
Apoie Siga-nos no

O jornalista Glenn Greenwald entrevistou Ofer Cassif, parlamentar de Israel, para seu programa System Update, exibido pelo Rumble. Em pauta, o ataque do Hamas em 7 de outubro, os incessantes bombardeios israelenses contra a Faixa de Gaza e os riscos de escalada no confronto, por meio do envolvimento de outros países ou de uma guerra civil em Israel.

CartaCapital reproduz com exclusividade a tradução da entrevista:

Glenn Greenwald: Temos aqui um convidado que será muito útil para nos ajudar a explorar o ponto de vista israelense sobre a guerra e muito mais dessas questões. Para nosso segmento de entrevista, nós vamos falar com Ofer Cassif, membro eleito do Knesset, parlamento israelense, pelo partido Hadash.

Dr. Cassif é um crítico ferrenho do governo Netanyahu por uma variedade de motivos, incluindo o tratamento dado aos palestinos pelo governo israelense, cujas ações ele e seus aliados já vinham alertando há algum tempo que resultariam em ataques do tipo que Israel sofreu nas mãos do Hamas em 7 de outubro.

Por essa razão e outras, Dr. Cassif é uma figura polarizadora e bastante controversa em Israel. Ele foi suspenso recentemente por 45 dias pelo Knesset após tecer críticas às ações recentes do governo, mas ele também representa os pontos de vista de uma facção não trivial, embora muitas vezes esquecida na política israelense, e independente do que se pense sobre seu ponto de vista, ele é um representante bem informado e contundente dessas opiniões.

Por essa razão, nós temos o prazer de recebê-lo no System Update em um momento de decisões extremamente significativas não só para o governo israelense, mas também para seus aliados americanos em Washington.

Deixe-me começar perguntando a você sobre a situação política israelense. Como um americano, grande parte de nosso referencial é sobre o que aconteceu no ataque de 11 de setembro às Torres Gêmeas, e muitas pessoas têm feito uma comparação, não necessariamente no mesmo âmbito, mas no mesmo teor aos ataques feitos pelo Hamas em 7 de outubro. Nos Estados Unidos houve, certamente, essa reação de apoio popular em que os americanos se uniram em torno das políticas do governo da época, mas também se uniram em apoio ao presidente Bush. Sua aprovação disparou. As pessoas estavam dispostas a dar muito do benefício da dúvida para ele. Como é essa situação em relação ao povo israelense? Eles também estão se unindo de forma semelhante, não apenas às decisões do governo, mas ao primeiro-ministro Netanyahu?

Ofer Cassif: Em primeiro lugar, obviamente, tenho de ser muito claro em condenar totalmente o massacre e a matança perpetrados pelo Hamas contra civis inocentes no Sul de Israel. Ao mesmo tempo, também quero ser muito claro em minha objeção ao massacre que Israel faz contra Gaza.

O que acontece agora em Israel, após o terrível e horrível massacre ocorrido no Sul, é que a grande maioria das pessoas em Israel busca vingança. E o governo, que sempre foi um governo populista, um governo populista de direita, não sitia realmente Gaza para proporcionar segurança aos israelenses. Quero que os israelenses vivam em paz e em segurança, obviamente. Meu pai está lá, assim como muitos amigos meus e eu normalmente estou lá. Então, é claro, eu quero que os israelenses vivam em paz e em segurança. Eu quero o mesmo para os palestinos. Tem de ser muito claro para todos que ocorre uma simbiose entre palestinos e israelenses. Se um lado vive sem segurança e paz, necessariamente, o outro vive sem paz e segurança. Não é um jogo. É exatamente o oposto.

Como eu comecei a dizer, é lamentável que, dado o massacre, na sequência o governo de Israel prosseguiu com um terrível ataque ao povo palestino em Gaza – e, a propósito, na Cisjordânia a situação é muito grave também.

A vasta maioria do Estado de Israel busca vingança, porque estão indignados e sofrendo, com razão. O que vai acontecer a longo prazo é que o governo, em vez de pensar e planejar para encerrar esse derramamento de sangue, acabar com este terrível derramamento de sangue, irá buscar vingança. E o governo também está constrangido com o que levou ao massacre no Sul. Militarmente falando, o momento é de um gigantesco fiasco para o governo e eles estão constrangidos, especialmente Netanyahu, que é, obviamente, completamente responsável por esse fiasco.

Então, por causa disso, nós não vemos apenas um ataque criminoso a Gaza, criminoso na medida em que realiza crimes de guerra contra pessoas inocentes. Novamente, isso não quer dizer que o Hamas não cometeu crimes de guerra, é claro que cometeu. O ataque imoral a Gaza envolve prejudicar a dinâmica cotidiana e a segurança de Israel, que dirá a dos palestinos.

Então, minhas críticas são, de modo geral, em relação aos políticos e aos problemas morais, políticos e de segurança. De um lado, Netanyahu e seu governo se justificam porque todo mundo ou a maioria das pessoas busca vingança… Existe um movimento pela paz em Israel, composto por judeus e árabes, e eles querem ir às ruas para se manifestar, mas no momento isso está proibido. Uma parte de ser a única democracia no Oriente Médio é o fato de que, neste momento, em Israel, é proibido se manifestar contra a guerra e expressar simpatia pelas crianças mortas em Gaza. Qualquer um que tente fazer isso é preso, entrevistado e interrogado. E se a manifestação ocorrer nas ruas, provavelmente serão espancados pela polícia.

Isso aconteceu ontem e hoje algumas vezes. O que Israel tem feito na última semana e meia em Gaza? Ao mesmo tempo, as pessoas estão clamando por uma resignação de Netanyahu. Então esse é, eu diria, um tipo de atitude dialética, digamos, em relação a Netanyahu e ao seu governo.

Ofer Cassig, membro do Knesset. Foto: Emmanuel Dunand/AFP/Getty Images

Greenwald: Então, deixe-me perguntar, só para levantar a comparação com o 11 de setembro, porque eu achei interessante o que ocorreu no sábado e no domingo, quando as pessoas do Ocidente acordaram pela manhã do sábado e começaram a ver os vídeos e ouvir as reportagens. E então, no domingo, a dimensão completa do massacre do Hamas ficou clara. Quase todos, eu diria, reagiram ao ataque do Hamas com raiva, horror e repugnância. Quase todos condenaram o ataque, incluindo críticos de longa data do governo de Israel e da ocupação israelense. Isso estava dado, era uma certeza.

Isso não foi apenas uma união em Israel, mas também nos Estados Unidos e no Ocidente. E aconteceu exatamente isso após o ataque de 11 de setembro. As pessoas se uniram e pensavam que o feito da Al Qaeda nos Estados Unidos era moralmente repulsivo e indefensável ao atacar civis. E a lição que aprendemos não significa que tudo que fizemos em resposta ao ataque ou tudo que fizemos em nome da punição dos responsáveis pelo ataque foi certo, muito disso acabou sendo contraproducente ou vergonhoso.

Então, você está dizendo que muitos líderes e cidadãos israelenses estão agindo com vingança e eu consigo compreender isto. Mas Naftali Bennett, ex-primeiro ministro de Israel, disse em um artigo para The Economist: “Nós estamos fazendo uma estratégia pela qual cortamos água, comida e remédio em Gaza, enterrando o máximo que podemos em Gaza. Nossa estratégia é de colocar o medo na mente de nossos inimigos, para que eles fiquem com tanto medo que acabem desistindo e se rendam em submissão a nós e nunca mais nos ataquem novamente”. Isso é parte da estratégia? E se for, o que você acha disso?

Ofer Cassif: Veja, esse é um ponto de vista muito infantil vindo do Sr. Bennett e eu não tenho muita certeza se ele acredita no que mesmo disse, porque é muito claro na História. É amplamente conhecido que existem pessoas que vivem sob opressão. Pode ser uma opressão nacional, religiosa ou de gênero, mas nós nunca demos esperança às pessoas que estão em uma ocupação nacional. É muito claro que quando há uma esperança de libertação, os fanáticos se tornam menos influentes. Porque quando as pessoas têm esperança, elas normalmente não costumam apoiar ou fazer coisas loucas e fanáticas.

Por outro lado, quando as pessoas sentem que não têm nada a perder, isso me lembra uma frase muito famosa de Karl Marx: “o trabalhador não tem nada a perder a não ser suas correntes”. Então, quando as pessoas sentem que não têm nada a perder a não ser suas correntes, elas fazem coisas loucas e fanáticas. E isso é exatamente o oposto do que o Sr. Benett disse. E, novamente, isso é um problema de aspecto histórico e teórico.

Então, se os palestinos tivessem alguma esperança de que a ocupação terminaria logo, que houvesse uma verdadeira inclinação de Israel em fazer a paz ou buscá-la, um acordo, e que todos os palestinos iriam desfrutar de seu próprio Estado soberano e independente nos territórios ocupados por Israel desde junho de 1967 – Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental como a capital do Estado palestino -, se as pessoas soubessem ou acreditassem que esses objetivos estavam perto de serem alcançados, eles não teriam apoiado alternativas fanáticas e loucas, mas exatamente o oposto.

Isso foi exatamente o que aconteceu logo após os Acordos de Oslo. Sem entrar no mérito do conteúdo dos Acordos de Oslo em relação a pontos de vista éticos, seja para o bem ou para o mal, certo ou errado. É um fato que, quando as negociações entre a OLP e o governo de Israel – o falecido primeiro-ministro assassinado Rabin e o falecido Yasser Arafat – eram explícitas, quando eram públicas, havia esperança entre os palestinos, assim como entre os israelenses, de que a paz estava próxima e os palestinos seriam libertados.

Era visível que o Hamas estava muito fraco porque havia esperança. Isso ocorreu após os Acordos de Oslo. Quando o Hamas se fortaleceu e atingiu o auge de seu poder? Quando não há esperança. Eu enfatizo novamente a questão moral. Estou falando agora sobre a questão política e estratégica. E, assim, deve ser exatamente o oposto.

Uma coisa que todos deveriam entender também é que os palestinos não são o Hamas e o Hamas não é o povo palestino. Deve haver uma distinção.

O discurso público hegemônico no momento em Israel – e eu digo “no momento” porque eu tenho certeza de que irá mudar – é que eles não querem fazer essa distinção. Eles querem dizer que os terroristas estavam sendo alvos, mas os palestinos que estão sendo mortos agora em Gaza, incluindo bebês, crianças pequenas, idosos, mulheres e outros, são na maioria civis inocentes. Portanto, o governo de Israel ficou confuso quando porta-vozes de Israel e a maioria no discurso público em Israel, no momento, não fizeram a distinção e argumentaram que não há distinção, que as pessoas em Gaza, se não todos os palestinos, são mais ou menos como o Hamas, o que, claro, é um absurdo.

É como dizer que a vasta maioria dos israelenses apoia o partido fascista do chamado sionismo religioso de Smotrich. A vasta maioria, é claro, não apoia isso. Os israelenses e o Poder Judeu, esse partido fascista, se não pior, não representam a maioria dos israelenses. O mesmo se aplica ao Hamas e aos palestinos.

E o problema é que, mais uma vez, se não há esperança, há uma inclinação pública para seguir os fanáticos. Se houver alguma esperança, é exatamente o caminho contrário. Então, o interesse é, além de justiça e moralidade, que requer de nós obviamente rejeitar qualquer tipo de danos a civis inocentes e, é claro, um cessar-fogo, troca de prisioneiros e sequestrados, fim da ocupação, obter uma solução pacífica etc.

Isso é algo que já devia ter sido feito no primeiro segundo após o massacre. Estou muito preocupado com os aparentemente 200 israelenses que foram sequestrados pelo Hamas em Gaza. Alguns deles eu conheço. E pelo menos um deles é nosso apoiador e amigo, e, a propósito, perdi alguns conhecidos e amigos neste massacre pelo Hamas. E, portanto, esse é o interesse de Israel, não apenas em termos de moralidade, mas o interesse de Israel em acabar com isso.

Dessa forma, israelenses e palestinos poderiam viver em paz e segurança. Esse também é o interesse dos israelenses, até mesmo dos Estados Unidos. Se os Estados Unidos e a administração Biden realmente se preocupam com o bem-estar dos israelenses e dos palestinos, eles deveriam se opor ao que Israel está fazendo no momento, não resistir a isso. Esse é o verdadeiro interesse de Israel. Isso não é anti-Israel. Isso é pró-Israel.

Greenwald: É importante focar por um momento na questão da solução. Por muito tempo, os americanos e os judeus americanos, em particular, foram levados a acreditar e convenceram a si próprios de que a razão pela qual era moralmente justificado continuar a apoiar Israel, mesmo negando o Estado aos palestinos, era que todos estávamos trabalhando em direção a esse resultado ideal, que era uma solução de dois Estados em que ambos viveriam lado a lado em paz. E acredito que muitas pessoas chegaram à conclusão de que, devido aos assentamentos israelenses e sua constante expansão na Cisjordânia, qualquer esforço para criar um Estado palestino real agora é, na prática, impossível, porque isso exigiria a remoção de muitos colonos na Cisjordânia, que estão fortemente armados e não vão sair de lá sem algum tipo de guerra civil. Portanto, você ainda vê uma solução de dois Estados como realista? E, se não, quais outras alternativas existem para chegar ao ponto que você está descrevendo?

Ofer Cassif: Primeiramente, acredito que a solução de dois Estados é a única solução realista. Existem apenas duas alternativas: ou uma solução de dois Estados ou uma solução de “apartheid” de um Estado. No momento não há uma chance realista de ter um único Estado democrático. A realidade no momento é mais ou menos um Estado, mas em uma forma que se assemelha ao que existia na África do Sul durante o apartheid. Não há como transformar essa realidade em uma realidade democrática de um Estado. Eu e meus amigos não temos nenhuma oposição ideológica a um Estado único. Simplesmente somos realistas e pragmáticos. Sabemos que isso é impossível.

A dificuldade está na evacuação dos assentamentos, que, aliás, de acordo com o direito internacional, é completamente ilegal. A dificuldade é sobre a possibilidade de evacuá-los. E com os territórios palestinos ocupados de 1967, não é fácil. A possibilidade de transformar Israel em um Estado democrático único é muito mais difícil e quase inexistente. Portanto, talvez tenhamos de escolher entre duas soluções ruins, mas precisamos escolher a menos ruim. E tenho que dizer algo. Uma vez que você mencionou a guerra civil, estamos à beira de uma guerra civil. E acredito que, se eu tiver que me dirigir ao povo americano publicamente, estamos à beira de uma guerra civil dentro de Israel, o que me preocupa muito por uma razão muito simples. Os fanáticos, as milícias fascistas próximas de Itamar Ben-Gvir estão ficando mais fortes. E se isso não for suficiente, eles agora estão armados por causa dele, que agora é o ministro da chamada Segurança Nacional.

Ele emitiu um decreto há alguns dias que facilita para todos, desde que sejam judeus, obter armas. E eles conseguiram se armar nos últimos dias. Todos esses são politicamente e ideologicamente muito próximos a Itamar Ben-Gvir. Eles também são treinados. Estão realizando treinamento. Alvos foram publicados em grupos de WhatsApp e nas redes sociais, nomes e endereços de palestinos, assim como de judeus progressistas. Portanto, existem três elementos combinados que representam um risco sério de guerra civil: pessoas que já estão sendo visadas, fanáticos que já estão treinados e armados, e a luz verde do governo. Esse é o risco de uma guerra civil, não a evacuação dos assentamentos.

Então, tenho de dizer mais uma coisa que não sei o quanto as pessoas estão cientes. Nos últimos dias, Israel se tornou rapidamente uma ditadura, mesmo dentro de suas fronteiras. Agora é proibido realizar manifestações. Não há permissão para realizar manifestações. De maneira alguma. Ninguém vai apoiar o Hamas. Definitivamente, não eu, meus colegas e camaradas. Todos nós sabemos quem de fato fortaleceu o Hamas em Gaza e lhes deu dinheiro e apoio em acordos. Foi o próprio Netanyahu quem explicitamente disse que quer o Hamas mais forte e a Autoridade Palestina mais fraca. Ele é pessoalmente responsável pelo Hamas. As pessoas são presas e depois brutalmente agredidas pela polícia se tentarem protestar como manifestantes pacíficos que desejam se opor à guerra porque desejam a paz, não porque desejam que o Hamas vença. Eles querem que a paz prevaleça.

Então, não podem se manifestar contra a guerra. Eles não podem expressar simpatia ou empatia pelas crianças de Gaza em manifestações, pois elas são proibidas e são agredidas. Além disso, algumas pessoas que conheço foram demitidas de seus empregos porque escreveram algo nas redes sociais – novamente, não a favor do Hamas, longe disso, mas a favor da paz e da empatia pelas vítimas da violência de ambos os lados.

Alguns deles foram demitidos de seus empregos. Estudantes foram suspensos das universidades por isso. E é exatamente isso o que Biden quer apoiar.

Greenwald: Eu estava prestes a lhe perguntar sobre esses relatos que tenho visto nos últimos dias, inclusive de pessoas em Israel com as quais tenho conversado, de que não é apenas uma proibição de manifestações, mas eles estão monitorando a atividade nas redes sociais, incluindo o simples ato de curtir conteúdo que consideram subversivo.

De alguma forma, parece bastante grave. Você mencionou anteriormente a preocupação ou o risco que Netanyahu enfrenta – porque, no fim das contas, esse ataque aconteceu sob a sua gestão e ele não detectou os ataques. Não houve um esforço rápido para impedi-lo. Honestamente, isso é algo que estou tendo dificuldade para entender, porque os israelenses são conhecidos por sua alta expertise em tecnologia de vigilância. Sempre vi Gaza como provavelmente o lugar mais vigiado da Terra. Nunca vi ninguém conseguir se aproximar daquela cerca antes, quanto mais fazer o que fizeram ao atravessá-la. E, além disso, demorou horas para que o exército e a polícia chegassem a essa parte do Sul de Israel. O que explica isso? Quero dizer, vi algumas teorias de que isso pode estar relacionado à luta civil que você mencionou, com a tentativa de eliminar a independência judicial e reservistas em greve. Talvez tenha sido a fixação na Cisjordânia ou a forma como nossos ativos militares israelenses estão na Cisjordânia. Mas quais são, na sua opinião, as razões para que uma falha dessa magnitude tenha ocorrido?

Ofer Cassif: Ironicamente, alguns dias antes do massacre do Hamas, nós comemoramos em Israel o 50º aniversário da guerra do Yom Kippur, em 1973, no qual Israel sofreu um ataque surpresa pelo Egito e pela Síria. E eu digo ironicamente porque parece que a História “se repetiu”. Novamente, se eu citar Marx, acredito que você pode adivinhar quais são as minhas opiniões políticas. E Marx disse em um dos seus escritos que “a história se repete duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa”.

Então, infelizmente, eu jamais iria me referir ao massacre como farsa, porque foi uma tragédia também, mas observe que mencionei a guerra de 1973 por uma de suas conclusões. Lidamos muito com isso no discurso público israelense desde então, e a arrogância com que o governo de Israel foi afetado em 1973. Eu diria que isso também faz parte da situação atual, a arrogância. Mas é muito fácil dizer que esse é o único aspecto da questão ou o principal. Então, eu tenho de citar três pontos. Vou tentar ser o mais breve possível.

Primeiro, um ministro egípcio disse alguns dias atrás – e foi publicado algumas semanas antes do massacre no Sul – que o Hamas estava planejando algo grande. Então, Netanyahu foi informado pelos egípcios, por um ministro, de que o Hamas estava planejando algo grande. Ele preferiu ignorar essa informação. E o ministro do Egito disse que ficou chocado, pois Netanyahu apenas o ignorou e demonstrou uma espécie de apatia para os avisos que o Egito tinha dado. Isso pode ser arrogância. Ou pode ser outra coisa. Deixo isso para você refletir.

Segundo, foi publicado nos jornais, assim como nas mídias sociais, que alguns soldados perto da fronteira entre Faixa de Gaza e Israel, nos últimos dias antes do massacre, constataram um movimento estranho dentro da Faixa de Gaza. Houve outro aviso que foi ignorado. E, é claro, se acrescentarmos o fato do fiasco da Shin Bet e da Inteligência Israelense, podemos ver que existe um fiasco sistemático, cuja falha levou a isso e a diversas outras coisas.

O aviso do ministro egípcio não foi apenas ignorado, mas o próprio Netanyahu transferiu algumas de suas unidades que estavam consistentemente e continuamente na fronteira entre Gaza e Israel para a Cisjordânia, para onde, no meu ponto de vista, foram transferidas para apoiar os colonos israelenses nos seus pogroms contra os palestinos. Ele deixou, na verdade, a fronteira entre Israel e a faixa de Gaza quase vazia. Um dos membros do Hamas, que foi capturado e interrogado, disse que quando o ônibus passou das cercas entre Gaza e Israel, eles estavam em choque e surpresos porque não havia ninguém esperando por eles. Não havia nada, as fronteiras estavam negligenciadas.

Uma boa amiga minha, uma americana de Minnesota, me enviou uma mensagem pelo WhatsApp dizendo que ela e o marido passaram quatro horas em uma sala de segurança em um dos kibutzim perto da Faixa de Gaza, e ninguém apareceu. Eventualmente, ela e o marido foram assassinados pelo Hamas. Ela esperou quatro horas, talvez mais. Eu conheço algumas pessoas que esperaram muito mais tempo. E ninguém veio. Além de todas as questões morais e políticas, militarmente falando houve uma grande falha. E o principal responsável, é claro, é o primeiro-ministro. Ele deveria ter ido para casa no mesmo dia se fosse uma pessoa decente, deveria ter anunciado que ficaria para lidar com esse desastre, teria se declarado responsável por tudo que aconteceu e que iria para casa depois que tudo tivesse terminado. Mas ele não é uma pessoa decente.

Greenwald: Em termos dos motivos dessa violência e da retaliação, discutimos um pouco sobre os motivos dos israelenses, seja apenas vingança, seja a teoria de Natalie Bennett de tentar instilar medo nas mentes do inimigo para que eles se submetam, o que nunca vi funcionar na história.

Uma das teorias que ouvi e li se baseia no fato de que temos ouvido há muito tempo que muitas pessoas com as quais o primeiro-ministro Netanyahu se aliou, como parte de sua coalizão, são mais extremistas do que nunca, e muitas delas simplesmente não veem a Cisjordânia e Gaza como território palestino de forma alguma. Eles veem isso como parte de Israel Maior. Há alguma validade aqui? Porque eles dizem isso explicitamente.

Existe alguma preocupação ou alguma validade na possibilidade de, ao tentar tornar o norte de Gaza inabitável e já terem ordenado que as pessoas do norte de Gaza se mudem para o sul de Gaza, mas agora com a tentativa de abrir a fronteira com o Egito, existe uma tentativa de fazer com que as pessoas do norte de Gaza ou de Gaza como um todo se desloquem para o Sinai, para que os israelenses possam então retomar o controle de Gaza e transformá-la em uma espécie de saída deles?

Ofer Cassif: Existem muitos ativistas fanáticos associados a alguns dos partidos que compõem a coalizão no governo de Israel, que explicitamente têm dito nos últimos dias, enquanto o sangue ainda corre, que este é o momento de reocupar a Faixa de Gaza, expulsar os palestinos, de uma forma ou de outra, e ajudar a reconstruir os assentamentos que estavam lá antes. As pessoas dizem isso explicitamente, não é segredo, e não tentam esconder quem são.

Algumas pessoas dentro da coalizão tentam ser mais cautelosas, especialmente os ministros, mas todo mundo sabe que alguns dos ministros são lunáticos e se comportam da mesma forma e querem a mesma coisa. Talvez a maioria deles não diga isso explicitamente no momento. De fato, eles disseram isso no passado. Há uma fanática intolerante, Orit Strook, que disse há alguns meses e há alguns anos – e eu não tenho a frase aqui na minha frente, mas lembro mais ou menos as palavras exatas: ela disse que a terra de Israel foi adquirida através do sofrimento. Ela disse que os israelenses – e ela se referiu ao povo judeu – provavelmente deveriam sofrer para reconquistar Gaza.

Porém, reconquistar Gaza seria mais importante que o sofrimento dos judeus, pois isso seria um decreto divino a ser seguido, ela disse. Eu preciso reiterar isso, porque estamos em um programa americano vinculado ao público americano: observe a quem sua administração apoia. Isso não é um apoio a Israel. Isso não é um apoio ao povo israelense. Isso é um apoio para um bando de lunáticos e fanáticos. Isso é contra o interesse de Israel e, é claro, do povo palestino.

Mas eu quero colocar isso em um contexto maior. Em 2017, Smotrich, atual ministro das Finanças e ministro da Defesa, era relativamente obscuro, um estranho, membro do Knesset, publicou um plano que era normalmente traduzido como a “reivindicação da subjugação”. Eu entendo que, em outras traduções, parece que se chama “plano alternativo”. Eu acho que “subjugação” é uma tradução mais precisa.

Esse plano consiste de três elementos básicos. Um deles é de que Israel precisa anexar todos os territórios ocupados pela Palestina, principalmente a Cisjordânia e, possivelmente depois, a Faixa de Gaza. É um plano de 2017 que, caso seja atingido, não irá conceder direitos aos palestinos, significando um regime de apartheid pleno.

O segundo ponto mencionado é de que palestinos que não aceitarem seu status como subjugados sem direitos serão expulsos de sua terra natal, que, obviamente, ele não reconhece como sua terra natal, porque ele rejeita completamente a ideia de que existe um povo palestino.

E o primeiro ponto, embora já o tenhamos mencionado implicitamente, é de que os palestinos que resistirem ao status de subjugados serão mortos. Na minha opinião, este governo, desde a sua própria criação, decidiu realizar a reivindicação da subjugação em pequenas proporções, e está buscando pelo menos parcialmente o golpe de Estado, que às vezes é erroneamente considerado ou intitulado como a reforma judicial que o governo de Netanyahu tentou seguir e realizar.

Isso foi um golpe de estado, porque a ideia era transformar completamente o governo de Israel em uma ditadura fascista completa. E o principal ingrediente desse golpe de Estado foi a eliminação da independência do sistema judicial. Assim, conforme o governo tentou controlá-lo, isso significa que, se tivessem obtido sucesso nesse plano, o governo teria sido a única autoridade, porque o governo já controla o Parlamento. O sistema parlamentar é diferente, é claro, do sistema americano. Isso teria significado, é claro, uma ditadura. Eles falharam. Eles falharam em fazê-lo, graças aos milhões de cidadãos em Israel que foram às ruas protestar contra esse golpe de Estado. P

ortanto, eles precisavam de uma alternativa. A propósito, isso significa que o golpe de Estado não foi o fim, foi o meio, e o fim sempre foi o plano de subjugação de Smotrich. E, à medida que falharam nas tentativas ou alternativas de realizar esse plano fascista e racista, qual pode ser a alternativa em geral e especificamente em Israel?

O que eu quero dizer é que o governo de Israel estava interessado em tensão e confronto. Quero enfatizar: não tenho a menor intenção de insinuar que o governo de Israel estava interessado na carnificina ou no massacre que vimos no Sul de Israel. Absolutamente não. Como eu disse, sei que esse governo consiste em lunáticos e fanáticos, mas não acredito que ninguém seja tão louco a ponto de endossar e se interessar por um massacre terrível como o que aconteceu no Sul.

Portanto, não tenho a intenção e não insinuo que o governo de Israel estava interessado no desastre que ocorreu no Sul. Eu digo que o governo de Israel está interessado em um tipo de confronto, porque uma vez que haja um confronto, pode ser usado como cortina de fumaça para perseguir outros planos. Então o que eu quero dizer é isso: o governo israelense não é culpado, obviamente, pela carnificina feita pelo Hamas no Sul. E eu preciso enfatizar que isso não é culpa do governo de Israel. Porém, uma vez que aconteceu, o governo israelense pode usar isso como desculpa para promover essa “subjugação” e é isso que eles têm feito.

Existe uma estratégia. Uma estratégia é o corpo a corpo em Gaza, atacar Gaza, bombardear Gaza, fazer com que o objetivo final seja destrui-la por completo e, talvez, expulsar as pessoas de lá. E isso é parte do plano de subjugação. E algumas pessoas são muito explícitas quanto a promover esse plano, incluindo a coalizão e membros do Knesset.

Existe um grupo que assinou uma carta clamando a conquista da Faixa de Gaza por Netanyahu, expulsando os palestinos para, pelo menos, o Sul do país, acomodando os judeus no território conquistado. Mesmo com o medo dentro do Knesset, poderíamos persuadir o partido de Netanyahu… Alguns de seus membros, não todos, pediram a Netanyahu que o fizesse. Portanto, esse risco existe.

Há outra estratégia na Cisjordânia, e eles aconselham a todos que não ignorem a situação na Cisjordânia, porque a situação lá está em constante deterioração e está piorando a cada hora.

Há muitos meses, antes do massacre, houve pogroms por parte dos colonos sob a égide das forças de ocupação israelenses e, é claro, encorajados pelo governo. Houve pogroms de colonos contra os palestinos, incendiando campos, cortando árvores e incendiando casas com pessoas dentro, além de alguns assassinatos de palestinos, civis inocentes, principalmente pastores e agricultores.

E eu avisei o ministro da Defesa em 10 cartas diferentes, cartas oficiais que enviei a ele como membro do Knesset nos últimos oito ou nove meses. Eu o adverti contra os pogroms. Em primeiro lugar, é claro, a polícia do Estado é imoral, são criminosos. São crimes de guerra que devem ser interrompidos e os criminosos devem ser processados e presos. Também acrescentei nessas cartas que isso levaria a uma explosão. Além do cerco contínuo de 16 anos a Gaza, que a transformou em um vulcão esperando entrar em erupção.

Eu avisei o ministro. Não recebi uma resposta dele, nada. Agora está ainda pior porque, sob a cortina de fumaça da guerra, os civis não estão apenas incendiando e cortando árvores como antes, eles estão realmente marchando livremente por toda a Cisjordânia, entrando em vilas e matando pessoas. Há alguns dias, eles entraram na vila palestina de Kosa, na Cisjordânia. Dispararam por todos os lados. Mataram quatro civis inocentes e foram embora. Ninguém os deteve. Nenhuma polícia, nenhum exército, nada. Eles fizeram o que quiseram. Isso é o reino da Klu Klux Klan.

E, no dia seguinte ao funeral desses quatro, eles voltaram e atiraram, atiraram no funeral e mataram mais dois. Um pai e um filho. Até onde eu sei, desde o massacre no Sul e o ataque a Gaza, na Cisjordânia, cerca de 70 ou 80 palestinos foram mortos, seja por colonos ou pelas forças de ocupação, e isso significa limpeza étnica.

Semanas antes do massacre, eu visitei os pastores e a comunidade de pastores daquela região e percebi que já haviam sido expulsos à força por esses fanáticos. Agora, estamos falando de cidades, não de pequenas comunidades com duas tendas. Estamos falando de cidades duas vezes maiores que Tel Aviv. Foi feita uma limpeza étnica. Onde está a comunidade internacional nisso?

Greenwald: O mais surpreendente é que apesar dessa tentativa de focar tudo no Hamas, à luz, é claro, desse massacre que provocou muita repulsa, não existe Hamas na Cisjordânia. Seja lá o que Israel estiver fazendo na Cisjordânia, a violência contra os palestinos não pode ser justificada porque o Hamas não governa a Cisjordânia.

Deixe-me fazer uma última pergunta. Por mais terrível que tudo esteja agora em Gaza e em Israel no último sábado, poderia ser muito pior, o que significa que esta guerra poderia se expandir para incluir o Hezbollah e várias outras partes do mundo árabe, como o Irã, que é capaz de causar muita confusão. E a preocupação, eu acredito, além do desejo deles de fazer isso, é que em algum momento as populações desses países forçarão seus líderes a fazer algo, porque eles não podem simplesmente ficar de braços cruzados e assistir aos bombardeios e às mortes de pessoas em Gaza o tempo todo e não fazer nada. Qual é a probabilidade ou a possibilidade de uma escalada de outro conflito regional?

Ato pró-Palestina em Teerã, no Irã, em 18 de outubro de 2023. Foto: Atta Kenare/AFP

Ofer Cassif: Estou preocupado com duas possíveis situações que se combinam. Em primeiro lugar, a guerra civil dentro de Israel, porque, como mencionei há pouco, a estratégia é realizar o plano de “subjugação” de Smotrich na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Há uma estratégia fracassada que se aplica aos palestinos, que representam 20% da população em Israel.

Como mencionei antes, há uma perseguição muito séria aos palestinos, principalmente, embora haja também uma parcela democrática e justa de judeus dentro de Israel. E, como eu disse antes, existem milícias; aliás, a polícia israelense tende a ser uma milícia privada, o exército do ministro. Portanto, há milícias aguardando a luz verde, o comando, o Dia D para atacar dentro de Israel.

Há um sério risco de uma espécie de guerra civil dentro de Israel, com rios de sangue. Esse é um risco muito sério para os israelenses, para a própria existência de Israel. Tenho medo pelo futuro do meu país e pelo futuro dos meus compatriotas, pois estão sob o risco de uma guerra civil. E eles não querem que isso aconteça, assim como os palestinos têm seus próprios direitos, que eu apoio. Então, esse é um perigo.

O outro, como você mencionou, é uma guerra regional que pode facilmente se transformar em uma guerra mundial. Tudo está interconectado, mesmo que seja uma guerra civil dentro de Israel – e, obviamente, os principais alvos serão os 20% de cidadãos palestinos, que é resultado do que está acontecendo em Gaza e na Cisjordânia.

Como você disse com muita precisão, o público nos países vizinhos não ficará em silêncio. Eles irão para as ruas em massa, forçando seus governos a fazer algo. Isso vai incendiar toda a região. Isso, além do risco de o Hezbollah não ficar sentado sem fazer nada para sempre. Vimos nos últimos dias que o Hezbollah ousou disparar contra Israel e realizar algumas operações militares, ou pelo menos tentar, e talvez até o Irã entre na cena.

Sabemos que os Estados Unidos já enviaram navios de guerra e muitos soldados para lá, como se estivessem se preparando para tal cenário. Isso é um desastre. Estamos à beira de um colapso – além do que já está acontecendo, dos rios de sangue que foram derramados na Faixa de Gaza, na Cisjordânia e que vão se derramar no sul de Israel, e do risco contínuo para israelenses e palestinos.

Além disso, há um sério perigo de que essa guerra possa destruir Israel como um todo. E estou aterrorizado com isso. Isso pode levar a uma guerra mundial. Apenas imagine o que acontecerá se o Irã entrar em cena com a Rússia, a China e os Estados Unidos. O que vai acontecer, então?

O momento de encerrar é agora, antes que seja tarde demais. Vamos fazer isso agora. É do interesse de Israel e do mundo inteiro: cessar-fogo, troca de prisioneiros, sequestrados e reféns agora, e começar um movimento em direção à libertação palestina e à paz entre os dois Estados e povos.

Se não fizermos isso agora, será tarde demais e vamos nos arrepender. Tudo vai explodir em fogo e sangue. Estou alertando a todos. Espero que esse apelo chegue aos ouvidos de sua administração e políticos. Estamos à beira de um terrível massacre e derramamento de sangue que o mundo não vê há muito tempo. Precisamos parar isso agora. Isso não é anti-israelense. Isso não é antipalestino. Isso não é antiamericano. É em prol de seres humanos em todos os lugares.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo