Entrevistas
Lula dá diagnóstico correto na ONU, mas o ‘remédio’ depende dos outros, diz Ricupero
A CartaCapital, o ex-ministro comenta os destaques do discurso e reflete sobre o baixo impacto das Nações Unidas em relação a temas sensíveis


O ex-ministro Rubens Ricupero, que foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento, classifica como “inatacável” o discurso do presidente Lula (PT) na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, nesta terça-feira 24.
Para Ricupero, Lula fez um diagnóstico preciso dos desafios globais, como o fracasso da comunidade internacional em enfrentar as mudanças climáticas e a urgência de reformar a ONU, mas o verdadeiro desafio está em encontrar os “remédios” para esses problemas, já que a solução depende das grandes potências.
“O discurso de Lula é um bom diagnóstico, com indicação da terapeuta. Ele mesmo não tem o remédio, porque o remédio depende de outros”, afirmou o ex-ministro, referindo-se à necessidade de uma cooperação internacional que ainda não se materializou.
Lula definiu o combate às mudanças climáticas como um dos destaques de seu terceiro mandato, também como forma de reinserir de fato o Brasil na comunidade internacional após a era Bolsonaro (PL). Ao mesmo tempo, o Brasil enfrenta contradições internas, como a discussão sobre a exploração de petróleo na Margem Equatorial, que opõe ministérios e coloca em xeque a coerência ambiental do País.
A CartaCapital, o ex-ministro também ressaltou as incoerências de grandes potências, como Estados Unidos, que, embora liderem o discurso contra a crise climática, seguem a expandir a produção de combustíveis fósseis.
“Somos todos favoráveis a acabar com os combustíveis fósseis. Quando? Aí começam as divergências”, avalia. “Desse ponto de vista, se você me perguntar se o Brasil é coerente, vou dizer que não. Só que não não é o único, é um entre muitos.”
Leia os destaques da conversa com o ex-ministro:
CartaCapital: Quais as suas impressões sobre o discurso de Lula na ONU?
Rubens Ricupero: Ele passa em revista toda a agenda internacional, como o fracasso da comunidade internacional para lidar com os problemas globais, o ritmo insuficiente dos acordos climáticos e os conflitos, de maneira geral com julgamentos bem equilibrados.
Confesso que, para mim, foi até uma surpresa positiva ele ter reiterado a condenação brasileira à invasão da Ucrânia, porque a tendência dele é de relutar em condenar as ações russas. Desta vez ele fala nisso.
Os outros temas todos são corretos, muito dentro de uma tradição multilateral da política externa brasileira. É uma mudança notável em relação ao que era no governo passado.
Ele corretamente procurou focar na agenda global e quase não fala de problemas brasileiros, o que me parece bom, porque o fórum da ONU não é apropriado para isso.
O discurso, em si, é inatacável. As críticas que às vezes se faz estão fora do discurso. A questão, por exemplo, da coerência ou não da posição brasileira em meio ambiente é uma crítica procedente. O Brasil não é coerente nisso, como também os outros não são.
A única coisa de que não gosto é ele reiterar essa proposta chinesa-brasileira sobre a paz na Ucrânia, uma proposta enviesada, porque tende a favorecer a Rússia ao defender a ideia de manter a situação como está no front. Significa que a Rússia continuaria a ocupar 20% da Ucrânia, e isso é incoerente com a condenação que o Brasil faz à invasão.
No resto, o que ele fala sobre a Faixa de Gaza é mais ou menos um consenso no Brasil. Haveria pouca divergência no País de maneira geral em relação ao discurso.
O ex-ministro Rubens Ricupero em entrevista a CartaCapital, em junho de 2024.
CC: O discurso é correto, portanto, mas qual o real impacto da Assembleia Geral na resolução desses conflitos?
RR: De maneira geral, como o discurso mesmo realça, as Nações Unidas têm tido um impacto muito pequeno sobre a realidade e não conseguem realizar a reforma dos seus próprios órgãos. O que o pronunciamento diz sobre a reforma da ONU é correto. Por exemplo, a ideia de transformar o Conselho Econômico e Social, de alterar a composição do Conselho de Segurança, de dar um poder maior à Assembleia Geral. Isso tudo faz parte da agenda necessária de uma grande reforma que nunca se fez.
A única vez que se tentou fazer essa reforma foi quando o Kofi Annan era o secretário-geral. Ele tentou isso em 2005, com uma Assembleia Geral muito ambiciosa, mas acabou não dando certo, porque à época o governo Bush teve uma atitude muito negativa. Quase sempre as razões são essas: as grandes potências não têm vontade política de mudar o status quo.
Não só os Estados Unidos, mas também a China, a Rússia e mesmo os dois países europeus que têm um lugar permanente, a França e o Reino Unido. Se houvesse uma reforma, seria difícil justificar a permanência desses países, que hoje já não têm mais [tanto] poder. Teria muito mais sentido o ingresso de países como Japão e Alemanha, ou no sentido de representatividade o Brasil e algum grande país africano.
Mas para mudar o sistema internacional é necessário um nível muito alto de consenso, exatamente o contrário do que temos hoje. O mundo se caracteriza por um dissenso muito grande, a marca principal do sistema atual é essa divisão entre Estados Unidos e China em praticamente todas as questões.
Quando cita a reforma da ONU, ele diz explicitamente que está consciente da dificuldade, mas que é responsabilidade falar nisso. É a posição correta: por mais que você reconheça realisticamente que não há clima por uma reforma, a sua responsabilidade é defender aquilo em que se acredita.
CC: Esse desacordo afeta também a concretização de acertos internacionais para enfrentar as mudanças climáticas…
RR: Lula está no seu dever e é a posição do Brasil de exigir que haja uma colaboração financeira para tornar possível preservar Amazônia, fazer com que a floresta em pé seja mais negócio que a destruição da floresta. Isso depende muito de recursos financeiros e de uma cooperação internacional que, até hoje, não se concretizou. Ele faz muito bem de lembrar isso.
Em relação a esse desacordo, uma maneira muito útil e valiosa de entender o que está acontecendo é dizer o seguinte: o consenso existe sobre os fins, mas não sobre os meios. Na hora em que você entra no concreto, somos todos favoráveis a acabar com os combustíveis fósseis. Quando? Aí começam as divergências. Nesse ponto o Brasil é incoerente, mas os outros também são.
Os Estados Unidos, os grandes procuradores hoje em dia dessa luta contra a mudança climática, são ao mesmo tempo os maiores produtores e exportadores de petróleo e de gás do mundo. A China é incoerente, a Índia é incoerente.
Não quero dizer que isso justifique, sou ambientalista com convicção. Para mim, o meio ambiente é a questão que predomina sobre as outras. O que acontece é que as pessoas não querem escolher, ou então querem ficar com o melhor do momento atual e preservando um pouco a perspectiva futura.
CC: Como sintetizar a avaliação de Lula sobre a própria ONU?
RR: A ONU é apenas aquilo que a comunidade mundial quer que ela seja. É claro que a responsabilidade não é igual para todos. Há alguns países que podem mais e, por isso, são mais responsáveis. As grandes potências, sobretudo as superpotências, são mais culpadas pelo estado em que se encontra a ONU, enquanto países como o Brasil fazem o correto, que é apontar o diagnóstico e indicar qual é a terapeuta. O discurso de Lula é isso: um bom diagnóstico, com indicação da terapeuta. Ele mesmo não tem o remédio, porque o remédio depende de outros.
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