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Boa intenção, passos lentos

Renato Janine Ribeiro cobra maior celeridade do governo na recomposição de verbas para pesquisas e na definição de postos-chave da administração federal

“Qual é o sentido de usar recursos da ciência para financiar a indústria de armas?”, indaga o presidente da SBPC – Imagem: Taurus Armas e Acervo pessoal
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Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e ex-ministro da Educação no fim do governo Dilma Rousseff, o filósofo Renato Janine Ribeiro respirou aliviado ao saber que o negacionista governo de Jair Bolsonaro saiu derrotado das urnas em 2022. Agora, passados cem dias do governo Lula, ele reconhece que não será tarefa fácil reerguer a área de Ciência e Tecnologia, que perdeu 60% do orçamento destinado às pesquisas entre 2014 e 2022, segundo o Observatório do Conhecimento. Ainda assim, ressente-se com a demora do governo em cumprir as promessas feitas durante a campanha e no período de transição. “As palavras são muito claras, os compromissos são de honra. Agora, aguardamos os atos”, diz Ribeiro.

Na entrevista a seguir, ele detalha as dificuldades enfrentadas pelo setor e cobra maior celeridade do governo na recomposição das verbas para pesquisas e na definição de postos-chave na administração federal. “A Finep passou quase cem dias nas mãos de um general nomeado por Bolsonaro, que recentemente concedeu um empréstimo de 175,7 milhões de reais à Taurus, uma fabricante de armamentos, que será beneficiada por juros irrisórios e não produz uma tecnologia que esteja a serviço da vida ou esteja alinhada com os valores que o governo Lula diz defender”, lamenta o ex-ministro. A íntegra, em vídeo, está disponível no canal de ­CartaCapital no YouTube.

Ainda nas mãos de um general nomeado por Bolsonaro, a Finep liberou um empréstimo de 175,7 milhões de reais à fabricante de armas Taurus, denuncia o ex-ministro de Dilma Rousseff

CartaCapital: O Ministério da Educação acaba de suspender o cronograma de implementação do Novo Ensino Médio, concebido na gestão de Michel Temer. O senhor acredita que Lula vai, de fato, revogar completamente a reforma, como defendem muitos educadores especialistas?

Renato Janine Ribeiro: A reforma foi aprovada por meio de Medida Provisória, um instrumento absolutamente inadequado para tratar de um assunto dessa relevância. O Plano Nacional de Educação aprovado em 2014, para citar um exemplo, veio de quatro anos de discussão no Congresso, sem mencionar o intenso debate no âmbito da sociedade civil. Só que essa Medida Provisória acabou convertida em lei e, portanto, só pode ser substituída por outra lei. Não tenho a menor ilusão de que Lula vai gastar cartucho em negociações com Arthur Lira para revogar essa reforma completamente. Já está muito difícil a convivência com Lira, a defender interesses contrários aos do governo, como a manutenção das altas taxas de juro praticadas pelo Banco Central, que compromete o crescimento econômico e é um tema crucial na agenda de desenvolvimento. Certamente, Lula está escolhendo a dedo as brigas que pretende comprar, pois sua base parlamentar é frágil.

CC: É possível remendar a reforma?

RJR: Este é o ponto, eu acredito que sim. Muito do que está no texto pode ser revisto de forma infralegal, por meio de decretos, normas e portarias. A reforma é algo que foi assumido pelas secretarias esta­duais de Educação, hoje a atender 7 milhões dos 8 milhões de alunos do Ensino Médio. É possível negociar diretamente com os estados adaptações no modelo, ouvindo os principais interessados nesse debate, os professores e alunos, que não foram consultados à época em que a reforma foi apresentada.

A ministra Luciana Santos promete recompor o orçamento do FNDCT, mas ainda não encaminhou o projeto – Imagem: Valter Campanato/ABR

CC: Uma das críticas à reforma de Temer é que não houve o aporte de recursos necessários para que as escolas públicas se adaptassem e criassem esses novos itinerários formativos previstos no texto, o que aprofundaria as desigualdades em relação ao ensino privado, já acostumado a oferecer disciplinas optativas aos alunos. O senhor concorda com essa avaliação?

RJR: Concordo que não houve investimentos para a adaptação das escolas, mas não sei dizer se a reforma, de fato, aprofundou as desigualdades. Vejo muitas instituições particulares priorizando disciplinas como empreendedorismo, que não traz um conhecimento tão relevante assim para a vida das pessoas, mas que deixam de lado temas estratégicos, como a geração de energia limpa e a substituição dos combustíveis fósseis. Esse é o tema do momento no mundo inteiro. Outra frente negligenciada é o combate às desigualdades. Com 16 anos, nossos jovens estão aptos a votar, mas poucos realmente sabem o que é direita ou esquerda, a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, como funciona o Legislativo. Estou me referindo à formação cidadã, e não a uma pregação ideológica. Mais um exemplo: contratos. Com 18 anos, o cidadão pode se casar, comprar uma casa, constituir uma empresa, mas quem realmente sabe o que está fazendo quando coloca a sua assinatura em um documento ­contratual? Agora, um ponto é indiscutível: para oferecer novos itinerários formativos será preciso dividir as salas, contratar mais professores e melhorar a remuneração deles. Quem está fazendo isso? Além disso, há outras discussões de fundo. De fato, é preciso arejar um pouco o currículo do Ensino Médio, mas por que priorizar os investimentos nessa etapa e não na alfabetização na idade certa?

CC: O orçamento para pesquisas científicas despencou 60% entre 2014 e 2022, de acordo com o Observatório do Conhecimento. No fim do ano passado, os pagamentos de bolsas de mestrado e doutorado só foram garantidos com a aprovação da Emenda da Transição. Diante desse cenário de penúria herdado, como o senhor avalia as primeiras medidas anunciadas pelo governo Lula para a área de Ciência, Tecnologia e Inovação?

RJR: A maior parte dos acadêmicos e pesquisadores que conheço está com uma sensação de alívio, eu inclusive. Não posso dizer que estou alegre, exultante, porque realmente algumas medidas ficaram aquém do necessário. Reivindicamos a correção do valor das bolsas de acordo com a variação da inflação desde o último reajuste, que ocorreu há quase dez anos. Vieram 40%, está abaixo. Apesar da promessa de haver reajustes anuais atrelados à inflação, não gostaríamos que se consolidasse um patamar inferior ao que havia no primeiro governo Dilma ­Rousseff. Existe ainda, no campo das promessas, uma proposta de recuperação do valor do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que deveria girar em torno de 8 bilhões de reais hoje, mas foi sendo progressivamente cortado e limitado pelas gestões anteriores, de Temer e Bolsonaro.

“As palavras são muito claras, os compromissos são de honra. Agora, aguardamos os atos do governo”

CC: Qual é o valor disponível hoje nesse fundo?

RJR: Cerca de metade. A ministra Luciana Santos prometeu encaminhar um projeto de lei para recompor os recursos do FNDCT, mas, se demorar demais, não poderemos usufruir desses recursos em 2023. Será mais um ano perdido. Então, eu diria que uma de nossas maiores preocupações é com a rapidez da implementação das medidas anunciadas pelo governo. Veja: a nova diretoria da Financiadora de Estudos e Projetos, que detém o maior orçamento da Ciência e Tecnologia, só deve ser formalizada em abril. Resultado: a Finep passou quase cem dias nas mãos de um general nomeado por Bolsonaro, que recentemente concedeu um empréstimo de 175,7 milhões de reais à Taurus, uma fabricante de armamentos, que será beneficiada por juros irrisórios e não produz uma tecnologia que esteja a serviço da vida ou esteja alinhada com os valores que o governo Lula diz defender. Qual é o sentido de aplicar recursos da Ciência e Tecnologia em uma empresa que fabrica armamentos? Estamos particularmente chocados com isso, tanto que a SBPC e outras entidades científicas lançaram manifestos de repúdio à iniciativa.

CC: Até pouco tempo, podíamos dizer que o orçamento da Finep era fictício, pois a maior parte dos recursos acabava contingenciada pela área econômica do governo, impedindo a efetiva aplicação dos recursos. O governo deu alguma sinalização sobre o fim dessa prática?

RJR: Recebemos, sim, a garantia de que isso não ocorreria mais. A ministra Luciana Santos falou sobre isso em seu discurso de posse. As palavras são muito claras, os compromissos são de honra. Agora, aguardamos os atos. O contingenciamento de recursos é um problema sério. Vamos imaginar que o governo se comprometeu a financiar um congresso científico em maio, mas os recursos estavam bloqueados na ocasião e o evento aconteceu sem os aportes públicos ou acabou cancelado. De nada adianta haver a liberação dos recursos em novembro, o prejuízo está dado. Então as sobras vão para os ministérios com boa tradição de desempenho, capazes de fazer uma execução rápida, a exemplo da pasta da Educação, que tem ­expertise na área. Mas essa não é a realidade de todos os ministérios, e aquele recurso deveria ter sido destinado à ciência, e não ao pagamento de outra despesa qualquer.

“As universidades públicas não são apenas fábricas de diplomas, produzem ciência de qualidade” – Imagem: Ribamar Neto/UFC

CC: Como está a situação das universidades federais? Em dado momento do governo Bolsonaro, a UFRJ e outras instituições de ensino postergaram o retorno das aulas presenciais não por cautela em relação à pandemia, e sim porque não tinham recursos para cobrir despesas básicas, como água, luz, serviços de vigilância e limpeza. Imagino o prejuízo às pesquisas.

RJR: O prejuízo é enorme. Uma parcela expressiva da sociedade acha que a universidade só serve para distribuir diplomas, não faz ciência. Na verdade, a maior parte das pesquisas desenvolvidas no Brasil é feita por universidades públicas, sobretudo pelas estaduais paulistas e fluminenses e pelas instituições federais de ensino. Evidentemente, se faltam recursos para o funcionamento básico delas, imagine para as pesquisas, que necessitam de um aporte muito maior. Os salários não costumam atrasar porque são despesas não discricionárias, o governo não pode deixar de pagar sob risco de violar a legislação. Mas as bolsas de estudos são consideradas despesas discricionárias, um enorme contingente de pesquisadores acabou prejudicado pelos atrasos. Você mesmo mencionou o problema em uma de suas perguntas. No fim do ano passado, as bolsas oferecidas pela Capes e pelo CNPQ só foram pagas graças à aprovação da Emenda da Transição. Se Lula não tivesse se mobilizado para assegurar mais recursos, milhares de pesquisadores não teriam como pagar suas despesas pessoais no fim do ano, às vésperas do Natal. Na verdade, Lula poupou Bolsonaro de um enorme constrangimento, e também salvou o Brasil no tocar do bumbo.

CC: Como evitar que a ciência permaneça sempre de pires na mão?

RJR: Para recompor os orçamentos de áreas estratégicas do governo, é preciso aumentar a arrecadação tributária, seja pelo aumento da cobrança de impostos sobre as rendas mais altas, pela tributação de lucros e dividendos ou pela taxação de iates e jatinhos. Há uma série de mecanismos de justiça fiscal em discussão na reforma tributária. Mas também é preciso melhorar a qualidade dos gastos públicos. Maurício Tolmasquim, que é um dos maiores entendedores brasileiros de energia e foi braço direito de Dilma Rousseff quando ela era ministra da Casa Civil de Lula, uma vez me apresentou um projeto muito interessante, de geração de energia solar e eólica nos campi universitários. A iniciativa privada se encarregaria do investimento inicial e o governo iria pagando ao longo dos anos com o valor que economizaria de gastos com concessionárias de energia elétrica. Em dado momento, os equipamentos estariam quitados e as universidades teriam autonomia na geração da energia que consomem. Quando chefiei a Capes, propus a substituição das operadoras de telefonia pelos aplicativos que permitiam fazer ligações pela internet. Enfim, há uma série de iniciativas que podem reduzir os gastos públicos ou melhorar os seus resultados. •

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Boa intenção, passos lentos’

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