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Abatido em seu Quintal

Bolsonaro foi derrotado pela defecção de eleitores do Sudeste, sobretudo em São Paulo, o ‘QG do bolsonarismo’, observa Lavareda

A maior parte dos bolsonaristas é da “Classe C”, que prosperou com Lula, mas perdeu poder de compra com Dilma Rousseff - Imagem: André Borges/AFP
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A vitória de Lula despertou nova onda de ofensas xenófobas contra nordestinos, por parte de eleitores bolsonaristas inconformados com o resultado das urnas. A mesma turma que aplaudiu as criminosas operações da Polícia Rodoviária Federal no dia da votação, com o nítido objetivo de impedir lulistas de chegaram às sessões eleitorais, voltou a responsabilizar o povo do Nordeste pela derrota do capitão.

De fato, os eleitores da região votaram maciçamente no líder petista, assegurando ao ex-presidente 69,3% dos votos válidos. A premissa é, porém, enganosa, sustenta o cientista político Antonio Lavareda, professor colaborador da Universidade Federal de Pernambuco, diretor do Ipespe e presidente de honra da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais.

“O que explica o insucesso de um candidato à reeleição é a defecção, é a perda de eleitores”, pondera. “Bolsonaro perdeu 6,1 pontos porcentuais na Região Sul e 11,1 no Sudeste. Na verdade, no Nordeste, ele teve até um diminuto acréscimo, de 0,4 ponto. Ou seja, o capitão foi derrotado em seu próprio terreno.” Na entrevista a seguir, Lavareda decifra o perfil do eleitor do capitão e analisa o futuro do bolsonarismo após o triunfo de Lula.

CartaCapital: Qual é o real tamanho do bolsonarismo hoje?

Antonio Lavareda: Hoje, cerca de um quinto da sociedade é bolsonarista, apoia o capitão em qualquer circunstância. Nas urnas, ele obteve 33% dos votos totais do eleitorado, mas só chegou a esse patamar com a adesão de eleitores lavajatistas, que pretendiam votar em Sergio Moro. Essa turma o ajudou a se eleger em 2018, mas depois ficou insatisfeita com a forma como o governo lidou com a pandemia e os escândalos de corrupção. Retornou agora, na fase final da campanha, devido ao arraigado sentimento antipetista.

“Se o capitão tivesse repetido o mesmo desempenho no estado que teve em 2018, ele estaria reeleito”

CC: E qual é o perfil desse eleitor mais convicto, o “bolsonarista raiz”?

AL: Em torno de 47% desses eleitores são do Sudeste. Desse montante, metade vive no estado de São Paulo – e, aqui, estou me referindo exclusivamente aos convictos, os apoiadores mais fiéis. São Paulo é, portanto, a principal base do bolsonarismo no Brasil. Outros 20% moram na Região Sul do País, 17% estão no Nordeste, 9% vivem no Centro-Oeste e 8% são do Norte. Eles são, sobretudo, homens. No segmento masculino, Bolsonaro venceu Lula por 58% a 42%. Perdeu entre as mulheres, pelo placar de 40% a 60%. Quase metade dos bolsonaristas (46%) possui renda média, entre dois e cinco salários mínimos. Cerca de 35% de seus apoiadores são pobres e em torno de 20% possuem renda mais alta, superior a cinco salários. E a maior parte dos bolsonaristas é de evangélicos, os quais correspondem a 45% do total.

CC: Esse eleitor com renda entre dois e cinco salários não pertence à chamada “Classe C”, que prosperou no governo Lula?

AL: Sim, é verdade. Muitos ascenderam socialmente no governo Lula, sentiram o sabor do consumo, mas depois tiveram uma queda no poder de compra com a crise no segundo mandato de Dilma Rousseff. Possuem um sentimento de privação, uma espécie de ressentimento. Tenho, porém, outra tese que ajuda a explicar o fenômeno. Provavelmente, esses eleitores de renda média são evangélicos e militares de baixa patente, não somente das Forças Armadas, mas também das polícias e guardas. Podemos acrescentar nesse universo todos os caçadores, atiradores e colecionadores de armas, conhecidos pela sigla CAC, que aderiram ao armamentismo.

CC: O senhor disse anteriormente que São Paulo é a base do bolsonarismo. O que explica esse fenômeno?

AL: Sim, é verdade. Em números absolutos, o estado virou o QG do bolsonarismo. Se o capitão tivesse repetido o mesmo desempenho em São Paulo que teve em 2018, estaria reeleito. Só que o presidente perdeu muitos votos na Região Sudeste, sobretudo entre os eleitores paulistas.

“A população é majoritariamente conservadora”, diz o cientista político – Imagem: Redes sociais

CC: Então a culpa pela derrota dele não é dos nordestinos, como os apoiadores do capitão falam nas redes sociais?

AL: Não, longe disso. O que explica o insucesso de um candidato à reeleição é a defecção, é a perda de eleitores. Se compararmos os resultados do segundo turno das eleições presidenciais de 2018 e 2022, veremos que Bolsonaro perdeu 6,1 pontos porcentuais na Região Sul e 11,1 no Sudeste. Na verdade, no Nordeste, ele teve até um diminuto acréscimo, de 0,4 ponto (gráfico à pág. 27). Ou seja, o capitão foi derrotado em seu próprio terreno.

CC: O que explica essa defecção?

L: Talvez, ele tenha sido vitimado pela maldição de João Doria. Quando Bolsonaro entrou em guerra com o governador, ele destruiu o tucano, mas também saiu ferido. O presidente entrou em confronto com instituições valorizadas pelos paulistas, como o Instituto Butantan, a Universidade de São Paulo, o sistema de saúde… Quando analisamos os dados por estado, vemos que ele encolheu muito no Sudeste. Perdeu 8 pontos em Minas Gerais, 11 pontos no Rio de Janeiro e 13 pontos em São Paulo. Bastaria o capitão repetir o desempenho de 2018 nesse último estado para ser reeleito.

CC: Então a culpa é dos paulistas?

AL: Também (risos). E este é o único estado no qual podemos fazer essa afirmação, devido ao fato de ser o maior colégio eleitoral do País, com 34,2 milhões de votantes. Se tivesse repetido o placar da eleição anterior, contra o petista Fernando Haddad, Bolsonaro seria reeleito com 2 pontos de diferença, uma distância mais larga que a obtida por Lula nesta disputa.

CC: O que o Lula deveria fazer, então, para minar o bolsonarismo?

AL: Precisa avançar justamente nesses segmentos mencionados anteriormente. Precisará se aproximar de forma mais expressiva dos evangélicos, do segmento masculino e da população com renda intermediária, de dois a cinco salários mínimos. Na verdade, quando Lula se compromete na campanha a zerar o Imposto de Renda de quem ganha até 5 mil ­reais, ele atinge concretamente boa parte desse contingente. Do ponto de vista político, o governo petista também tem o desafio de cooptar essa direita não bolsonarista. Isso é importante, em um primeiro momento, para isolar o bolsonarismo e, depois, para conquistar o apoio desses eleitores.

CC: Não é uma tarefa complicada, a julgar pelo perfil do novo Congresso?

AL: Muitos lamentam o fato de a população ter eleito uma bancada superconservadora. É verdade, mas isso era previsível. As eleições municipais funcionam como uma espécie de barômetro ideológico para as disputas no Congresso. Essa é a tese que sustento em um estudo realizado em parceria com Vinícius Silva, professor da Universidade Federal de São Carlos. Publicamos os resultados em um dos capítulos do livro Eleições Municipais na Pandemia (Editora FGV), que organizei na companhia da professora Helcimara Telles. Em 2020, os partidos de direita alcançaram 59% dos votos para vereadores em todos os municípios do País. As legendas de esquerda tiveram 26% e as siglas de centro, em torno de 15%. Agora, a direita amealhou 62% dos votos para a Câmara dos Deputados, enquanto a esquerda conquistou 27% e os partidos de centro tiveram 10%. Ao analisar a votação estado a estado, a correlação entre o voto para vereador e para deputado federal foi de 0,92. Ou seja, a sociedade é majoritariamente conservadora. É aqui que o bolsonarismo bebe, essa é a fonte deles. Mas nem todos os conservadores são bolsonaristas, reacionários e extremistas.

“No Nordeste, Bolsonaro teve até um diminuto acréscimo de votos”

CC: Por que, então, não abraçaram outro candidato do campo?

AL: O problema é que, nestas eleições, as forças da direita não bolsonarista tiveram enorme dificuldade para viabilizar uma candidatura. A política, no Brasil, é extremamente personalista. As legendas desse campo não possuem um nome de expressão nacional nem possuem estrutura partidária robusta o suficiente para emplacar um candidato razoavelmente desconhecido. Como Obama, um senador do estado de Illinois, conseguiu se eleger presidente nos EUA? Pela força do Partido Democrata. Aqui, não. As siglas são hidropônicas, desenraizadas. Dependem de quadros, de pessoas conhecidas.

CC: Isso mantém Bolsonaro como um nome forte para 2026, não?

AL: Sim, é provável que, se você fizer uma pesquisa em meados de 2023, o capitão apareça em primeiro ou segundo lugar. Para superar isso, a direita não bolsonarista precisa retomar o comando desse campo, mas a dificuldade é enorme, diante da inexistência de partidos efetivos. Temos legendas fortes no Congresso, mas elas são quase inexistentes no âmbito social.

CC: O que não consigo entender é como um eleitor de direita, mas não extremista nem autoritário, possa confiar o voto em Bolsonaro.

AL: Isso é fruto da rejeição ao PT. O Bolsonaro fez uma coisa inteligente, voltou a ideologizar a política no Brasil de forma expressa. Antes dele, você não via muitos candidatos se apresentando ao eleitorado como representantes da direita, dizendo que as teses defendidas pela esquerda estavam erradas. Ao analisar o perfil do eleitorado do capitão, vemos um dado interessante: 80% deles se definem como pessoas de direita. Isso é inédito no Brasil. Normalmente, a maioria se definiria como de centro, outro tanto não saberia responder. Foi o Bolsonaro quem fez retornar ao léxico da política os posicionamentos ideológicos expressos. A grande dúvida, hoje, é por quanto tempo o bolsonarismo continuará a exercer a hegemonia nesse campo.

Fonte: TSE

CC: Fora do poder, Bolsonaro conseguirá manter esse capital?

AL:Ele não tem capacidade de articulação política, como os muitos anos no Congresso o demonstraram. Bolsonaro nunca se destacou como articulador e, quando se candidatou a cargos na mesa diretora da Câmara, amealhou meia dúzia de votos, incluindo o dele. Isso significa que, no embate cotidiano da política, ele não terá proeminência. Além disso, os governadores em segundo mandato, inclusive seus aliados no segundo turno, como Romeu Zema, Cláudio Castro e Ronaldo Caiado, vão estar em evidência e podem ter ambição de disputar a Presidência da República. Por outro lado, é provável que Bolsonaro vai refluir para o discurso antissistema, que não conseguia mais manter enquanto estava no poder. Ou seja, voltará a fazer o jogo do populismo de extrema-direita, que, em situações de dificuldade enfrentadas pelo País, tem o seu apelo. E ele conta com uma máquina de comunicação digital poderosa para manter acesa a chama do bolsonarismo.

CC: Tudo depende, portanto, de como a economia estará em 2026.

AL: Sim, vai depender do desempenho da economia, de como vão avançar as investigações dos escândalos envolvendo sua família, dos malfeitos do seu governo. Uma série de fatores pode influenciar. De toda forma, se Lula não der uma resposta satisfatória aos problemas vivenciados pela população, ele será um candidato fortíssimo, como provavelmente será Trump, caso Biden siga em dificuldade para equacionar a crise nos EUA. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Abatido em seu Quintal”

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