Educação

Sem acordo, greve de professores de universidade no Piauí se aproxima de 60 dias; entenda a disputa

A categoria reivindica a reposição de perdas inflacionárias, mas não chega a um acerto com a gestão de Rafael Fonteles (PT)

Créditos: Reprodução Adcesp.
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Os docentes da Universidade Estadual do Piauí, a Uespi, estão prestes a completar 60 dias em greve. Iniciada em 2 de janeiro, a paralisação segue sem data para terminar, segundo a categoria, devido à falta de acordo com o governo do estado, comandado por Rafael Fonteles (PT). A greve atinge os 13 campi da universidade, três na capital e 10 no interior. O movimento tem adesão recorde na instituição.

No centro da disputa está uma reivindicação salarial que passa pela reposição de perdas inflacionárias acumuladas há 10 anos.

Um estudo realizado em outubro de 2023 pelo economista Gleudiano Sila Rodrigues, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí, aponta que o acumulado das perdas salariais entre maio de 2013 e setembro de 2022 chega a 68,34%.

Créditos: Reprodução – tabela retirada de estudo

“Constata-se que no mesmo período não houve reajustes salariais capazes de repor a perda real do poder de compra dos docentes causada pela inflação”, destaca o economista. Ele afirma que a situação contraria a previsão constitucional sobre a remuneração de servidores públicos.

Segundo o artigo 37 da Constituição, à remuneração dos servidores públicos será “assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”. No caso específico, sustenta o economista, “não se garantiu o direito constitucional à revisão geral anual capaz de repor as perdas inflacionárias para os anos de 2014, 2015 e 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022”.

Greve e reivindicações

O estudo tem sido utilizado para embasar a campanha salarial liderada pela Associação de Docentes da Uespi, a Adcesp.

Em conversa com a reportagem de CartaCapital, a coordenadora-geral da Adcesp, Lucineide Barros Medeiros, declarou que a entidade chegou a encaminhar uma proposta para dirimir as perdas salariais acumuladas, mas que não houve resposta por parte do governo.

“Avançamos em uma proposta objetiva, que não é apenas da Adcesp, mas do conjunto das categorias de servidores e servidoras do estado do Piauí, que seria do pagamento de 22% dos valores devidos em 2024. A nossa proposta seria de 11% em janeiro e 11% em maio. Mas, infelizmente, o governo não se manifestou.”

Também pesa negativamente, na avaliação da categoria, um projeto de lei complementar apresentado pelo governador à Assembleia Legislativa do Piauí, no ano passado, a propor mudanças na carga horária dos professores da universidade. Segundo os docentes, a matéria, que aguarda um parecer da Comissão de Constituição e Justiça, impõe prejuízos a pesquisa e extensão.

O governador do Piauí, Rafael Fonteles (PT). Créditos: Reprodução PT

Atualmente, a carga de 40 horas semanais prevê tempo mínimo de 8 horas na sala de aula, se o tempo restante for coberto com trabalhos relacionados a pesquisa e extensão, para as quais restariam 32 horas. Caso o projeto seja aprovado, a carga horária mínima nas salas de aula será dobrada para 16 horas.

Os docentes contestam a proposta sob a alegação de que ela não contabiliza o tempo necessário para atividades de pesquisa e extensão, que seria reduzido para 24 horas.

De acordo com a Adcesp, a medida atinge decisivamente o desenvolvimento da pós-graduação, “especialmente em um momento em que a Uespi amplia seus cursos de mestrado e caminha para a oferta de doutorado”.

Para Lucineide Barros, a proposta do Executivo interfere na independência da universidade. “Pela Constituição Federal, nós, das universidades, temos autonomia didática, científica, pedagógica, administrativa e financeira. Isso quer dizer que o governador não pode se sentir no direito de tomar a iniciativa de alterar, dentre outras coisas, o nosso plano de cargos, carreiras e salários por iniciativa própria, sem nenhuma discussão com a universidade.”

Embate jurídico

Sem um acordo entre as partes, arrasta-se uma disputa jurídica em torno da paralisação.

Em dezembro do ano passado, quando a greve já havia sido acertada pela Adcesp, o governo e a reitoria da universidade levaram o caso ao Tribunal de Justiça do estado, alegando haver ilegalidade.

À época, a gestão estadual argumentou que as negociações com a categoria estavam em “pleno desenvolvimento” e que o projeto de lei complementar não seria encaminhado à Assembleia Legislativa.

Sobre as perdas orçamentárias, avaliou que, “por se tratar de pleito essencialmente remuneratório”, a equipe técnica econômica do governo teria de promover uma “detida análise do impacto orçamentário nas contas públicas, assim como providenciar a adequação às demais despesas orçamentárias”.

O pedido do governo foi inicialmente acolhido pela Justiça. O desembargador José James Gomes Pereira concedeu, em 27 de dezembro, uma liminar a declarar a ilegalidade do movimento grevista. Ele reconheceu o direito constitucional à greve, mas frisou haver limitações para evitar prejuízo à população.

A decisão também previa o imediato retorno aos postos de trabalho, sob pena de desconto na folha de pagamento do total de dias paralisados e de aplicação de multa à Adcesp no valor de 10 mil reais por dia.

Em janeiro deste ano, o Tribunal de Justiça acolheu parcialmente um recurso da Procuradoria-Geral do Estado, concedendo uma liminar a proteger o direito grevista. O desembargador Agrimar Rodrigues de Araújo, relator do caso, destacou que “ainda que a educação estadual superior equipare-se a serviço essencial, tal entendimento não pode ser utilizado como subterfúgio para frustrar o exercício do direito constitucional de greve”.

O magistrado também reverteu o retorno imediato de todos os profissionais aos postos de trabalho e determinou que 70% dos grevistas se colocassem à disposição.

Em 23 de fevereiro, houve uma audiência de conciliação convocada pelo Tribunal de Justiça e mediada pelo desembargador Agrimar Rodrigues. O encontro, no entanto, não resultou em um acordo.

O governo do estado apresentou uma proposta linear de reajuste de 5,35% em 2024, índice que se manteria em 2025 e em 2026. A proposta já havia sido rechaçada pela categoria.

“É um momento bastante delicado”, resume Lucineide Barros. “Infelizmente, o governo confirmou sua intransigência, não trouxe uma proposta ao nível do que nós esperávamos e continua insistindo nos 5,35%. Mas tivemos uma boa mediação do desembargador Rodrigues e, com isso, estamos convocando a nossa categoria a se manter mobilizada.”

A audiência foi suspensa e deve ser retomada em 4 de março. Até lá, deve ocorrer uma nova tentativa de negociação com a equipe do governo.

Corte nos salários

Ainda de acordo com a Adcesp, os salários de 63 professores da universidade foram parcialmente cortados pelo governo, uma ação que a entidade define como “repressão aos grevistas”. Os descontos também afetaram docentes afastados para realizar cursos de pós-graduação.

É o caso de Daiane Rufino Leal, que trabalha na universidade há quase 12 anos como professora do curso de Jornalismo, mas está afastada desde 4 de maio de 2023 para cursar doutorado em História pela Universidade Federal do Piauí. O afastamento é válido até 4 de maio deste ano, segundo uma portaria assinada pela universidade à qual a reportagem teve acesso.

Apesar disso, o contracheque da servidora referente ao mês de janeiro, consultado por CartaCapital, foi emitido com uma linha de “desconto por faltas”, a somar 2.990,28 reais.

“É uma ação repressora do estado, além de uma perseguição política institucional praticada pela própria universidade”, critica a professora, que chegou a encaminhar um questionamento sobre o desconto à Secretaria de Administração e Gestão de Pessoas. O desconto foi, então, entendido como “indevido” e há previsão de restituição na folha de pagamento de fevereiro.

“Ainda assim, é muito frustrante ter uma atitude destas de um governo que se diz de esquerda.”

Créditos: Reprodução Adcesp

O Tribunal de Justiça do Piauí voltou a se manifestar sobre o caso ao ressaltar haver ilegalidade nos descontos em contracheques de professores e exigir a devolução dos valores.

Em despacho de 16 de fevereiro, o desembargador Agrimar Rodrigues de Araújo ainda impôs multa diária de 5 mil reais, até o limite de 100 mil reais, em caso de descumprimento da ordem.

Apesar da decisão, o governo voltou descontar contracheques de professores referentes a fevereiro. No caso da professora Daiane Rufino, embora tenha ocorrido a restituição dos valores descontados em janeiro, houve um novo corte, agora de quase 5 mil reais, segundo o documento ao qual a reportagem teve acesso.

CartaCapital ainda identificou o caso de uma professora que não está afastada e sofreu um desconto de mais de 7 mil reais no contracheque de fevereiro. A docente também não foi restituída pelos mais de 4,5 mil reais descontados em janeiro.

“Essa situação é revoltante. Você se sente desrespeitado não apenas pela retirada de um direito no aspecto financeiro, que é o salário, mas também na sua saúde mental, na dignidade enquanto trabalhador”, disse a professora, que leciona na Uespi há 11 anos. Ela preferiu não se identificar.

O que diz o governo

A reportagem enviou questionamentos à Universidade Estadual do Piauí sobre a greve, mas não obteve respostas.

Já o governo do Piauí informou, em nota, ter proposto um reajuste salarial para os servidores de 5,35% por ano, até 2026, totalizando aproximadamente 17%. Afirmou que a proposta foi apresentada durante uma reunião da Mesa Estadual de Negociação Permanente com a presença de secretários estaduais e representantes de sindicatos de servidores públicos.

“O reajuste apresentado está acima dos 4,62% registrados pela inflação. O aumento será concedido aos servidores públicos estaduais que estão na ativa, os inativos e aos servidores administrativos, técnicos e demais áreas”, acrescentou.

O governo sustenta que os descontos atingem a remuneração de servidores que não têm desempenhado seus deveres funcionais e que a medida observa um entendimento jurisprudencial vinculante do Supremo Tribunal Federal.

Os casos de descontos por eventuais faltas, licença, atestado ou férias, segundo a Secretaria de Estado da Administração, serão apurados e, em caso de erro, os valores serão devolvidos.

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