Educação

Salas cheias, sem limpeza e distanciamento: volta às escolas em SP preocupa educadores

O governo Doria determinou que, a partir de novembro, as escolas operem com suas capacidades máximas, sem necessidade de distanciamento

Créditos: Rovena Rosa / EBC Créditos: Rovena Rosa / EBC
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“A sensação é de ter percorrido uma maratona para não se contaminar, não levar o vírus para casa, não morrer e, agora, na reta final, colocar tudo a perder.” O desabafo é da professora Ana Lima, que dá aulas em uma escola estadual de Osasco, diante da volta às aulas presenciais anunciada pelo governo do Estado de São Paulo, em vigor desde a segunda-feira 18.

O governador João Doria (PSDB) e o secretário de Educação Rossieli Soares anunciaram a retomada obrigatória dos estudantes às aulas presenciais das redes municipal, estadual e particular. Apesar da decisão, 75% das escolas não têm como receber todos os estudantes e praticar o distanciamento social e, portanto, poderão continuar atuando em um modelo de revezamento até o final de outubro. Das 5.130 escolas da rede estadual, apenas 1.251 conseguem receber os alunos e garantir o distanciamento mínimo de um metro entre eles.

Mas o governo, aparentemente, ‘resolveu’ a questão: determinou que, a partir de 3 de novembro, deixará de valer a obrigatoriedade do distanciamento nas escolas.

 

Há exceções: ficam liberados de voltar às salas de aula jovens do grupo de risco, com mais de 12 anos, que não tenham completado seu ciclo vacinal; gestantes e puérperas; crianças menores de 12 anos pertencentes ao grupo de risco para Covid-19 para as quais não há vacinada aprovada no País; e estudantes com condição de saúde de maior fragilidade à Covid-19, mesmo com o ciclo vacinal completo, comprovada com prescrição médica para permanecer em atividades remotas.

Na escola Estadual Professor José Liberatti, no centro de Osasco, onde Ana Lima leciona, isso representará a volta dos 1.500 estudantes matriculados, cerca de 600 entre os turnos da manhã e tarde e 300 no noturno. Também significa que as salas voltarão a operar com 45 estudantes, em média.

Para a educadora, a decisão é problemática. Segundo ela, não há profissionais de limpeza suficientes para garantir a higiene dos espaços. “São dois profissionais por turno para dar conta de 17 salas de aula, fora demais espaços compartilhados como refeitório, pátio”, conta. Também faltam inspetores para apoiar o cumprimento das demais regras como uso de máscaras nos ambientes escolares. Segundo a educadora, antes da decisão, a escola vinha cumprindo uma redução das horas aulas, o que garantia mais tempo aos profissionais para fazerem a limpeza dos espaços.

Profissionais de outras escolas relataram problemas parecidos a CartaCapital.

A professora Nancy de Oliveira Galvão, que leciona na escola estadual José Cândido de Souza, na zona oeste da capital, teme a falta de estrutura na unidade para promover ventilação adequada no retorno dos estudantes. “As nossas janelas são basculantes, e não temos ventilação cruzada nas salas de aula”, conta a educadora. Sua escola atende estudantes do Ensino Fundamental I, que estão abaixo da idade de vacinação, permitida a partir dos 12 anos.

“Temos estudantes que não estarão vacinados, não é a totalidade como o governo apresenta”. Um dos motivos apresentados pelo governo para a volta às aulas é que 90% dos jovens de 12 a 17 anos tomaram a primeira dose da vacina, ainda que o ciclo de imunização só se complete com as duas doses.

Para o professor Silvio de Souza, que leciona na escola estadual Professor Salim Farah Maluf, em Itaquera, zona leste da capital, a volta obrigatória sem as devidas intervenções estruturais nas unidades e garantia de profissionais de apoio tem feito das unidades um lugar de angústia.

“A escola sempre foi um espaço lúdico, de alegria que, claro, vez ou outra tem algum problema. Mas o que era um espaço vivo, de atividades eventos, virou um espaço de angústia”, lamenta. “O que o governo está fazendo com esse retorno mal feito, mal planejado, é deixar equipes e estudantes em ambientes inadequados, e sem escolhas.”

Ainda segundo o professor Souza, os funcionários são alvos de forte pressão da gestão estadual, via secretaria Educação, para não relatarem os problemas das escolas. “Vivemos uma situação de lei da mordaça. Não são incomuns os casos em que profissionais sofrem assédio moral, são enquadrados em processos administrativos ou mesmo exonerados”.

Para os educadores, o retorno também não se justifica do ponto de vista pedagógico, tendo em vista que o ano letivo se encerra no dia 21 de dezembro. A reclamação é de que não foi feito um planejamento de como as atividades poderiam ser retomadas em contextos seguros.

“É como se fosse uma birra, eu vou abrir e pronto. A gente sabe que é uma estratégia eleitoreira, uma necessidade de dizer que está tudo bem, sem um respaldo científico”, emendou a professora Ana Lima em referência à campanha eleitoral de João Doria que concorre às prévias pelo PSDB. O secretário Rossieli Soares também tem participado de atos e anúncios pelo partido, o que tem gerado especulações sobre uma possível candidatura, o que ele nega, por ora.

Escolas municipais também enfrentam problemas

Na segunda-feira 18, a reportagem de CartaCapital teve acesso a uma foto de uma escola municipal cujo teto pingava goteiras. A unidade faz parte da diretoria regional de educação de São Miguel, zona leste da cidade, e atende um total de 475 estudantes. “A goteira ainda é o menos pior no assunto descaso. Estamos sem monitores para alunos com deficiência, por exemplo. E só conseguimos acolher todos os alunos em sala de aula sem distanciamento”, disse uma funcionária que preferiu não se identificar. “Para cumprir a norma sanitária, só com metade deles em sala.”

Escola municipal de São Paulo enfrenta goteiras em dia de chuva. Créditos: divulgação

A gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) também decidiu acabar com o distanciamento nas escolas e promover a retomada de todo o público das escolas a partir do dia 25 de outubro. A presença nas atividades presenciais, no entanto, será facultativa, ficando a critério dos pais ou responsáveis, que devem assinar um termo de responsabilidade para a retirada de atividades e participação nas aulas remotas.

Infectologista vê retomada com preocupação: ‘É jogar lenha na fogueira que está apagando’

O médico infectologista Marcos Boulos reconhece a melhora nos indicadores da pandemia no estado de São Paulo, devido ao avanço da vacinação, mas vê com preocupação a retomada total, sem distanciamento nas salas de aula.

“Estamos falando de tipos diferentes de escolas, algumas que conseguem manter os protocolos e outras que não conseguem até pelo tipo de assessoria que recebem”, pondera, ao reforçar que o ideal seria manter a retomada opcional até que fosse feito um planejamento adequado. “Todo mundo reconhece a necessidade do aprendizado, a importância de se estar na escola, mas precisamos de condições para isso.”

O MÉDICO INFECTOLOGISTA MARCOS BOULOS. FOTO: DIVULGAÇÃO/TV BRASIL

O especialista também não endossa o argumento de que 90% dos estudantes já tomaram a primeira dose da vacina como ideal para o retorno das atividades.

“Sabemos que uma dose protege muito pouco e teremos crianças abaixo de 12 anos que voltarão sem vacina. A despeito de que o vírus aparentemente tem menor gravidade em crianças, esse aumento de exposição pode levar ao surgimento de casos e alguns deles podem ser graves, ainda que menos do que nos adultos”, pondera. “Eu não correria o risco. É jogar lenha na fogueira que está apagando.”

Boulos também faz ponderação ao fato de o governo equiparar a educação a reabertura de comércios, bares e restaurantes. “Isso não é justificativa. A abertura de bares e restaurantes foi catastrófica lá atrás, fomos contra e isso que desgastou a nossa relação”, pontuou o infectologista fazendo referência à dissolução do Centro de Contingência Covid, do qual fazia parte, em agosto deste ano. Segundo o especialista, as decisões do governo vinham sendo tomadas à revelia do grupo. Hoje atuam apenas 7 profissionais, dos 21 de sua formação inicial.

Governo gastou só 20% de verba destinada a melhoria de escolas

Uma reportagem do G1 mostrou que o governo de São Paulo gastou apenas 20% do orçamento previsto para este ano na reforma e melhoria estrutural das escolas. Dos R$ 576,3 milhões que foram aprovados para melhorias físicas e manutenção de escolas em 2021, apenas R$ 114,1 milhões foram liquidados.

A verba faz parte do “Escola Mais Bonita”, programa anunciado em 2019 pela gestão João Doria (PSDB) com investimento de R$ 1,1 bilhão para reformas estruturais nas escolas ao longo de três anos (até 2021).

À reportagem, o governo afirmou que, apesar da baixa execução orçamentária do “Escola Mais Bonita”, os reparos nas unidades foram garantidos devido ao repasse direto de verbas para as escolas por meio do PDDE.

Para o doutor em Ciências pela USP e professor da Universidade Federal do ABC, Fernando Cássio, a justificativa não se sustenta. “É bem vindo que as escolas recebam recursos descentralizados para resolver questões do cotidiano, mas isso é uma coisa, e as reformas de médio e grande porte, outra. Você não vai reformar as fundações de uma escola, o telhado, com o PDDE, porque isso requer projeto, você não vai contratar um engenheiro, uma equipe de operários com a verba do programa”, esclarece.

“Quando você pega o valor total anunciado pelo governo e divide pelas mais de cinco mil escolas, você tem um valor entre 200, 300 mil por unidade, ao ano. Isso paga uma reforma estrutural em uma escola? Não”, critica. “Eles usam essa carta da autonomia para se desresponsabilizar das obras, para jogar toda a responsabilidade nas costas das diretorias.”

O que diz o governo de São Paulo

A reportagem conversou com o chefe de gabinete da secretaria de educação do estado de São Paulo, Henrique Pimentel, que defendeu o que chamou de ‘transição’ até a volta completa das atividades a partir de 3 de novembro. “Temos estudantes que têm apresentado baixo rendimento no ensino remoto, famílias que estão com dificuldades de organizar suas rotinas por conta do revezamento.”

Pimentel argumenta ainda que, é importante que a educação esteja no mesmo patamar de outros setores contemplados no Plano São Paulo. “Se a partir de novembro vamos ter a possibilidade de voltar com eventos presenciais, e setores como restaurantes, comércio, bares, parques, estarão quase em uma normalidade, não achamos que é justo com os estudantes e comunidades escolares que as escolas não voltem”, justifica. “Se a escola é prioridade, tem que andar na mesma linha dos outros setores da sociedade.”

Sobre o fim do distanciamento nas salas de aula, Pimentel pontuou que a taxa de vacinação entre professores e adolescentes é alta. “Dos profissionais da educação, 97% já estão com as duas doses da vacina. Já entre os estudantes de 12 a 17 anos, 90% já tomaram a primeira dose da vacina”, diz.

Sobre o afrouxamento das restrições de lotação das salas de aula, Pimentel aposta que o distanciamento entre os alunos acontecerá ‘dentro da normalidade’. “Uma sala de aula padrão, com 40 alunos, tem a possibilidade de distanciamento de 80 centímetros, algumas mais amplas até um pouco mais. Então não é uma mudança tão drástica, os alunos não ficarão sentados em dupla ou amontoados”, disse, ao também afirmar que práticas como limpeza dos ambientes e segmentação dos intervalos serão garantidas. “Outras medidas ainda estarão válidas como o uso de máscaras, a gente não vai abrir mão disso.”

Questionado sobre o número reduzido de profissionais de apoio nas escolas – como limpeza e inspetores – o chefe de gabinete afirmou que a secretaria de educação está em vias de lançar um novo modelo de contratação do serviço terceirizado e que o papel da pasta é acompanhar a execução dos contratos junto às diretorias de ensino, sendo responsabilidade da gestão escolar avaliar a execução das atividades na ponta. Pimentel também ressaltou o repasse de verbas pelo governo às escolas via Programa Dinheiro Direto na Escola Paulista (PDDE) de 1,2 bilhão para o período de 2021 e 2022.

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