Educação

Do Paraná a São Paulo: como Feder atua para ampliar seu modelo de gestão empresarial da Educação

Em nome de uma suposta melhoria em resultados, o secretário aposta em projetos questionáveis, como exclusão de matrículas e bônus em dinheiro; aos professores, sobra pressão e desgaste

Créditos: Marcelo S Camargo/ Governo do Estado de SP
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Os professores da rede pública do Paraná têm questionado a forma como o governo vem lidando com o uso as plataformas digitais nas escolas da rede – a maioria, 61,9%, acha que a gestão Ratinho Junior (PSD) erra em priorizar as plataformas digitais.

Parte dos docentes considera que há um excesso de cobrança pelo uso dessas ferramentas, mas poucos resultados educacionais. Quase 96% reconhecem que há uma cobrança por resultados e metas em relação às plataformas, ainda que de maneira parcial; 43% ainda relatam, mesmo que às vezes, situações de assédio moral e abuso de autoridade em relação ao uso.

As percepções são de uma pesquisa realizada pelo APP Sindicato, lançada em julho, que também consultou diretores das escolas. A maioria dos diretores (80%) disseram se sentir obrigados a usar as plataformas digitais, percepção comum a 74,2% dos professores.

O mal estar diz respeito a uma pletora de plataformas educacionais integradas à rede durante a gestão do secretário de educação, Renato Feder, que ficou no cargo de 2019 a 2022. Ele deixou o cargo quando recebeu convite do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) para ocupar o mesmo cargo. Atualmente, a secretaria de educação no Paraná é comandada por Roni Miranda Vieira, que trabalhou com Feder e foi ungido por ele ao cargo.

Na quarta-feira 30, professores e estudantes da rede, apoiados por representantes de sindicatos e da União dos Estudantes Secundaristas anunciaram uma ‘greve de aplicativos’ na rede, uma tentativa de tensionar o governo a considerar a flexibilização do uso das plataformas educacionais pela rede.

O secretário de educação do Paraná, Roni Miranda Vieira, que atuou na gestão Feder. Créditos: Governo do estado do Paraná

Para a presidenta do APP Sindicato, Walquíria Olegário Mazetto, a pesquisa evidencia um cansaço dos professores diante o uso das plataformas, mas pondera: “O destaque maior é que as pessoas não são contra ter tecnologia nas escolas, desde que esses instrumentos estejam alinhados ao planejamento do professor em sala de aula, e não a uma imposição de metas de uso pela secretaria da educação”, avalia.

Um professor da rede, que pediu para não ser identificado, registrou nas redes sociais como tem sido a sua experiência na escola em que atua.

“Trabalho em uma escola que tem 30 computadores para mais de 2 mil alunos e levo eles no laboratório, em média, uma vez por mês cada turma. Isso torna inviável seguir e cumprir qualquer cronograma que são passados para a gente”, escreveu.

“Mas a cobrança é como se tivéssemos acesso em todas as aulas com todos os alunos. Isso está nos adoecendo, pois toda semana ouvimos bronca em relação ao não cumprimento das inviáveis metas. Isso precisa acabar, senão não teremos mais professores num futuro próximo”, completou.

Em conversa reservada com a reportagem de CartaCapital, o educador acrescentou ainda que, muitas vezes, os conteúdos das plataformas não dialogam com o planejamento de sala de aula, mas que, ainda assim, chegam a responder a até 30% da nota dos estudantes.

É o caso da Quizziz, anunciada pela secretaria de educação em fevereiro deste ano, como uma plataforma para lições de casa. Os estudantes têm de responder duas questões por aula, ou seja, 10 ou 12 questões por dia, caso tenha cinco ou seis aulas diárias, respectivamente. As atividades fazem parte do processo avaliativo e correspondem a 30% da nota do trimestre.

O contrato com a mantenedora da plataforma foi assinado entre os dias 22 e 23 de dezembro de 2022, ao apagar das luzes de Feder no estado, ao custo de 6,3 milhões de reais. O contrato tem vigência de 24 meses e, portanto, segue válido até 2024. A empresa contratada é a Quizziz Inc., com sede na cidade de Wilmington, no condado de News Castle, nos Estados Unidos, e com endereço de negócios registrado na Califórnia.

A plataforma não é a única utilizada pela rede. Em seu site, a secretaria de educação cita um total de 24 plataformas e aplicativos disponíveis para a rede, algumas delas de bightechs como o Google. Na pesquisa do sindicato, as mais citadas em relação a acesso por diretores e professores foram: a Desafio Paraná (Quizizz), 24,3%; Redação Paraná, 17,8%; Matemática Paraná (Matific) 12,9%; Leia Paraná, 10,2%; Inglês Paraná, 8,8% e Matemática Paraná (Khan Academy), 6,5%.

Lista de plataformas e aplicativos da secretaria de educação do Paraná. Créditos: Reprodução

A reportagem levantou os custos dos contratos que a Secretaria de Educação mantém ativos este ano e que tem relação com o uso de plataformas digitais pela rede estadual de ensino. Foram contabilizados 17 contratos via Portal da Transparência com cifras que beiram os 130 milhões. Os serviços de acesso às plataformas educacionais são negociados na faixa de 10 a 14 milhões.

“O que a gente viu o ex-secretário Renato Feder fazer aqui foi comprar aplicativos e cursos de mercado, disponíveis na internet, e não necessariamente alinhados aos conteúdos ou à nossa rotina de sala de aula”, aponta Walquíria Mazetto.

“E como o ex-secretário passou a atribuir a esta lógica o sucesso da educação, ele precisa ter números, o que acaba por cacifar esses produtos no mercado educacional como exemplos de sucesso”, completa.

Feder é acusado de maquiar resultados do Ideb no estado

A gestão Feder é frequentemente elogiada, sobretudo pelo avanço no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) no estado. De fato, em 2022, o Paraná alcançou o primeiro lugar no Ideb do Ensino Médio, com nota 4,6. No Ideb 2019, divulgado em 2020, a nota paranaense foi de 4,4; em 2017, o estado tinha o índice de 3,7. Nos anos finais do ensino fundamental (do 6º ao 9º anos), o Paraná também evoluiu seu índice e foi a 5,2, ficando em quarto lugar.

A presidente do APP Sindicato pondera, porém, que os números foram alcançados às custas de estratégias questionáveis, e que interferem no resultado final do índice. [O Ideb é calculado a partir do cruzamento da taxa de aprovação com o desempenho escolar dos estudantes. Este, por sua vez, corresponde à nota média de português e matemática, padronizada numa escala de 0 a 10, por exames oficiais do Ministério da Educação, como a Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb), a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar, conhecida como Prova Brasil, e a Avaliação Nacional de Alfabetização].

“O Feder identificou as variáveis que resultam na nota do Ideb e passou a controlá-las”, afirmou Walquíria.

Uma das apostas de Feder, segundo a sindicalista, foi a de treinar os estudantes para realizarem avaliações nacionais a cada dois anos. A rede adotou, por exemplo, a Prova Paraná, uma espécie de simulado preparatório, que é aplicado a cada trimestre aos estudantes de ensino Fundamental e Médio, para aferir suas dificuldades e habilidades ao longo do ensino aprendizagem.

“Quando eles fazem a prova e se identifica que não houve um bom resultado, os professores precisam acabar se concentrando em trabalhar novamente as questões para que os estudantes possam adquirir conhecimento relacionado àquele conteúdo em específico”, relatou Walquiria. A presidente do sindicato ainda soma à estratégia uma alteração na matriz curricular da rede, realizada em 2020, que ampliou a oferta de aulas de Português e Matemática, em detrimento da carga horária das demais disciplinas.

“Hoje a rede oferta cinco aulas de Português e cinco de Matemática por semana. Onde o ensino é integral o número de aulas dessas disciplinas chegam a nove por semana. Com isso houve a redução de disciplinas como Educação Física, Geografia, História, Artes, Filosofia e Sociologia”, explicou a sindicalista. “É a negação completa de uma formação integral”, completou.

Outra estratégia foi a de controlar a presença dos estudantes nas escolas, a partir de metas que, se não cumpridas, podem custar os cargos dos diretores escolares. Em 2020, o governo do Paraná já tinha aprovado um projeto de lei que alterou os critérios de escolha e permanência dos profissionais na rede estadual. O texto já previa afastamento em caso de ‘insuficiência de desempenho da gestão administrativa-financeira, pedagógica ou democrática’. Em 2022, a regra ganhou ainda mais tração a partir de uma nova resolução assinada por Feder, em de 9 de novembro.

Os gestores escolares passaram a ter como atribuição garantir uma frequência mínima mensal dos estudantes às escolas de 85%. O não cumprimento da meta os torna passíveis de procedimentos de apuração instaurados pelo Núcleos Regionais de Educação e que podem levar à perda do cargo.

Foi o que aconteceu com os gestores do Colégio Estadual Professora Edimar Wright, do município Almirante Tamandaré, na região metropolitana do estado. A diretora Cleuza Milani Del Forno e o vice-diretor Andreo Bolwerk foram afastados da escola, em maio deste ano, depois que a secretaria de educação aferiu, no início de 2022, um índice de frequência dos estudantes de cerca de 76%, o que levou à abertura de um processo administrativo. Na época, a escola estava retornando ao atendimento presencial após o fechamento das unidades no contexto da pandemia. Também pesou contra os diretores o não cumprimento de uma meta relacionada à plataforma ‘Redação Paraná’. A normativa de Feder estabelece que no mínimo 85% dos estudantes com frequência concluam pelo menos uma redação por mês na plataforma com, no mínimo, 150 palavras.

“Só que, naquele momento, tínhamos 22 computadores disponíveis para 920 alunos do Ensino Médio”, contou à reportagem Andreo Bolwerk.

Manifestação de alunos em frente ao Colégio Estadual Professor Edimar Wright, em Almirante Tamandaré, que teve diretores afastados. Foto: APP Sindicato.

O afastamento dos diretores foi revertido em junho, depois de uma intensa mobilização da comunidade escolar e de lideranças políticas contra a decisão da secretaria da educação.

O caso da recondução dos diretores ao cargo no estado, no entanto, é uma exceção, como afirma o deputado Professor Lemos (PT), que denunciou os casos na Assembleia Legislativa do Paraná e os levou ao conhecimento do Ministério Público do Estado.

“Isso afetou todas as escolas, há vários diretores destituídos de seus cargos pela imposição de metas inatingíveis. O Feder colocou em prática a ‘pedagogia do vigiar e punir’ para fazer pressão sobre os diretores escolares e assim fraudar o Ideb no estado”, garante o parlamentar, que ainda critica o fato de os gestores afastados das escolas serem substituídos por nomes escolhidos pela secretaria da educação, sem a chancela das comunidades escolares. “São nomeados interventores que ficam ainda mais reféns das decisões do estado”.

Ainda de acordo com o parlamentar, a medida é combinada a outras estratégias adotadas pelo estado. “É o caso da redução de turmas no noturno, e na Educação de Jovens e Adultos, excluindo estudantes que poderiam puxar a nota do índice para baixo; a aprovação de alunos mesmo com dificuldades,  forçando as escolas à aprovação e à não contabilização de faltas em excesso. Por isso essa perseguição insana contra diretores e diretoras. Aos que não contribuíssem com a fraude do índice restava processo administrativo e exclusão da direção ”, afirmou.

Em SP, Feder replica ‘melhoria’ do Ideb, com metas e bonificação em dinheiro

Perseguir a melhoria do Ideb é a meta de Renato Feder também em São Paulo. As estratégias, contudo, são calibradas de um modo um pouco mais agressivo.

A mais recente delas envolve excluir as matrículas de estudantes que tenham mais de 15 faltas consecutivas, sem justificativa.

Segundo normativa assinada pelo secretário no dia 5 de julho, diante o cenário, as escolas deverão efetuar o lançamento da classificação ‘Não Comparecimento’ na plataforma da secretaria de educação. A medida, que antes era permitida apenas no início do ano letivo, fica autorizada o ano todo, segundo a normativa. Ainda de acordo com o texto, a conduta pode ser adotada a partir do 16º dia de ausência injustificada, desde que esgotados os procedimentos de busca ativa – a norma não detalha quais são os métodos e o tempo que eles devem durar.

A nova determinação de Feder e Tarcísio de Freitas virou alvo do Ministério Público do estado, que apura possível violação constitucional à oferta da educação pelo estado. A medida afeta 3,5 milhões de alunos inscritos nos ensinos fundamental, médio e EJA. Nestes casos, a inscrição do aluno é cancelada automaticamente e ele entra na fila de regulação e precisará buscar nova vaga na mesma ou em uma nova instituição.

Créditos: Fernando Nascimento/Governo do Estado de São Paulo

O secretário também lançou mão de uma nova estratégia para tentar garantir uma presença mínima dos estudantes nas escolas: bonificação em dinheiro aos servidores. A meta é que a rede trabalhe com percentuais de 85 a 90% de frequência dos alunos nas escolas. O bônus também levará em conta a participação dos estudantes no Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Dependendo dos resultados alcançados, os profissionais poderão ser contemplados com o bônus faixa ouro ou diamante, que representam um acréscimo de um ou dois salários extras no ano.

Ainda de acordo com a Seduc-SP, as metas são individuais e levam em consideração o IDEB atual da unidade, as condições estruturais (tamanho, se é parcial ou integral e os turnos de atendimento – diurno e noturno) e o perfil racial dos estudantes. Os novos critérios de bonificação devem ser adotados em 2024, levando em conta o ano letivo de 2023.

Para Fernando Cássio, doutor em Ciências pela USP e professor da UFABC, Feder mistura estratégias de reforço negativo e positivo, que podem produzir irregularidades na rede.

“Primeiro, a gente vê uma chantagem, uma ameaça às famílias e aos estudantes de  perderem as vagas nas escolas, num movimento claro de rasgar normas como as previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Por outro, a promessa de bônus em dinheiro, que podem levar escolas a forjarem dados das listas de chamadas, por exemplo. O secretário se aproveita do fato de professores receberem salários baixos, terem condições de trabalho e carreira muito aviltadas e anuncia uma estratégia que passa a ser prontamente desejada. Isso é particularmente perverso”, critica.

Para Cássio, é novamente uma investida para produzir ‘dados positivos’ tendo em vista a melhora do Ideb.

“Esse é o problema de fundo de a gente colocar as avaliações educacionais como fim da educação, não como um meio. Não está em jogo promover o pensamento crítico, o acesso ao conhecimento. O Feder está ali para fazer negócio e isso fica evidente com a estratégia de que as redes fiquem dependentes dessa plataformização, aliado a mecanismos de controle e indução de resultados”.

O que diz a secretaria de educação do Paraná

A reportagem de CartaCapital enviou questionamentos à Secretaria de Educação do Paraná sobre as críticas relativas à plataformização no estado.

Em nota, a pasta disse que disponibiliza, hoje, oito plataformas de aprendizagem usadas como metodologia coadjuvante ao processo de ensino, que tem como principal agente o docente.

A secretaria afirmou que ‘a adoção de recursos tecnológicos de aprendizado resultou em significativa contribuição com o aumento dos níveis do desempenho acadêmico dos estudantes da rede estadual de ensino’, e mencionou o aumento do Ideb no estado.

Ainda acrescentou que ‘resta-se comprovada a boa adesão por parte dos alunos conforme explicitam, em números, as atividades realizadas somente este ano’, citando os números de acessos em cinco plataformas da rede: Khan: 12.949.304, Matific: 6.234.997, Leia: 13.719.840, Redação: 2.907.417 e Inglês Paraná: 15.500.000.

Informou ainda que todas as escolas do Estado possuem conexão de internet com rede WiFi para alunos, professores e funcionários (sendo 80% por conexão via fibra ótica e 20% via satélite). Sobre os equipamentos tecnológicos, a pasta afirmou que distribuiu, no primeiro semestre de 2023, 50 mil desktops, 50 mil tablets e 18 kits de robótica às escolas, mas não informou a média de equipamentos por estudante.

O que diz a secretaria de educação de São Paulo

Também em nota encaminhada à reportagem, a Seduc-SP informou que a normativa assinada por Feder em julho ‘é uma iniciativa que complementa uma série de ações da pasta, iniciadas nos primeiros meses desta gestão, para que o aluno ausente volte para a sala de aula’. Caso do aplicativo Diário de Classe SP, utilizado para registro diário da frequência dos alunos da rede estadual e a plataforma Aluno Presente, um painel de controle de frequência que exibe desempenho por aluno, escola e Diretoria de Ensino, lançados em março.

‘É importante destacar que a Seduc garante que, a qualquer momento, todo aluno pode ingressar ou voltar à rede de ensino estadual”, acrescentou a secretaria.

Ainda de acordo com a pasta, os 15 dias seguem determinação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) que prevê que o Conselho Tutelar deve ser notificado quando as faltas atingirem 30% do máximo permitido em lei, estabelecido atualmente em 50 faltas.

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