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De volta à mordaça

Jorginho Mello sanciona lei que proíbe professor de manifestar opinião política em sala de aula

Mobilização. Os docentes conseguiram resistir às investidas no Congresso Nacionallegenda da foto. - Imagem: Gustavo Bezerra/PT na Câmara
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O Carnaval mal começou, mas o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello, parece estar em clima de Páscoa. Eleito na garupa de Bolsonaro, ele sancionou em 8 de fevereiro uma lei que, na prática, ressuscita o reacionário movimento Escola Sem Partido, para o qual nem mesmo o ex-capitão deu tanta bola. A Lei n°18.637/2023 instituiu a “Semana Escolar de Combate à Violência Institucional Contra Crianças e Adolescentes”. O nome pomposo pode enganar os incautos, mas, na prática, a proposta visa impor uma mordaça aos professores da rede pública, proibidos de manifestar qualquer opinião política em sala de aula.

Segundo o texto publicado no Diário Oficial do Estado, as crianças e os adolescentes têm o direito de “aprender conteúdo politicamente neutro, livre de ideologia, respeitando o pluralismo de ideias e a liberdade de consciência, assegurados pela Constituição”. Os professores são orientados a não se valerem da “audiência cativa dos estudantes com o objetivo de persuadi-los a quaisquer correntes políticas, ideológicas ou partidárias”. Eles tampouco devem “incitar” os alunos a participar de manifestações e atos políticos, muito menos questionar dogmas religiosos ou princípios da educação moral passada pelas famílias.

Por trás da defesa de uma educação “politicamente neutra”, o Escola Sem Partido busca reforçar os valores da direita conservadora, historicamente predominante na formação escolar. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo e integrante da Comissão de Direitos da Comunicação e dos Meios da OAB paulista, Letícia Frigo observa que a visão do professor como uma ameaça ao aluno parte de uma interpretação negacionista e revisionista do currículo e do sistema de ensino. “Os defensores desse projeto não são pessoas sem estudo ou que jamais leram Paulo Freire”, diz. “Em vez disso, eles fazem uma leitura hipócrita e mentirosa das teorias freirianas, com o objetivo de jogar a população contra elas.”

Caronista. O governador vai no embalo de Bolsonaro – Imagem: Alan Santos/PR

O Escola Sem Partido foi inspirado em um movimento ultraconservador norte-americano que, a partir dos anos 2000, começou a usar a internet como ferramenta para agregar “denúncias” contra autores e docentes acusados de fazer “doutrinação marxista” em instituições de ensino. De tempos em tempos, a turma cria um novo cavalo de batalha. “Pais reclamando de professores é uma coisa que existe desde a época do Padre ­Anchieta”, observa Silvia Celeste ­Barbara, diretora do Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro). “No entanto, a partir de 2014, com o fortalecimento das forças de extrema-direita no Brasil, constituiu-se um movimento de grandes proporções que busca alterar legislações estaduais e municipais contra o que chamam de ‘ideologia de gênero’, a linguagem neutra e tópicos semelhantes.” São assuntos que podem facilmente ser alvo de conclusões distorcidas, capazes de jogar os pais contra os educadores, acrescenta a sindicalista.

No início de sua gestão, Bolsonaro nacionalizou o debate ao incluir o Escola Sem Partido no seu plano para os primeiros cem dias de governo. Coube ao histriônico Abraham Weintraub, então ministro da Educação, intensificar os ataques aos professores da rede pública, sempre tachados de “doutrinadores”. Demitido após a revelação do áudio de uma reunião ministerial, na qual sugeriu a prisão dos “vagabundos do STF”, Weintraub buscou refúgio nos EUA e a chamada “ala ideológica” do governo passou a ser liderada por Damares Alves, que focou em outros temas, como negar o direito ao aborto até mesmo para as vítimas de estupro.

Apelar para pautas morais e costumes mobiliza o eleitorado. Nos EUA, Donald Trump soube explorar bem essa tática rasteira, deixando um pernicioso legado ao país. Agora, até mesmo o governador da Flórida, Ron DeSantis, que compete com Trump na indicação do Partido Republicano para disputar a presidência em 2024, lançou uma ofensiva nas escolas para censurar livros considerados “impróprios para menores”, ou seja, que abordem temas relacionados a gênero e sexualidade. Bolsonaro, descrito pela mídia estrangeira como “Trump dos Trópicos”, parece ter aperfeiçoado a estratégia. Sempre que um escândalo arranhava a imagem de seu governo, lá estava o capitão pautando debates irrelevantes, como o uso de banheiros unissex nas escolas.

A iniciativa do Escola Sem Partido viola a liberdade de expressão

Ex-integrante da tropa de choque de Bolsonaro no Senado, Jorginho Mello aprendeu com o padrinho a usar as pautas morais em seu favor. Em resposta a ­CartaCapital, a Secretaria de Educação de Santa Catarina buscou minimizar a participação do governador no episódio, atribuindo a decisão apenas ao Legislativo, como se Mello não tivesse o poder de vetar propostas. “O projeto foi aprovado pela maioria dos deputados para se tornar lei, porque viram na proposta mérito em manter os alunos focados no ensino e afastados de discussões ideológicas”, diz o texto.

Professor universitário e sócio da PCA Advogados, Giovanni Pilosio observa que a nova lei tem linguagem imprecisa e simplória, contrária ao tecnicismo legislativo dos últimos dez anos. “Os professores catarinenses correm o risco não poder exercer de forma plena sua profissão, além de serem considerados subcidadãos pelo Estado, pois nem sequer podem exercer a livre manifestação do pensamento”.

Este foi o entendimento do STF ao julgar uma lei alagoana de 2016, muito semelhante à sancionada agora em Santa Catarina. O plenário concluiu que a legislação, com linguagem muito ampla e vaga, “dava margem para que ocorresse a imposição de uma ideologia e a perseguição daqueles que pensassem de forma diferente, o exato oposto daquilo que a lei supostamente propunha.

A autora da lei catarinense é Ana Carolina Campagnolo, do PL, deputada mais votada no estado e uma das faces mais famosas do Escola Sem Partido. Ela tornou-se conhecida nacionalmente em 2019, quando o ministro Edson Fachin, do STF, derrubou um canal que ela havia criado para reunir denúncias contra professores “inconformados com a vitória do presidente Bolsonaro”, que estariam se valendo da “audiência cativa” dos alunos para ­expor “queixas político-partidárias”. À época, Fachin avaliou que o canal visava controlar os professores e feria a liberdade de expressão. Procurada por ­CartaCapital, a deputada limitou-se a celebrar a aprovação do projeto e disse estar contente por “contribuir para a democracia ao ajudar os professores, pais e alunos a conhecerem melhor seus direitos e deveres”. Amordaçados, os docentes não podem ­desmenti-la. Ao menos não em sala de aula. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De volta à mordaça “

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