Editorial
O único autor do plano
Ao contrário de versões tendenciosas, Golbery do Couto e Silva criou o projeto da distensão, a despeito da atuação desastrada de Ernesto Geisel, cujos erros e resistências teve de amansar


Pergunto em vão aos meus botões como haveria de qualificar o general Mauro Lourena Cid, intermediário da venda de um relógio Rolex presente do soberano da Arábia Saudita ao então presidente Jair Bolsonaro. Fatos passíveis de acontecer somente em terra brasileira, murmuram entre melancólicos e desalentados. Ocorre-me recordar o ditador Ernesto Geisel: levou os presentes recebidos como chefe de Estado para a mansão que construía a caminho de Petrópolis e pretendia decorar com objetos variados doados pelos potentados estrangeiros. Havia, inclusive, dois enormes vasos chineses de elevado valor.
Geisel foi um grande hipócrita a quem Elio Gaspari dedicou quatro volumes editados pela Companhia das Letras, para enaltecê-lo, ao enxergar nele o autor da chamada “distensão”, destinada a se concluir com a devolução do poder aos civis. Me vem à mente a figura de Golbery do Couto e Silva, tido e outrora celebrado como criador do SNI, algo assim como o embrião de uma KGB nativa. A bem da sacrossanta verdade, tratava-se de um cidadão muito arguto e bom conhecedor da alma nativa. Nem por isso deixou de cometer graves enganos. O primeiro deles foi não ter percebido, naquele momento da história mundial, não haver confronto entre o Bem e o Mal. Frente a frente estavam duas formas de imperialismo, ambas malignas, a despeito dos entendimentos manifestados por quem se arvorava a escolher uma ou outra.
Figueiredo gostava do cheiro de cavalos e de quem não lhe pedisse favores – Imagem: Arquivo/RDA
Depois de haver assessorado o primeiro ditador, general Castelo Branco, aquele a quem a natureza negara o pescoço, passou a presidir a filial brasileira da Dow Chemical, pouco convincente na qualidade de manifestação do Bem. Desde logo, contudo, decidiu combater a tortura praticada em larga escala pelo regime militar, incentivado, obviamente, pela casa-grande e pelo Departamento de Estado e a CIA. Naquele tempo, a América Latina em bloco tornava-se quintal dos EUA.
As atitudes de Golbery custaram-lhe caro. Em primeiro lugar, ganhou o ódio dos companheiros de farda, por ele solenemente desprezados, mas sempre lembrados de que Golbery jogara a farda às urtigas, para tornar-se general de uma estrela apenas por conta do tempo transcorrido na caserna. Pontualmente recebia o suplemento literário do New York Times e com isso garantia a indicação de bons livros editados mundo afora. Lembro-me ter conversado com ele a respeito da obra-prima de um pensador engajado à esquerda, Umberto Eco, O Nome da Rosa, sem se incomodar com a ideologia do autor.
Golbery sobre Falcão: “É o nosso Trotski” – Imagem: Arquivo/Estadão Conteúdo
Como prioridade absoluta cultivava o plano de abertura e deu para vigiar Geisel, de sorte a evitar suas interferências inoportunas e mesmo ameaçadoras. Recordo a ocasião de um encontro com ele logo após um longo período de sua ausência do Planalto, por conta do descolamento da retira, obrigando-o a procurar no exterior o tratamento mais adequado. Carregava um texto e o depositou na mesinha à sua frente. “Sabe o que é isto?”, perguntou, e logo esclareceu: “É o texto do discurso da pá de cal”. Geisel anunciava a abrupta interrupção do processo de abertura acalentado ardorosamente por Golbery.
Havia por trás da letra um ghost-writer, o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso, conforme Golbery declinou com sorriso irônico, ao denunciar sua desconfiança total pela aliança esdrúxula. Acentuava Golbery que daquele texto desbordava o aval ao recrudescimento da tortura, e de fato redundou na morte de Vlado Herzog no auge de uma operação dirigida, antes de mais nada, contra jornalistas. Vivi o momento com extrema intensidade, tocado profundamente por aquele episódio de ferocidade estulta.
“É mentira”, gritou e repetiu ao comentar a versão das Forças Armadas sobre a morte de Vlado Herzog – Imagem: Silvaldo Leung Vieira
Um comunicado das Forças Armadas sustentou que Vlado se enforcara na cela, aprisionado há dias. Liguei para Golbery para pô-lo a par da tragédia e, quando o informei a respeito da versão fardada, ele começou a gritar: “É mentira”. Repetiu várias vezes e no mesmo tom o seu julgamento. Redundou na demissão sumária do general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército. Depois das bombas do Rio Centro, o coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro, encarregado do IPM do atentado, foi substituído por outro coronel, Job Lorena de Sant’anna. No entanto, o general Gentil Marcondes Filho, comandante do I Exército, por vontade e determinação de Geisel, permaneceu impávido onde estava.
A prática da tortura levava-o à indignação mais inquieta e até às lágrimas, de acordo com a entrevista que Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo de São Paulo, me concedeu para ocupar dez páginas de uma CartaCapital ainda mensal. Dom Paulo levou a Golbery uma lista de presos torturados e o chefe da Casa Civil do ditador não conteve as lágrimas. O que mais temia aquele cidadão singular era a impossibilidade de concluir seu plano. E as súbitas veleidades do comandante do Exército, general Sylvio Frota, deram para inquietá-lo.
Heitor Ferreira: colaborador inconfiável, apesar da longa convivência – Imagem: Arquivo/Estadão Conteúdo
Conseguiu convencer Geisel a demitir, meses após, o comandante ambicioso e a reformular a composição da cúpula militar. Não foi igualmente bem-sucedido quando se deparou com o crescimento do poder do general Octávio Medeiros, chefe do SNI no governo Figueiredo. Enxergou nele um novo ditador e logo manobrou para precipitar sua demissão. Um dia, Medeiros entrou no gabinete de Golbery e me colheu a conversar com o chefe da Casa Civil. Sorrindo às claras, o anfitrião disse: “Ô Medeiros, você conhece o camarada Dimitrov?” O recém-chegado, tomado de perplexidade, girou sobre os saltos e desapareceu. Com gosto Golbery se ria. Nem mais nem menos do que, ao visitar o ministro Armando Falcão, fui brindado por ele com o seu livro A Revolução Permanente. Comentário de Golbery: “Sim, sim, o Falcão é o nosso Trotski”.
Malogrou na sua última tentativa feita como chefe da Casa Civil de Figueiredo. Pretendia a demissão daquele obstáculo que surgia no seu caminho, uma pedra de extraordinária dimensão. Disse ao ditador: “Ou ele ou eu!” Ali ele perdeu o emprego. O amigo banqueiro Edmundo Safdié ofereceu-lhe um espaçoso ambiente para trabalhar em Brasília, com domicílio fixo em Luziânia, a 60 quilômetros, entre gaiolas imensas de pássaros, emas e seriemas em liberdade, um alpendre dominado por uma tartaruga gigante mumificada, onde se sentava ao sol que nas horas adequadas não o desdenhava.
O velho conselheiro perdeu o emprego ao exigir a demissão de Medeiros – Imagem: Arquivo/Estadão Conteúdo
Entre Brasília e Luziânia, regularmente o visitei em proveito de evocações preciosas do passado, chistes de diversos portes e predições não de todo arriscadas. A morte dele, depois de um tempo de doença, deu-se quando eu não estava no Brasil e me entristeceu. Ao longo de uma demorada convivência, confiou demais no estranho anspeçada ressentido, invejoso, de duvidosa sexualidade, um certo Heitor Aquino Ferreira. Ao cabo foi quem o traiu da forma mais reles, ao entregar os arquivos de Geisel para transformá-los num pedestal de quatro volumes publicados pela Companhia das Letras com extrema retumbância, monumento ao usurpador do projeto de Golbery.
Em compensação, recebi um extraordinário elogio de João Figueiredo, último ditador saído às escondidas pela porta dos fundos do Planalto. No decorrer de uma tertúlia ao ar livre, com companheiros de pijama soerguendo gloriosos rabos de peixe de cerveja, me comparou impropriamente com os Civita da Editora Abril e Adolpho Bloch, dono do Grupo Manchete. “Civita e Bloch só apareciam para pedir favores. Mino Carta nunca pediu coisa alguma.” •
Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.
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