Editorial
O povo abandonado
A larga maioria, a seu destino de ignorância e miséria


O debate de domingo dia 28 de agosto entre os candidatos das próximas eleições presidenciais organizado pela Band teve o mérito de nos oferecer o retrato do Brasil de hoje. Ali estavam dois amigos de longa data, pelos quais tenho o mesmo afeto, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva e o também candidato Ciro Gomes. Verifiquei que não há entre eles a aparente inimizade apontada frequentemente pela própria mídia. De fato, notei o sorriso a iluminar o rosto de ambos quando ficou clara a intenção do ex-governador do Ceará e ex-ministro do primeiro governo Lula de apoiar no segundo turno o candidato petista, o que soa como prova de coerência.
Havia ali personagens necessariamente secundárias porque não eram protagonistas do evento. Os perguntadores, constatei, não sabem perguntar e na ribalta campeia um energúmeno demente eleito tempos atrás para a Presidência da República. O clima do cenário montado pela Bandeirantes levava a pressupor que o marciano surgido repentinamente na plateia acreditaria presenciar a manifestação de uma democracia solidamente implantada. Não é nada disso, muito pelo contrário. Não somos uma democracia por razões óbvias, a começar pelo monstruoso desequilíbrio social que nos aflige sem perspectivas de solução.
A pletora de candidatos era, aos olhos e ouvidos dos espectadores, profundamente inútil. Nem todos pronunciavam sandices, mas não tinham qualquer serventia para explicar o momento funesto que o País vive. E no entrecho o papel de protagonista cabia ao energúmeno demente Jair Bolsonaro, o qual não tem o menor receio de fazer da mentira seu modo de vida e de poder, com desfaçatez e empáfia a transcender qualquer imaginação por mais acesa.
Perguntei aos meus espantados botões por que aquela figura tão daninha havia sido eleita para a Presidência da República. Murmuraram sinistramente os botões: a democracia é o governo do povo, e o povo o elegeu. Retruquei: mas que povo é este? Certo é que ainda não se fez nação e há quem se contente com seus aplausos festeiros, suscitados pela ocasião extraordinária de viver alguns momentos cercando o candidato da sua preferência, e tampouco fica claro o porquê dela.
O energúmeno demente… – Imagem: Mateus Bonomi/Anadolu Agency/AFP
Por que o povo brasileiro elegeu a torpe personagem do ex-capitão? Porque nunca houve quem lhe abrisse os olhos e a consciência para a enorme desgraça a que a maioria foi obrigada a viver. Esta é, de fato, a questão, a desigualdade sem solução, entrave decisivo para o entendimento de quanto acontece, e que acontece porque é, como diria a velha amiga Hanna Arendt. Pregava a filósofa: se faltam homens dispostos a contar o que acontece, a verdade vai soçobrar como um barco furado e não haverá como recuperá-la.
O povo brasileiro continua a ser a vítima de tanto descaso e tamanha irresponsabilidade por parte de uma minoria abastada, cujo interesse volta-se única e exclusivamente para a sua aventura pessoal, e sem preocupação alguma com os destinos do País. Sentimentos sombrios visitam a alma do cidadão de boa-fé, pois o povo ludibriado não recebeu as devidas lições de resistência, sem falar de revolta, diante das vicissitudes impostas por uma sociedade medieval a manter de pé casa-grande e senzala. Faltaram os mestres, faltaram os líderes e, a partir destas ausências, o povo, em boa parte a trazer ainda nos lombos as marcas da chibata, foi incapaz de reação.
Vozes isoladas apontam o caminho da redenção, mas também estas eventuais aulas educativas não alcançam a maioria, curvada pelas calçadas debaixo do peso das mochilas, a carregar a marmita e mudas de roupa porque o dia é longo e o trabalho estafante, e sem a certeza de ter o que comer no dia seguinte. O povo, de fato, é a vítima, de acesso garantido só para a sua miséria. O contraste entre a situação do povo e as condições de um país tão rico como o Brasil, no mínimo justifica um enorme desconforto. Não ouvi referência alguma no tal debate a esta abnorme discrepância. Tal foi a convicção a me tomar neste cenário: o povo, abandonado ao seu triste destino, é quem de fato sofre com tamanho descalabro. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O povo abandonado “
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