Editorial

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À espera do apocalipse

A guerra no Oriente Médio mostra largamente que o Estado Judeu nada aprendeu com a feroz perseguição nazista

À espera do apocalipse
À espera do apocalipse
Eis os grandes vilões do conflito insano: o algoz alegra-se com a sua própria ferocidade enquanto Biden exibe a expressão de conivente pobre-diabo – Imagem: Andrew Caballero-Reynolds/AFP e Amos Ben Gershom/Gabinete do Primeiro Ministro de Israel
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Se, de improviso, os ouvidos do leitor forem alcançados por um ruído inédito, estranho e eventualmente avassalador, não se espante. Trata-se do tropel dos cavaleiros do Apocalipse. São quatro e representam a guerra, o fogo, a fome e a pestilência. Periodicamente assolam o mundo, esta modesta bola de argila destinada a rodar elipticamente em torno do Sol.

Civilizações desapareceram da face do planeta, por obra destes eventos cruentos. Outras ocasiões houve para convocar os cavaleiros, motivadas pela própria natureza. Segundo ­Nietzsche, a natureza criou o homem e o mistério de um universo sem tempo e espaço. Assim desapareceram os reinos mesopotâmicos e com eles a Babilônia, e daí por diante os hititas, os assírios, os egípcios e outros mais. Cabe aqui, inclusive, a história da Atlântida e mesmo de uma civilização completamente desconhecida, embora tragada pelo Mar do Norte no quadro de um cataclismo capaz de criar o Báltico, a Inglaterra e a Irlanda, bem como os países nórdicos.

Nada se sabe sobre o que ali antes existia. Na Península de Yucatán, que abarca partes do México e da América Central, desapareceram grandes civilizações, como a maia e a asteca, além da inca na América do Sul, das quais sobraram cidades mortas. Neste exato instante, ocorre no Oriente Médio um embate devastador entre a nação judia, que nada aprendeu com o Holocausto, conquanto celebrado em prosa e verso, e o povo palestino, espremido e humilhado na Faixa de Gaza, bombardeado incessantemente pela força aérea de Tel-Aviv e circundado pelo exército israelense, cujos tanques em certos momentos chegam a invadir o território ocupado pelo Hamas. A bem da verdade, os judeus comandados por Benjamin ­Netanyahu declararam guerra contra o Islã, prontamente apoiados pelo governo de Tio Sam e com o imediato consenso da imprensa brasileira, a denunciar o “ataque terrorista”.

Os fatídicos cavaleiros já avisam que Netanyahu é, hoje em dia, a nova versão de Hitler – Imagem: Albrecht Durer

Uma singular discrepância verifica-se entre a posição do governo brasileiro e da mídia nativa. É da lavra da equipe de Lula o plano de paz sensato e equidistante levado ao Conselho de Segurança da ONU, e rejeitado imediatamente por Washington. A diferença de posturas entre Lula e os órgãos midiáticos está longe de ser novidade, mas ofende a razão e a verdade. A guerra nasce desta tentativa de transformar os oprimidos em opressores. Um pretenso revide à agressão do agredido em ataque terrorista, enquanto o mundo assiste o assédio a Gaza e a sua destruição, por ora a se valer apenas do protesto solitário do secretário-geral da ONU, António Guterres.

Netanyahu desde já avisa que a guerra será longa e difícil, a configurar uma situação apocalíptica, alimentada pela morte e pelas ­ruínas. As baixas na Faixa de Gaza até quarta-feira 8 eram superiores a 10 mil mortos, e 70% das vítimas são crianças, mulheres e idosos, segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês). O mundo assiste ao massacre que não impede, por exemplo, o abraço do presidente francês, Emmanuel Macron, a Netanyahu. Quanto aos EUA, já foram os algozes de Abu Ghraib e Guantánamo, sem contar a sanha imperialista que os opôs à União Soviética em tempos de Guerra Fria.

Não bastasse, a Rússia retirou-se formalmente, na terça-feira 7, do Tratado das Forças Armadas Convencionais na Europa, que limitava a quantidade de tanques, veículos blindados, artilharia pesada, aviões de combate e helicópteros de ataque que os países da Otan, a aliança militar do Ocidente, e as nações do extinto Pacto de Varsóvia, então liderado pela União Soviética, poderiam ter. Firmado em 1990, um ano após a queda do Muro de Berlim, o acordo visava evitar que os rivais da Guerra Fria acumulassem forças para uma rápida ofensiva destinada a destruir fatalmente a outra parte no continente.

E o massacre dos palestinos prossegue impune – Imagem: Bashar Taleb/AFP, Menahem Kahana/AFP e Said Khatib/AFP

Mesmo após a dissolução da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, as regras continuavam em vigor, inclusive para os países que integravam o bloco comunista e prosseguiram na zona de influência russa. Ao abandonar o acordo, Moscou responsabilizou a Otan por seu expansionismo, com a adesão de novos países à aliança militar – mesma justificativa utilizada para a invasão da Ucrânia em 2022. Continua, portanto, a ameaça de uma guerra nuclear, para o regozijo dos terríveis cavaleiros.

Em ação, campeiam um líder sangrento e feroz como Netanyahu e o presidente norte-americano, Joe Biden, a estampar no rosto a expressão do pobre-diabo. É o domínio inconteste da matroca. Soluções não há e a situação atingiu o momento fatal do impasse. O Apocalipse é o remédio adiado, mas seguro. Papa Francisco alerta que o mundo está ruindo e, obviamente, se refere aos pecados do homem, na lida com a meteorologia e a convivência com os semelhantes. A incógnita, nesta equação, é representada pelo comportamento da China, dona do maior exército do mundo, sem contar os fantasmas de argila, habitantes de um de seus cemitérios. Vale perguntar aos nossos botões, entre atônitos e perplexos, se não seriam chineses os cavaleiros do Apocalipse. •

Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.

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