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Vida ou morte

Como o governo pode cumprir a promessa de melhorar a vida da população sem entrar em guerra com o BC

Esta não é uma reunião para decidir a taxa de juros - Imagem: Renato Luiz Ferreira
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Questão de vida ou morte para o governo Lula: mostrar, já em 2023 e 2024, que é capaz de melhorar a vida da população miserável e pobre e de aumentar os salários e o emprego. Por algum tempo, pode-se viver de promessas e discursos. Mas o período de carência não será longo. Logo virão as cobranças e, caso não atendidas, as decepções. Lula certamente sabe disso. E dá mostras de que tem pressa.

É possível fazer diferença no curto prazo? Sim, ainda que exista um obstáculo poderoso, a autonomia ou independência do Banco Central, cujo comando é exercido por um executivo financeiro indicado por Jair Bolsonaro. Os instrumentos para reativar a economia e distribuir renda são conhecidos em suas linhas gerais. Destaco três: aumento do salário mínimo, ampliação do Bolsa Família e correção da tabela do Imposto de Renda, com aumento da faixa de isenção.

Essas providências matam dois coelhos com uma cajadada. Desconcentram a renda nacional e, ao mesmo tempo, estimulam a economia. Ao aumentar a renda disponível dos mais pobres, diminuem a miséria, a fome e a pobreza, melhorando imediatamente a distribuição da renda nacional. Além disso, têm impacto expressivo sobre a atividade econômica e o emprego, uma vez que a propensão marginal a consumir dos mais pobres é elevada, próxima de 1. Admitindo-se que exista capacidade produtiva ociosa na economia, o multiplicador keynesiano associado a elas será alto. Sem jargão e em uma frase: como os pobres gastam toda ou quase toda a renda adicional que recebem, é grande o efeito dinamizador sobre a economia de medidas que aumentem a sua renda.

Como fazer? O salário mínimo deve ser elevado paulatinamente, ano após ano, em termos reais, começando em 2023. O Bolsa Família, que está sendo recuperado agora, inclusive o cadastro único, dos estragos cometidos durante o governo Bolsonaro, deve ser ampliado gradualmente, a partir de 2024. Isso poderia ser feito de várias maneiras: garantindo a inclusão de todos aqueles que têm direito ao benefício, aumentando gradualmente o valor médio em termos reais e ampliando aos poucos o alcance do programa pela elevação da faixa de corte.

O congelamento da tabela progressiva do Imposto de Renda pessoa física, que ficou sem correção por anos, criou distorções sérias. Com a inflação persistente, os salários foram migrando para faixas mais altas de tributação, mesmo sem aumentar em termos reais, até caindo em termos reais em alguns casos. Resulta que hoje o Imposto de Renda chega a incidir sobre salários muito baixos: as alíquotas marginais são de 7,5% e 15% para as faixas mais baixas de rendimento, de até 2.827 reais mensais. Cabe então começar a corrigir a tabela, elevando gradualmente a faixa de isenção e as demais faixas de tributação.

Simples? Parece, mas não é. Vamos tentar resumir o contra-argumento de um banqueiro central. Exaltado dirá: “Mas essas medidas terão conse­quências macroeconômicas terríveis. Aumentarão a inflação, desequilibrarão as contas externas do País e prejudicarão as contas públicas”. Se for dado à hipocrisia, ainda acrescentará compungido: “E o pior é que no fim das contas, o povo é que pagará a conta, uma vez que a inflação prejudica sobretudo os mais pobres”. E correm as lágrimas de crocodilo.

Apesar do obstáculo da independência do Banco Central, medidas graduais e coordenadas tendem a surtir efeito

Bem, pergunte, querido leitor, ao pobre, ao miserável que está na emergência e recebe o aumento do salário mínimo e ganha com a ampliação do Bolsa Família ou passa a pagar menos Imposto de Renda, pergunte por favor se ele perde o sono com o hipotético aumento da inflação e do imposto inflacionário que sobre ele incidirá. As lágrimas de crocodilo do banqueiro central não o comoverão.

Mas não quero fazer uma caricatura simplória do nosso respeitável BC. As preocupações ortodoxas não são inteiramente irrelevantes e merecem atenção. Não há dúvida de que as medidas acima referidas afetam as contas públicas primárias, por aumento de despesa ou perda de arrecadação. Não se deve perder de vista, porém, que as três providências se autofinanciam ao menos em parte, ao gerar expansão do PIB e do emprego, isto é, da base de arrecadação dos tributos, e reduzir certas despesas, como o seguro-desemprego. Nada impede, também, que o impacto fiscal seja parcial ou totalmente neutralizado por tributação dos super-ricos. Seria a reforma tributária Robin Hood, temida pelo empresário Abílio Diniz.

Haveria risco de excesso de demanda? Ponto óbvio que não pode ser esquecido: se não existir capacidade ociosa (desemprego da força de trabalho e das instalações produtivas) ou se ela for ocupada rapidamente, haverá, sim, excesso de ­demanda e pressão inflacionária. E, pior, as pressões inflacionárias, via pontos setoriais de estrangulamento, tenderiam a se manifestar antes do pleno emprego. Essas pressões podem ser neutralizadas, ao menos em parte, recorrendo a importações ou desviando exportações para o mercado interno. A expansão da demanda tende a gerar, portanto, desequilíbrios na balança comercial e no balanço de pagamentos em transações correntes. Se esses desequilíbrios aumentarem para além de certos limites, difíceis de precisar ­ex ante,­ o resultado pode ser um aumento perigoso da vulnerabilidade externa do País, tanto mais se o BC responder às medidas fiscais expansionistas com aumento da taxa de juro. A apreciação cambial induzida pelos juros aumentará o desequilíbrio externo. E os juros altos elevarão diretamente o custo da dívida pública interna.

O que fazer para mitigar esses riscos? Duas coisas, ao menos. Primeira: fazer tudo passo a passo, testando a temperatura da água. Aumento gradual do mínimo, expansão em etapas do Bolsa Família e correção em etapas da tabela do Imposto de Renda. Segunda: acompanhar com o máximo de cuidado, semanalmente se possível, todo um amplo conjunto de indicadores, inclusive antecedentes, sobre a conjuntura econômica interna e externa. O BC e a Fazenda já fazem esse acompanhamento. Convém aperfeiçoá-lo e, ponto importante, discutir em conjunto as avaliações dos dois órgãos, confrontando informações e coordenando as ações do BC e da Fazenda.

E não me venham, por favor, com essa conversa de BC autônomo ou independente. Em todos os países que se prezam, o BC coordena suas ações com as do Tesouro. Banqueiros centrais que não entendem isso são gentilmente convidados, cedo ou tarde, a pedir as contas. •


*Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Vida ou morte”

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