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Trabalhador cancelado

Reféns das plataformas, autônomos contam como é ser impedido de trabalhar por empresas como o Uber

À própria sorte. Os “colaboradores” dos aplicativos reclamam da falta de amparo e de transparência. O Uber diz que as regras constam do Código da Comunidade - Imagem: iStockphoto
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“Não sou de reclamar, não. Porém, hoje tá brabo”, desabafa um trabalhador de aplicativos em um grupo dedicado à categoria numa rede social. Um colega de serviço comenta o post: “É só isso que está acontecendo hoje no Uber, se quiser ganhar dinheiro, não pode errar que já era!” Referência às punições de bloqueio que a empresa impõe aos “parceiros”.

Em recente protesto, um motorista impedido de atender clientes pela plataforma acorrentou-se em frente à sede­ do Uber em São Paulo, empresa que possui 1 milhão de “parceiros” no Brasil e mais de 5 milhões ao redor do mundo, conhecidos por cumprir excessiva carga horária. O ato de desespero viralizou. Segundo o motorista, após cancelar viagens em regiões onde havia sido assaltado, o aplicativo cortou o seu acesso e não lhe deu o suporte necessário.

Os casos se multiplicam. Alex Levino trabalhou quase três anos por meio da plataforma antes de ser bloqueado pelo aplicativo.

“Simplesmente fui bloqueado, nem sei o motivo. O Uber não me deu nenhuma satisfação.” Anderson Bispo dos Santos, que por dois anos fez entregas via Uber Eats, também se sente abandonado. “Alegaram que eu não estava seguindo os procedimentos da plataforma e encerraram minha parceria, sem ao menos dizer de fato o que eu não estava cumprindo. Fiquei sem entender.”

Muitos trabalhadores de aplicativos são recordistas em horas trabalhadas, segundo recente pesquisa da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista, ligada à Unicamp. A jornada, aponta o levantamento, pode alcançar até 15 horas diárias. O desgaste físico e mental traz consequências. No fim de março, Rodrigo Musi, ex-participante do reality show Big Brother Brasil, sofreu grave acidente na Marginal Pinheiros, em São Paulo. O motorista Kaique Reis havia dormido ao volante, após longas horas circulando pela cidade. O caso suscitou debates sobre o papel dos aplicativos e a qualidade de vida dos trabalhadores, bem como sobre a regulamentação da categoria.

Em relação aos bloqueios de parceiros, o Uber respondeu por meio de uma nota que os motivos das desativações estão descritos no Código da Comunidade do aplicativo, que elas não acontecem com frequência e, obviamente, não é de interesse da empresa reduzir o número de parceiros, que são seus clientes. Por isso, existem procedimentos para a revisão, caso o prejudicado entenda que houve decisão equivocada.

Segundo pesquisa da Unicamp, a jornada diária de motoristas e entregadores pode passar de 15 horas

No século XIX, o pensador Paul ­Lafargue fazia o elogio ao ócio. Segundo ele, seria necessária uma radical redução de horas trabalhadas para que, no tempo restante, os indivíduos pudessem usufruir dos prazeres estéticos da arte, do lazer ou simplesmente não fazer nada. De lá para cá, a produtividade aumentou, o uso de robôs e de outras tecnologias cresceu, mas o tempo livre tornou-se um bem cada vez mais escasso. Para o sociólogo Ricardo Antunes, autor de obras referenciais como O Privilégio da Servidão e Os Sentidos do Trabalho: Ensaio Sobre a Negação e a Afirmação do Trabalho, o ideal de Lafargue está cada vez mais longe de ser concretizado, uma vez que a tecnologia tem acelerado a precarização e não a emancipação do trabalhador. “Ócio e direito à preguiça com capitalismo é uma total impossibilidade.”

Há dois anos, uma das maiores paralisações de trabalhadores de aplicativos, o “Breque dos Apps”, trouxe à tona as reivindicações de quem presta serviços a essas empresas. Entre elas, o fim do bloqueio quando ocorre um cancelamento ou o entregador se nega a fazer a viagem. Trata-se, porém, de uma luta desigual, diz Antunes. “Os motoboys que entregam comida sob o regime algorítmico que lhes impõe ritmos brutais em velocidades intensas, com riscos de acidentes e mortes cotidianos, recorreram ao WhatsApp para organizar o ‘Breque dos Apps’ de 2020, então é evidente que é necessário aprender a usar a tecnologia, não conseguiremos mais voltar para o mundo sem ­computadores, sem celulares. O que não podemos é nos tornarmos prisioneiros de uma máquina que nos faz escravos digitais.”

Na contramão das grandes corporações que dominam o mercado de entregas via aplicativos está a iniciativa do coletivo Senõritas Courier, fundado em 2016 por Aline Os e que até o momento abriu oportunidade para mais de 60 integrantes da comunidade LGBTQIA+ de maneira horizontal. “Pensamos em inclusão digital e fazemos isso na prática, incentivando os participantes do coletivo a estudar linguagem de programação, assim usamos a tecnologia a nosso favor, mas muitas (WhatsApp, Google Drive) estão atreladas a grandes empresas. O que queremos é pegar a nossa forma de operar, desenvolver o algoritmo ­Señoritas e ter uma plataforma que seja opção para quem discorda das atuais plataformas. A gente sonha com condições justas de trabalho, porque vivemos na pele o que de pior as plataformas e a precarização do trabalho têm a oferecer”, salienta.

De acordo com Aline Os, o grupo ainda não sofreu ataques por meio das redes, mas conta que no mundo real das entregas diárias a vida não é fácil. “O coletivo em si nunca passou por situações de perseguição em seu perfil. Temos diariamente, porém, casos de assédio (no trânsito, em algumas portarias e até de ‘colegas’ de entregas). Também tivemos o caso de um dos integrantes que foi agredido (ele estava de folga e atuando por outro coletivo), por ter sido identificado como LGBTQIA+. Ele ficou um ano sem fazer entregas, mal saía de casa, precisa tomar remédios por conta do trauma até hoje. Ele está voltando aos poucos, mas nunca saiu do coletivo. Enquanto corpo coletivo, nos apoiamos e nos fortalecemos. Esta talvez seja a maior diferença entre estar sozinho numa empresa ou em um coletivo: você sabe que se algo ruim acontecer, no coletivo tem quem te ajude, pois nos apps é só bloqueio e perda de direitos.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Trabalhador cancelado “

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