Economia

Sigilo que acoberta sonegação e lavagem tem “eixo anglo-saxão”

Estados Unidos e Reino Unido se saem mal no novo Índice de Sigilo Financeiro, liderado pelas Ilhas Cayman

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A transparência em informações financeiras e sobre a propriedade de empresas avançou no mundo de 2018 para cá. Pior para ricos e grandes corporações sonegadores de impostos, para corruptos e criminosos em geral, grupos que tiram proveito do “escurinho”. Há, no entanto, muita hipocrisia no mundo rico. Enquanto a percepção de suas populações é de que existe pouca corrupção em seus países, seus governos acolhem, via bancos e regulação financeira frouxa, dinheiro de estrangeiros sonegadores, corruptos ou criminosos comuns.

Um exemplo disso é que já cabe falar em um “eixo anglo-saxão”, formado por Estados Unidos, Reino Unido e territórios britânicos espalhados pelo planeta, “eixo” que andou na contramão da tendência global nos últimos dois anos e agora dá mais guarida a quem quer esconder e lavar grana.

Essas são algumas das conclusões Índice de Sigilo Financeiro 2020, que a Tax Justice Network (Rede de Justiça Fiscal), uma organização internacional sediada em Londres, divulga nesta terça-feira 18. Aqui no Brasil, que melhorou no índice embora pudesse ter feito mais, como ampliar o uso de relatórios de multinacionais, CartaCapital obteve o estudo antecipadamente com exclusividade.

A principal novidade em comparação com o índice anterior, divulgado em 2018, foi a mudança na dianteira dos países que mais garantem sigilo a correntistas, empresários, proprietários em geral. A Suíça deixou a liderança. Agora o posto é das Ilhas Cayman, território britânico no Caribe. Em segundo lugar aparecem os EUA, mesma posição de dois anos atrás. Os suíços caíram para terceiro.

O índice é calculado com base na combinação de dois ingredientes. Primeiro: os serviços financeiros oferecidos em um país e como as leis e normas locais facilitam que a riqueza e os criminosos escondam e lavem grana. Segundo: o volume de dinheiro movimentado no mercado financeiro desse país por pessoas que não moram nele, os não-residentes.

Cayman assumiu a ponta por ter piorado nos dois ingredientes. No quesito “leis”, sua nota passou de 72 para 76 – quanto mais pontos, menor a transparência. Motivo: inércia depois da divulgação do índice anterior. No outro ingrediente, a ilha aumentou em 24% a oferta de serviços financeiros para não-residentes. Seu mercado financeiro abrigava 3,7% da movimentação dessas pessoas e agora, 4,5%.

A ilha é território britânico. O governo de sua majestade em Londres tem o poder de vetar e impor leis e de nomear um governador para Cayman, cuja administração efetiva é tocada por um primeiro-ministro. Por isso, é co-responsável pela falta de transparência na ilha, sigilo colocado a serviço da sonegação, do crime e da lavagem.

Há uma verdadeira “teia de aranha” para a qual o governo britânico “terceiriza” o sigilo, segundo a Rede de Justiça Fiscal. Teia integrada por territórios como Bermuda, Anguila, Montserrat, Ilhas Jersey, Gurnsey e Ilhas Virgens, esta em 9o no Índice 2020. A teia aumentou em 17% a oferta de serviços financeiros em dois anos. “No centro dessa teia está a cidade de Londres, que recebe e lava a riqueza trazida pelas jurisdições dos satélites”, segundo a Rede de Justiça Fiscal

De 2018 em diante, nenhum outro país subiu mais no ranking (ou seja, ficou menos transparente) do que o Reino Unido. Saltou de 23o para 12o. Sua nota de sigilo (ingrediente 1) subiu de 42 para 46. Além disso, o país aumentou em 26% a oferta de serviços financeiros sigilosos a estrangeiros (ingrediente 2).

Essa expansão pode ter relação com o saída do Reino Unido da União Europeia. Há tempos circula na mídia inglesa que o chamado Brexit pode transformar o país na “Cingapura do Thamisa”, ao atrair dinheiro de europeus. Cingapura é o quinto país com menor transparência no novo Índice do Sigilo Financeiro.

Os EUA fecham o “eixo anglo-saxão” da falta de transparência. Seu peso na movimentação global de dinheiro por estrangeiros caiu de 22,3% para 21,3% desde 2018. Mas subiu de 60 para 66 sua nota no outro ingrediente, a pontuação de sigilo. O motivo foi a aprovação, no estado de New Hapshire, de uma lei que permite abrir fundações sem identificar o dono. Basta indicar uma empresa, que por trás tem outra, que tem outra e assim por diante.

Além disso, os americanos até hoje não aderiram a um acordo global de troca de informações financeiras surgido em 2014, na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O acordo já reúne 105 nações signatárias, Brasil entre elas. Serve para tentar combater sonegação e lavagem. Funciona assim: o Brasil diz à Alemanha quais alemães têm conta aqui, e a quantia depositada, e recebe em troca dados sobre brasileiros lá. Os EUA possuem uma lei própria para isso, conhecida por Fatca, mas não proporcionam reciprocidade total.

Tudo somado, os EUA ficaram em segundo lugar no Índice de Sigilo Financeiro, tendo ultrapassado a Suíça. É a primeira vez desde 2011 que os suíços, famosos por não fazer perguntas a quem deixa o dinheiro lá, perdem a liderança. Melhoraram sua transparência ao trocar cada vez mais informações naquele acordo na OCDE e por terem diminuído a oferta de serviços financeiros a estrangeiros.

Dos 20 países com menor transparência no novo, nove apareciam entre os 20 que em 2019 menos despertaram em suas populações a sensação de que há corrupção em casa. Suíça, Cingapura, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Reino Unido, Hong Kong e Japão pertencem aos dois rankings: da baixa percepção de corrupção, medida no Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, e no Índice de Sigilo Financeiro 2020.

A OCDE talvez seja quem mais mereça cobrança por essa hipocrisia. Sediada em Paris, é um clube de 35 nações ricas ou simpatizantes. Tem liderado no mundo a elaboração e a adoção de medidas a favor de mais transparência e menos sigilo. Mas seus membros respondem, direta ou indiretamente (através de territórios controlados), por metade do Índice de Sigilo Financeiro.

Os integrantes da OCDE fazem vista grossa para o que acontece em seus territórios controlados. Se em casa o índice médio de pontuação de sigilo (ingresidente 1) é de 54, nos seus territórios é de 73. Para a Rede de Justiça Fiscal, é uma forma de endurecer internamente, diante de pressões políticas locais, mas de manter uma válvula de escape além-mar.

 

O Brasil quer aderir à OCDE desde o governo Michel Temer, mas enfrenta resistência por parte do presidente americano, Donald Trump. Nós melhoramos no novo Índice de Sigilo Financeiro, graças ao avanço nas trocas de informações com outros países através daquele acordo da OCDE. “É muito pouco. Precisávamos dar um passo a mais. Por exemplo: trabalhar mais com relatório país por país”, diz a brasileira Shanna Lima, pesquisadora da Rede de Justiça Fiscal.

Esses relatórios têm se tornado comuns de uns cinco anos para cá. São elaborados por empresas multinacionais com a descrição sobre quanto empregam, quanto vendem e quanto pagam de impostos em cada país. Um material capaz de ajudar o leão a descobrir sonegação e evasão.

O Brasil, diz Shanna, segue o padrão OCDE de uso desses relatórios. Só recorre a eles em último caso, como algum grande escândalo. O ideal é fazer uso deles sempre, como no Uruguai. Peru e Costa Rica, por outro lado, fazem questão de não receber nenhum desses relatórios, talvez para não iniberem a atuação das múltis em suas terras. Uma forma de guerra fiscal.

Aliás, é da América do Sul o país com a maior transparência do mundo em seu arcabouço legal e financeiro, o Equador, segundo a Rede de Justiça Fiscal. Lá, todas as informações sobre donos de empresas são públicas.

Ao divulgar seu novo Índice, a Rede propõe três recomendações, e uma delas é seguir o caminho equatoriano: acabar com a propriedade anônima de empresas, fundos etc. Outra é todos recorrerem aos relatórios das multinacionais. Mais uma: aplicar sanções contra quem andar na contramão global, como o “eixo anglo-saxão”.

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