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O plano Nova Indústria Brasil é uma emancipação frente a um certo vira-latismo nacional

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Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, no anúncio da política industrial – Imagem: Gabriel Lemes/MDIC
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Nelson Rodrigues captou um elemento que supunha incrustado na nossa subjetividade, a vocação para a autodepreciação, que popularizou na expressão “complexo de vira-latas”. Essa descrença no potencial de realização do País, que, diga-se de passagem, não tem amparo na nossa realidade, insiste em retornar.

O exemplo mais recente do “vira-latismo” foi a recepção da imprensa e de analistas de mercado ao Nova Indústria Brasil, lançado no dia 22 de janeiro. Antes mesmo de uma análise perfunctória que fosse da política pública, duas afirmações, a “ideia velha” e o “nunca funcionou por aqui”, estruturaram discursos quase unânimes, concluindo que “vai dar errado”. Em parte, essa censura aponta para a decisão do governo de retomar o crédito público às exportações. O problema com essa censura é que ela não faz sentido no mundo em que vivemos. Todos os países que aspiram desenvolver uma indústria de bens e serviços tecnologicamente sofisticados, intensivos em capital, e com alto valor unitário, ofertam financiamento público de longo prazo com custos competitivos para ganhar mercados externos e assegurar escalas de eficiência.

Isso vale para os países do G7, mesmo contendo sistemas bancários e mercados de capitais sofisticados. Vale também para a China e a Índia. Todos empregam, sem timidez, suas Agências Públicas de Crédito à Exportação, para ofertar financiamento barato e farto à produção de aeronaves, embarcações, equipamento ferroviário, serviços de engenharia e equipamentos da economia verde. A própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que advoga em seus estatutos a favor do livre-mercado, justifica a intervenção do Estado ao assumir que o sistema financeiro privado falha sistematicamente em ofertar crédito de longo prazo para exportações. Diante disso, é fácil concluir que, para o Brasil se reindustrializar, precisa fortalecer o seu sistema público de financiamento às exportações.

O vira-latismo brasileiro aparecerá em afirmações tolas, tais como aquelas que confundem financiamento com doação a países amigos, ou que propagam que o financiamento das exportações acaba com os recursos nacionais. Serão ouvidas ad nauseam. Essas bobagens deverão claramente ser rechaçadas, mas o perigo mora em outra linguagem. Haverá vozes razoáveis, cultas e moderadas que, reconhecendo a importância das Agências Públicas de Crédito à Exportação, defenderão disciplinar os financiamentos governamentais segundo as “melhores práticas”, no caso, os arrangements, ou o “entendimento”, da OCDE.

Elas consistem em um regramento definido pelos países da OCDE, grupo do qual o Brasil não faz parte, que limita juros e prêmio de seguro mínimos a ser cobrados em operações de financiamento às exportações. A lógica do “entendimento” é limitar a intervenção estatal, visando (a) proteger o sistema financeiro privado (dos países do G7), (b) valorizar a concorrência legítima entre exportadores, fechando as portas para vantagens espúrias (o apoio do Estado); (c) e preservar o Erário de cada país.

Ocorre que o mundo real não é bem assim. A China, fortíssima competidora no campo dos serviços de engenharia na África e na América Latina, não é da OCDE nem se deixa limitar por ela. Alguém de límpida superficialidade poderá dizer que, se for por isso, o Brasil está perdendo tempo, pois a engenharia brasileira não importa mais. Uma bobagem, pois é vital recuperá-la. Portanto, é preciso ter cuidado em aderir a regras que poderão nos inviabilizar diante de concorrentes muito poderosos. Ademais, o Brasil é mais do que construção civil. É um dos grandes na exportação de aeronaves e tem potencial para se tornar forte exportador de embarcações, material ferroviá­rio e equipamentos da economia verde. Terá de enfrentar a China, assim como a Índia e outros países, não podendo perder espaço por causa da timidez do seu apoio financeiro, se almejar um lugar ao sol.

Fossem apenas os grandes concorrentes que não são da OCDE, seria importante ter cuidado em aceitar acriticamente regras de bom comportamento, supondo que os países do G7 as seguem. Mas o quadro é mais grave: os próprios países do G7 exploram brechas no “entendimento” para apoiar mais as suas exportações. Assim, nas operações de ajuda internacional, utilizam suas Agências Públicas de Crédito à Exportação para fazer empréstimos concessionais, i.e., com juros muito mais baixos e prazos mais dilatados. Atrás da ajuda, muitas das vezes, há apoio financeiro às suas exportações.

As operações de market window são outro exemplo. Por meio delas, agências de crédito do G7 alegam, de modo completamente opaco, oferecer recursos em condições de mercado para escapar do “entendimento”, cobrando juros mais baixos ou com prazos acima dos permitidos. A lista de escapadas em face do “entendimento” inclui o apoio de crédito à internacionalização de empresas de países do G7, sempre em condições também favorecidas, que beneficiam, direta e indiretamente, suas exportações. Acrescentem-se os financiamentos à exportação da indústria de defesa, que correm “por fora” do “entendimento”, e incluem armas, munições, roupas, alimentos, equipamentos e o que mais puder ser aí classificado.

O gráfico nestas páginas, do ­US-EXIM, dá uma dimensão dos créditos públicos às exportações. É visível a perda de espaço nas práticas internacionais daqueles créditos que se submetem ao “entendimento” da OCDE. Mas aqui não faltarão vozes para defendê-lo em nome de fazer vigorar as “boas práticas”.

O complexo de vira-latas faz ver corrupção e leniência em qualquer experiência desenvolvimentista no Brasil. E admira as boas práticas da OCDE. Felizmente, o Nova Indústria Brasil é sinal da emancipação dessa forma de pensar, afastando a fobia de Estado e a subserviência para ficar à altura dos nossos tempos. Não pode haver dúvida: impulsionar o financiamento público às exportações é manter a chama acesa de nossas aspirações ao desenvolvimento. •


*Antonio José Alves Jr. é professor titular do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia e Conjuntura do Sistema Financeiro; Aléxis Toríbio Dantas é diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ; Marcelo Pereira Fernandes é professor do Departamento de Economia da UFRRJ e integrante
do grupo de pesquisa Padrões Históricos do Desenvolvimento Econômico da América do Sul.

Publicado na edição n° 1297 de CartaCapital, em 14 de fevereiro de 2024.

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