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Prometeu acorrentado

O País cresceu antes sob taxas altas, mas nunca em condições tão adversas

Prometeu acorrentado
Prometeu acorrentado
Sabotagem. A atuação de Campos Neto, do BC, prejudica o consumo de bens duráveis. Mercadante, do BNDES, quer compensar os juros elevados com crédito subsidiado – Imagem: Marcelo Camargo/ABR e Renato Luiz Ferreira
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Refém histórico do rentismo, o Brasil aprendeu a conviver, e até mesmo a crescer por curtos períodos, com juros muito altos, inclusive sob a Presidência de Lula, mas nunca enfrentou condições políticas e econômicas tão hostis ao desenvolvimento como na situação atual. A reafirmação, pela quinta vez consecutiva, da taxa de juros de 13,75% ao ano, pelo Comitê de Política Monetária, exigirá uma mobilização intensa do aparelho do Estado, mutilado pela política de austeridade radical e por sucessivas privatizações desde o golpe que depôs Dilma Rousseff. Sob as taxas de juro atuais, contudo, nem isso conseguirá recolocar o ­País na rota do desenvolvimento.

A situação é de grave impasse, destaca o economista Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp. “O BC fez opção deliberada por combater a inflação com desemprego. A política monetária é um freio na economia, é como andar de carro com o freio de mão puxado. É possível crescer, mas para isso é necessário acionar outras políticas públicas. Daí a importância do arcabouço fiscal, mas, se ele for muito rígido, em vez de um, teremos dois freios”, alerta o economista. “O governo pode compensar os juros altos com uma política de crédito subsidiado, com o BNDES e os bancos públicos ativos. E compensar o baixo investimento privado com aportes públicos e de estatais.” Declarações das autoridades monetárias acenam, porém, para a manutenção do fundamentalismo fiscal a qualquer custo.

“A política monetária do BC é um freio na economia”, avalia o economista Pedro Rossi, da Unicamp

“Historicamente, há exemplos de crescimento razoavelmente elevado do PIB com taxas de juro maiores, a começar pelo primeiro governo Lula”, destaca o economista Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Unicamp. As séries estatísticas confirmam que, em janeiro de 2003, a taxa estava em 25,5% ao ano. Em fevereiro, houve nova alta e ela atingiu o pico de 26,5%. A partir daí, caiu gradativamente até chegar, em junho de 2009, em 9,25%, o menor índice em dez anos. “O problema”, acrescenta Diegues, “é que naquele período a taxa de juros no mundo era maior, e havia a ­possibilidade de criar, operar e ampliar plenamente programas ‘estruturantes’, que tiveram altos efeitos multiplicadores no emprego e na renda, como o Minha Casa Minha Vida, em 2008, e uma política de valorização do salário mínimo, acima da inflação.” Além disso, havia pressão para a valorização da moeda, o que segurava a inflação e aumentava o poder de compra em dólar, dos trabalhadores inclusive.

Acrescente-se ainda o boom das ­commodities adquiridas do Brasil pela China e a oferta de crédito maior e ascendente por parte de BNDES, Caixa e Banco do Brasil. No atual cenário, prossegue Diegues, apesar de a taxa de juros ser menor do que naquele momento, todos esses outros fatores mencionados não estão mais presentes. Com a taxa de juros em vigor, o “teto” do crescimento fica, portanto, bem mais baixo e haverá uma margem muito pequena para recompor, ainda que parcialmente, os programas da política econômica dos primeiros governos Lula, mesmo que o Minha Casa Minha Vida e a valorização real do salário mínimo tenham sido retomados e haja uma discussão sobre a possibilidade de retorno do financiamento por parte do BNDES e dos demais bancos públicos.

Outra diferença, para pior, entre as condições existentes no primeiro governo Lula e o contexto atual, é que se perdeu muito da capacidade de ação das estatais, portanto, os efeitos multiplicadores nos vários setores da economia seriam menores. Além disso, há a dificuldade de aumentar o salário mínimo acima da inflação, no marco fiscal vigente. Ou seja, o alcance e os efeitos de um crescimento obtido sob as atuais taxas de juro seriam menores e a dificuldade de gerar um crescimento mais virtuoso seria maior. “Todos esses elementos precisam ser amarrados ao mesmo tempo, e potencializados por uma redução da taxa de juros”, enfatiza Diegues.

Um aspecto importante é o efeito negativo duplo dos juros altos, tanto no consumo quanto na produção. As taxas elevadas encarecem o crédito e os financiamento do consumo de bens duráveis e no setor de construção civil, sublinha a economista Júlia Braga, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense. A situação do País é complicada, diz, não só devido ao descalabro dos juros, mas por causa da conjugação de dificuldades. “O País pode crescer com juros altos, num ambiente de crise externa, se existirem medidas compensatórias para dar sustentação à demanda agregada, como a própria política fiscal, atuando de forma contracíclica. O Brasil tem um histórico de juros altos e mesmo assim teve momentos de crescimento, como ocorreu após a crise do ­subprime. “Isso foi possível graças às medidas de política fiscal expansionista e porque tínhamos o BNDES, a Caixa Econômica e os demais bancos públicos atuando com uma taxa de juros menor, subsidiada”, ressalta a professora da UFF.

Com a taxa Selic nas alturas, o investimento privado tende a ter um retorno muito inferior à aplicação financeira. Cria-se uma relação bastante desfavorável entre a utilização de capital próprio e recursos de terceiros. Além disso, ocorrerá um aumento do custo do crédito às famílias, acrescenta o economista Fábio Terra, professor da Universidade Federal do ABC e do programa de pós-graduação em Economia da Federal de Uberlândia. As componentes internas privadas da demanda, que são o consumo e o investimento, ficam desestimuladas com os juros altos, observa. Não é daí, portanto, que virá o crescimento. O setor externo está arisco, pois o mundo mal se restabelecia da pandemia quando a inflação começou a aumentar e iniciou-se a subida de juros. A guerra na Ucrânia atrapalhou ainda mais a dinâmica econômica e os rumores da recessão freiam o ânimo global.

“A conclusão é de que também não será da exportação que virá o crescimento do País, e resta ao Estado impulsioná-lo. Por isso a PEC da Transição é tão importante”, sublinha Terra. “Agora, a esperança está em um novo arcabouço fiscal que seja racional, preveja crescimento ­real dos gastos públicos e retire o investimento público da regra, permitindo seu aumento ao longo do tempo.” Assim, haveria um impulso público ao ânimo privado, sem o qual não existirá crescimento. “Não há solução fora do Estado.”

Passado e presente. O boom das commodities sustentou o crescimento no primeiro governo Lula. Agora, a crise tem feito o setor automotivo definhar – Imagem: Fiat Brasil e Wenderson Araújo/Sistema CNA/Senar

O professor da UFABC chama atenção para o fato de que o Brasil, entre 2004 e 2008, e mesmo em 2010, cresceu com alta taxa de juros, mas o contexto era outro. A partir de 2003, as commodities começaram a ir bem, a valorização real do salário mínimo se iniciou, o Bolsa Família se estruturou e ganhou uma dimensão importante e o emprego formal se expandiu. Em 2005, foram implantados os Projetos Prioritários de Investimentos (PPI) e com eles veio o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007. Naquele tempo, acrescenta Terra, não havia o teto de gastos, que ainda vale para 2023, a informalidade do trabalho não era endêmica como é hoje. As famílias não estavam tão endividadas e a guerra ao Estado não era tão brutal. A dispersão política existia, mas em proporções menores.

“As condições atuais de juros altos são muito diferentes daquelas da primeira década dos 2000, que também teve juros elevados. Naquele momento, as altas taxas foram menos impeditivas do que são hoje. Havia melhor expectativa empresarial e a demanda efetiva crescente, por conta de fatores externos e, sobretudo, locais, devido ao ganho de renda dos mais pobres”, sublinha Terra. Hoje, emenda o professor, é preciso construir boas expectativas, mas isso leva tempo e é mais difícil no tensionado contexto político, social e econômico atual. O juro Selic nas alturas é mais um elemento de desestímulo da atividade privada e o crescimento padece.

Um arcabouço fiscal rígido acrescentaria um segundo obstáculo ao crescimento

A persistir o poder absoluto do Banco Central sobre a economia, as perspectivas são desalentadoras. “O Brasil pode até crescer com essas taxas de juros, mas precisará fazer um esforço muito grande no lado fiscal, com o governo atuando fortemente como indutor da demanda e dos investimentos, elevando muito seus gastos. Como o teto de gastos é outra camisa de força, creio que o País, sem novas regras fiscais condizentes com o crescimento sustentável, não conseguirá crescer no cenário atual, mesmo que o governo aprove suas reformas e ponha em curso seus programas, como o novo PAC”, dispara o economista José Paulo Guedes Pinto, também da UFABC.

Não foi só no governo Lula que o ­País cresceu sob juros altos. O economista Felipe Macedo de Holanda, professor de Economia da Universidade Federal do Maranhão, ressalta que na primeira fase do Plano Real, entre 1994 e 1997, a ampliação da demanda por empréstimos e financiamentos internos e externos, decorrente da estabilização inflacionária, sustentou um breve período de crescimento, até que a contração do crédito e a explosão do endividamento público, conse­quências da políticas de juros reais elevados, jogaram o País na recessão e precipitaram um ataque especulativo, no início de 1999.

O quadro atual é complicado. “Os mais recentes indicadores do mercado de trabalho, do crédito e das expectativas dos consumidores apontam para preocupante perda de ritmo na atividade econômica ao longo deste ano, o que contribuirá para a deterioração da questão fiscal”, alerta Macedo de Holanda. Em contrapartida, é preciso considerar a ­possibilidade de obter financiamento externo a taxas razoáveis, a partir tanto da provável adesão do Brasil à Belt & Road Initiative, da China, quanto de fluxos vinculados ao avanço do governo Lula no combate ao desmatamento. Além da perspectiva, o PIB da agricultura e da pecuária pode crescer de modo significativo no primeiro semestre, por causa da supersafra. •

Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Prometeu acorrentado ‘

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