Economia
Projetos em choque
Publicação de funcionários públicos repele a necropolítica e a lógica sociopata de obra dos militares


Devido à sua abrangência e visão progressista, o livro O Brasil Pode Mais: Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável, publicado pela Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca) e lançado na segunda-feira 13, vem sendo considerado a primeira resposta cabal ao livro Projeto de Nação: Brasil 2035, produzido por militares próximos ao governo e lançado duas semanas antes. A Arca congrega 17 associações e sindicatos que reúnem funcionários públicos do IBGE, Ipea, Capes, CNPq, BNDES, Fiocruz, Inep e Funai, entre outras instituições do Estado. Os militares integram os institutos Sagres, Villas Boas e Federalista, organizações não governamentais.
Países opostos emergem das duas obras. Os funcionários públicos civis representados na Arca propõem, em 97 páginas, um Brasil soberano, sustentável, com dignidade para o trabalhador, os indígenas e as mulheres, enquanto os militares querem um país subalterno, com desregulamentação trabalhista, sujeição das áreas indígenas à exploração econômica e não mencionam as mulheres nas 93 páginas da sua publicação.
“O Projeto de Nação insiste na narrativa neoliberal de redução dos gastos públicos como estratégia de desenvolvimento. O fato de que nenhum país se desenvolveu seguindo esse receituário é simplesmente desconsiderado”, chama atenção o analista de planejamento e orçamento Márcio Gimene, presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento e um dos organizadores da publicação. Segundo essa narrativa da “fada da confiança”, diz, se o País não está crescendo e gerando empregos é porque falta privatizar mais algumas empresas estatais, comprimir ainda mais o gasto público, reduzir direitos trabalhistas e flexibilizar normas ambientais para atrair investimentos privados. Já o documento da Arca denuncia que o “necroliberalismo” vigente no Brasil precariza direitos e rebaixa salários, agravando a fome, a miséria, o desemprego, o desalento e as situações de trabalho análogas à escravidão. “O documento enfatiza que romper com essa lógica sociopata demanda a revogação de restrições fiscais autoimpostas, como o teto de gastos, pois essa regra impede que governos democraticamente eleitos promovam o desenvolvimento socialmente inclusivo, economicamente funcional e ambientalmente sustentável.”
A diferença profunda de perspectivas das duas obras é um divisor de águas. Enquanto o Projeto de Nação defende o bilateralismo, a grande propriedade agroexportadora, o prosseguimento da abertura comercial unilateral, a desestatização, O Brasil Pode Mais propõe a ampliação dos esforços de consolidação do bloco regional da América do Sul, o apoio aos agricultores familiares e pescadores artesanais, a reversão de medidas de liberalização comercial unilateral e a recuperação do papel das empresas estatais como instrumentos de promoção do aumento da competitividade setorial, entre outros pontos.
Nenhum país se desenvolveu com o receituário dos militares
“As propostas para o pilar social produzidas pela Arca buscam dialogar com o Brasil real, não com o país definido a partir das demandas do mercado ou de sua elite”, destaca a analista técnica de políticas sociais Ariana Souza, coordenadora institucional da Associação Nacional da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais (Andeps). Basicamente, as propostas para a Previdência, assistência social e saúde apontam para os marcos da Constituição de 1988. “Parece simples, mas não é. O que estamos assistindo, desde o governo Temer, é uma sucessão de ataques a qualquer ideia ou vestígio de um Estado com uma rede de proteção social minimamente construída”, dispara Souza.
O Estado brasileiro é, porém, forte e pode cada vez mais se modernizar, prossegue a especialista. “E isso serve muito para as políticas sociais, mais integradas, mais eficientes. Estudos da última década mostram que cada real investido nessas políticas tem efeito multiplicador ou, a longo prazo, impacta positivamente no desenvolvimento do País como um todo. Assim, essas propostas buscam fortalecer um Brasil emancipador e que investe em suas crianças, seus idosos, seus jovens.”
Fontes: Livros O Brasil Pode Mais: Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável, publicado pela Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável, e Projeto de Nação: Brasil 2035, produzido pelas ONGs militares institutos Sagres, Villas Boas e Federalista.
“Esse documento da Arca, elaborado fundamentalmente por servidores públicos civis de âmbito federal, pode ser considerado uma alternativa ao Projeto de Nação produzido pelos militares e amplamente divulgado pela mídia sem ter recebido praticamente nenhum contraponto à altura”, resumiu o economista José Celso Cardoso Jr., técnico de planejamento e pesquisa e organizador do livro. Os funcionários integrantes das entidades ligadas à elaboração da publicação são considerados parte da elite burocrática do Estado brasileiro, na medida em que todos ingressaram no serviço público por concursos, possuem, no mínimo, nível superior completo e atuam em áreas críticas do circuito de formulação, gestão e avaliação de políticas públicas federais.
A articulação da Arca começou em 2017, a partir da percepção de que “os grandes debates nacionais sempre tiveram, historicamente, a participação de servidores públicos, entre eles diplomatas, alguns economistas do Banco Central, do Banco do Brasil, que tomavam a frente da discussão e, no período mais recente, técnicos e dirigentes do Ipea”, ressalta Leandro Freitas Couto, analista de planejamento e orçamento e ex-presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor). “Concluímos que, naquele momento de ruptura e transição política, tínhamos de ocupar esse espaço para elaborar uma reflexão sobre desenvolvimento sustentável”, ressalta Couto.
Ao contrário da obra dos militares, elaborada por ONGs, o livro da Arca resulta de um fórum de 11 seminários de associações e sindicatos de funcionários das instituições do Estado acima mencionadas, realizados desde 2021 sob a coordenação da entidade. O livro dos militares insiste na narrativa de combate aos supostos “inimigos internos”, sugerindo que são “corruptos” e “radicais” todos aqueles que não compartilham a ideologia “conservadora evolucionista” que eles defendem. Já a publicação dos funcionários argumenta que “é necessário garantir que recursos intelectuais sejam empenhados nas áreas de contrainteligência, inteligência externa e econômica, em vez do combate ao suposto ‘inimigo interno’, que nada mais é do que tentar criar uma guerra política e ideológica de caráter fascista”.
Nas suas 93 páginas, o Projeto de Nação dos fardados nem sequer se lembra das mulheres
O livro O Brasil Pode Mais foi elaborado sob uma escalada de assédio institucional ao funcionalismo iniciada no governo Temer e pressões para aprovação da emenda constitucional para a reforma administrativa, que visa desconstruir o Estado. Uma das vítimas desse assédio foi o indigenista Bruno Pereira, licenciado da Funai para poder desempenhar o seu trabalho após o desmonte, pelos militares, do setor que cuidava da área de índios isolados. O desaparecimento de Pereira na Amazônia, desde o dia 5, em companhia do jornalista inglês Dom Phillips, era motivo de consternação geral entre os participantes do lançamento do livro, na segunda-feira 13. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Projetos em choque”
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