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Para o bolso dos patrões

A desoneração da folha das empresas é uma política cara e ineficiente

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Imagem: Claudio Vieira/PMSJC
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No fim de fevereiro, o presidente Lula cedeu à pressão do lobby empresarial e revogou um trecho da Medida Provisória 1.202/2023, que estabelecia o fim da desoneração da folha de pagamentos e estipulava a retomada da cobrança de tributos em 17 setores empresariais. Pressionado por lideranças parlamentares, o governo aceitou propor uma reoneração gradual desses segmentos por meio de um Projeto de Lei comum, sem validade imediata e que deve enfrentar um tortuoso percurso no Congresso.

Tal desoneração substituiu a contribuição previdenciária patronal de 20%, incidente sobre a folha de salários, por alíquotas de 1% a 4,5% sobre a receita bruta de cada empresa. Nos primeiros quatro anos do programa (2012-2015), essa renúncia tributária atingiu a cifra de 25 bilhões de reais, com impactos diretos sobre o financiamento da Previdência Social. Somente em 2023, a queda na arrecadação do governo federal foi de 9,2 bilhões.

Para justificar a benesse, convencionou-se afirmar que os setores beneficiados são os maiores geradores de empregos no País. O cenário desenhado pelos defensores da manutenção do programa é catastrófico. Com o fim da desoneração, dizem eles, poderiam ser fechados milhares de postos de trabalho até 2026. Haveria aumento do custo laboral e, com isso, cortes de profissionais qualificados. A produção desses setores entraria em estagnação. Os níveis de atividade poderiam regredir ao patamar de 2012.

De 2011 a 2021, houve redução de quase 700 mil postos de trabalho nos 17 setores beneficiados

Para se contrapor ao lobby dominante, há uma vasta literatura especializada sobre o assunto, destacando-se Takada et al. (2015), Dallava (2014), Do Carmo (2012), Baumgartner (2017), Garcia, Sachsida e Carvalho (2018), Freitas e Paes (2018), Hecksher (2023), entre outros. Todos esses estudos contêm pontos convergentes entre si, que podem ser sistematizados da forma que segue: a) a desoneração não gerou impactos positivos na formalização do mercado de trabalho e na realocação entre setores de atividades econômicas; b) não houve efeitos expressivos da política de desoneração sobre o conjunto do emprego formal no País; c) da mesma forma, não houve efeitos positivos, tanto para empregos quanto para salários, nos setores desonerados em função do produto; d) ao se avaliar o efeito de longo prazo da desoneração da folha, constatou-se que os níveis de crescimento do emprego ficaram muito aquém do esperado, ao mesmo tempo que a arrecadação previdenciária sofreu quedas sequenciais; e) em apenas dois setores (Call Center e Tecnologia da Informação) dos 17 beneficiados foram observados efeitos positivos mais significativos.

Dentre as principais conclusões desses estudos, podemos destacar: a) a falta de um critério uniforme para inclusão dos beneficiários, levando à inserção quase aleatória de setores sem qualquer estudo prévio; b) o modelo de desoneração implantado restringiu-se a poucos contribuintes, representando uma violação da equidade, uma vez que o custo desse benefício para o sistema público teve de ser suportado pelo conjunto da sociedade; c) a política adotada tornou o sistema tributário ainda mais regressivo, porque se trata de um tributo indireto e que incide sobre o consumo, penalizando mais as camadas de renda inferior da sociedade; d) o sistema de financiamento da Previdência Social sofreu desequilíbrios porque a renúncia impactou de forma negativa o resultado fiscal da União.

Durante o debate no Congresso sobre a prorrogação das renúncias fiscais, surgiu um importante estudo do pesquisador do Ipea Marcos Hecksher (2023). Utilizando dados da Pnad Contínua do IBGE, o autor observou que sete setores da economia eram responsáveis pela geração de 52,4% do total de trabalhadores ocupados em 2022, mas nenhum desses segmentos se beneficiava da política de desoneração da folha, fato que nega o principal argumento dos defensores da iniciativa. Nos 17 setores contemplados, o número de empregos com carteira assinada caiu de 22,4%, em 2012, para 19,7%, em 2022. Além disso, apenas 54,9% dos ocupados ­contribuíam para a Previdência, enquanto a média nacional era de 63,7%.

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego (Rais/MTE)

Visando contribuir com esse debate, elaborei o quadro acima com os dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, disponíveis até 2021. Inicialmente, é importante destacar que o ­porcentual de participação desses 17 setores no conjunto do emprego gerado no País caiu de 16,5%, em 2011, para 14,3%, em 2021. Em termos absolutos, verifica-se que ao longo da série temporal considerada ocorreu uma redução de 699.022 postos de trabalho, destacando que apenas seis dos 17 setores desonerados elevaram seus níveis de emprego em 2021, comparativamente ao primeiro ano da série histórica analisada.

Na sequência, elencamos a quantidade­ de postos de trabalho perdida nos 11 setores que diminuíram o nível de emprego: calçados (-68.153), confecções e vestuário (-170.431), construção civil (-403.118), construção e obras de infraestrutura (-250.037), couro (-86.989), fabricação de veículos e carrocerias (-101.096), jornalismo e radiodifusão (-17.445), máquinas e equipamentos (-19.039), têxtil (-35.642), projetos de circuitos integrados (-11.369) e transportes rodoviários coletivos (-161.892). Ao todo, esses 11 setores tiveram uma redução de 1.325.211 postos de trabalho.

Na prática, os empregos gerados no período tiveram uma concentração expressiva em apenas três setores desonerados: Call Center, Tecnologia da Informação e Transportes Rodoviários de Cargas. Pode-se concluir, portanto, que a política de desoneração não teve impacto significativo no mercado de trabalho, não promoveu a expansão da formalidade e tampouco estimulou a realocação da mão de obra entre os diversos setores da economia. Foi eficiente, contudo, para transferir renda aos donos das empresas dos setores beneficiados, que devem figurar no topo da pirâmide social brasileira. •


*Professor titular do curso de Economiae do programa de Pós-Graduação em Administração da UFSC. Coordenador- geral do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (Necat/UFSC) e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (Oppa/UFRRJ). Versão resumida do Texto para Discussão 57/2024 do Necat. E-mail: l.mattei@ufsc.br.

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Para o bolso dos patrões’

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