Economia

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Os (des)encantos da privatização

A venda de estatais desarticulou a governança da economia e seus efeitos sobre a eficiência não se concretizaram

Não espanta que a indústria prossiga em seu calvário, golpeada por concepções encharcadas de besteirol e ignore o legado de Simonsen - Imagem: Carlos Jasso/AFP e Arquivo/FEA-USP
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O jornal Folha de S.Paulo dispôs-se a brindar seus leitores com uma série de matérias que celebram as consequências econômicas benfazejas dos programas de privatização dos últimos 30 anos.

Em respeito à liberdade de opinião, mas no exercício da divergência, reivindicamos, neste espaço concedido por ­CartaCapital, o direito de exercitar a ­crítica democrática. Assim, pedimos passagem para iniciar a polêmica com a apresentação de um gráfico que ilustra o ­desempenho da economia brasileira nas últimas décadas.

O gráfico representado na página 40 aponta a derrocada “desindustrializante” da economia dos Tristes Trópicos nas últimas três décadas, período celebrado pelas matérias da nossa Folha de S.Paulo. Cumpre-nos, no entanto, avançar além dos dados e indagar as razões de tal desempenho. Arriscamos algumas hipóteses.

O setor produtivo estatal – num país periférico e de industrialização tardia – funcionava como um provedor de externalidades positivas para o setor privado: 1. O investimento público era o componente “autônomo” da demanda efetiva (sobretudo nas áreas de energia e transportes) e corria à frente da demanda corrente. 2. As empresas do governo ofereciam insumos generalizados (energia, aço, não ferrosos) em condições e preços adequados. 3. Começavam a se constituir – ainda de forma incipiente – em centros de inovação tecnológica. A celebrada Embrapa nasce dessa concepção de desenvolvimento.

O sistema de bancos públicos e os programas de crédito dirigido dos bancos privados garantiam o abastecimento de recursos para o setor privado, aí incluído o financiamento de capital de giro para as pequenas e médias empresas. O crédito de longo prazo para a infraestrutura e para o investimento industrial era provido a taxas subsidiadas pelo então BNDE. O Finame sustentava o financiamento para a comercialização de bens de capital.

Na essência, os argumentos do conservadorismo continuam a ser uma embolada de preconceitos

As críticas à industrialização brasileira não mudaram, desde os liberais-escravistas do Jeca Tatu de Monteiro ­Lobato até os contemporâneos Cosmopolitas ­Jecas que imaginam perfilhar as recomendações da dita Ciência Econômica. Na essência, os argumentos do conservadorismo oligárquico caboclo – outrora ancorado na propriedade da terra, hoje na finança – continuam os mesmos: uma embolada de preconceitos, combatidos por brasileiros como Roberto Simonsen nas décadas de 1920, 30 e 40.

Não espanta que a indústria manufatureira prossiga em seu calvário, golpeada por concepções que orientaram as políticas econômicas encharcadas de besteirol pretensamente informado. Foi devastador o “desmanche” da estrutura produtiva criada ao longo das cinco décadas inauguradas nos anos 30 do século XX. Depois de liderar, até meados dos anos 1970, a “perseguição” industrial entre os países ditos periféricos, com forte atração de investimento direto na manufatura, o Brasil caiu para a Série B do torneio global das economias “emergentes”.

A participação da indústria de transformação no PIB caiu de 27,3%, em 1984, para 11,3%, em 2018. O leitor poderá comparar o índice brasileiro com dados da ONU para países como China (43,1%), Coreia (30,4%) ou mesmo Alemanha (20,8%). A derrocada da indústria brasileira é comparável à trajetória dos Estados Unidos, nação desenvolvida que mais se desindustrializou durante a chamada globalização. Lá, a indústria pesa 13,4% no PIB. Essa queda é natural quando decorre dos ganhos de produtividade obtidos ou difundidos pelo crescimento da indústria, como ocorreu em países de industrialização madura. Mas não foi o que se observou no Brasil.

Fonte: IBGE. Elaborado por Paulo Morceiro para o blog Valor Adicionado

A decepção popular com as experiências de privatização contamina gregos e troianos, países ditos adiantados e outros nem tanto. A experiência privatista revela suas entranhas: os capitais desejam ardentemente adquirir empresas produtoras de serviços públicos, primeiro para realizar formidáveis ganhos de capital no momento das aquisições, depois para abocanhar a renda monopolista.

Os ingleses, por exemplo, privatizaram o abastecimento de água e os transportes interurbanos. Num e noutro caso, as tarifas subiram muito rapidamente. Em algumas cidades inglesas, as tarifas de água tornaram-se abusivas. O serviço? Uma droga. Os lucros naturalmente aumentaram de forma explosiva. No caso dos ônibus interurbanos na ­Inglaterra, além da brutal elevação de tarifas, os concessionários privados simplesmente fecharam as linhas menos rentáveis, deixando muitos ingleses sem transporte.

Em editorial recente, o jornal inglês The Guardian proclamou:

A privatização é o deus que falhou.

“Como objeto de adoração, essa divindade tem se mostrado cara para o público e uma bonança para relativamente poucos investidores, muitas vezes no exterior. E em áreas-chave, como a habitação popular, provou ser um desastre singular. No entanto, notavelmente, ainda é a solução preferida de qualquer governo conservador para tudo, desde o Royal Mail até casas populares. Talvez os especialistas da tevê que falam sobre as greves ferroviárias desta semana poderiam direcionar parte da sua ira não para os trabalhadores, mas para os proprietários e políticos que criaram tal bagunça de um sistema marcado por serviço de má qualidade, aproveitamento abusivo e uma completa falta de responsabilidade.”

Claudio Bravo, goleiro do Manchester City e da seleção chilena, usou o Twitter para manifestar seu apoio aos protestos que inundaram seu país. Bravo descascou a mexerica: “Privatizaram nossa água, luz, gás, educação, saúde, previdência, medicamentos, estradas, jardins, o deserto do Atacama, o transporte. Falta alguma coisa ou foi demais? Não queremos um Chile para poucos, queremos um Chile de todos”.

O jornal chileno La Nación admite que há certo consenso a respeito das razões dos protestos. Eles respondem a uma percepção generalizada em torno de temas que têm sido objeto de intensos debates nos últimos anos no país: a precariedade do sistema de aposentadorias, o alto valor dos medicamentos e as sucessivas elevações das tarifas de energia.

Em meio a uma revolução tecnológica, o País foi empurrado para uma inserção desastrada

Depois da bem-sucedida estabilização de 1994, os “reformistas liberais” brasileiros apoiaram sua estratégia em cinco pontos: 1. A estabilidade de preços criou condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado. 2. A abertura comercial imporia disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade. 3. As privatizações e o investimento estrangeiro removeriam os gargalos de oferta na indústria e na infraestrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência. 4. A liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia “poupança externa” em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente. 5. O gotejamento da renda promovida pela acumulação de riqueza nas camadas superiores – auxiliada pela ação das políticas sociais “focalizadas” – seria a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade e eliminar a pobreza.

Na verdade, a privatização desarticulou um dos mecanismos mais importantes de governança e de coordenação estratégica da economia brasileira. Os celebrados efeitos da privatização sobre a eficiência da economia não se concretizaram. Senão vejamos: 1. As tarifas e preços das empresas privatizadas produziram um aumento expressivo dos custos dos insumos de uso generalizado. 2. O investimento em infraestrutura passou a correr atrás da demanda, gerando gargalos e pontos de estrangulamento. 3. As grandes empresas “exportaram” seus departamentos de P&D e os escritórios de engenharia reduziram dramaticamente seus quadros. 4. Iniciativas importantes, como o Centro de Pesquisas da Telebras, foram praticamente desativadas.

Na visão binária dos liberais, Estado e Mercado deixam de ser instâncias constitutivas do capitalismo enquanto sistema histórico de relações sociais e econômicas e passam a representar alternativas abstratas de organização da sociedade. “Como o senhor prefere, mais Estado ou mais Mercado?” Desconfio que algumas teorias serviriam melhor como um guia de instruções para garçons de restaurantes baratos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os (des)encantos da privatização “

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