Cultura

O veto à Lei Paulo Gustavo: para onde vai, afinal, o dinheiro da cultura?

A proposta foi cuidadosamente concebida para atender ao atual arcabouço fiscal. É fundamental contar com o Congresso para restabelecer o interesse público, fazer justiça e derrubar o veto

Ministro da Economia, Paulo Guedes, durante cerimônia de posse. Gustavo Raniere/MF Ministro da Economia, Paulo Guedes, durante cerimônia de posse.
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A Lei Paulo Gustavo foi concebida para aliviar os efeitos da pandemia que afetam com grande intensidade o setor cultural. Os R$ 3,8 bilhões previstos pela proposta apoiariam a retomada do setor, com elevado efeito multiplicador da renda, provocando, inclusive, um aumento da arrecadação pública.

Do total de ocupados do País no ano de 2019, quase 6% (cerca de 5,5 milhões de pessoas), atuavam no setor cultural, cuja economia no mesmo ano equivalia a quase 2,7% do PIB nacional. Durante a pandemia, ambos os números despencaram,  com exceção do período de execução da Lei Aldir Blanc.

A Lei Paulo Gustavo, trata de despesas emergenciais, relacionadas aos efeitos da pandemia.Foi cuidadosamente concebida para atender ao atual arcabouço fiscal. Neste sentido, tais gastos cumprem os requisitos constitucionais para créditos extraordinários, seguindo o entendimento do próprio governo que, ao longo de 2021, editou Medidas Provisórias para combater a pandemia e seus impactos, mesmo sem a cobertura do Decreto de calamidade.

Créditos extraordinários não são computados no teto de gasto, de modo que este não constitui um obstáculo à lei. Ainda que o governo mudasse seu entendimento sobre a edição de Medidas Provisórias, seria plenamente factível incorporar as despesas da LPG ao limite do Teto de Gastos, desde que cancelasse outra despesa sujeita ao teto. Um excelente candidato para tanto seriam as emendas de relator. 

O imaginário de que o Estado não dispõe de recursos suficientes serve apenas para legitimar a austeridade seletiva

Ainda sobre a questão anterior, convém lembrar que a EC 95, que institui o teto, não exige que proposições legislativas apontem uma fonte de compensação pelo aumento da despesa. Logo, não é razoável justificar o veto por essa razão. Se assim fosse, o veto não teria sido por contrariedade ao interesse público e sim por inconstitucionalidade, já que trataria-se então de uma violação a uma Emenda Constitucional. A propósito, a compensação pelo aumento de despesa é requerida apenas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, mas para despesas obrigatórias de caráter continuado. Portanto, o dispositivo não se aplica à LPG, que é um gasto emergencial e, portanto, não continuado.

Outro apontamento do governo é que, ao adicionar uma exceção à meta de resultado primário, se incorreria em compressão de outras despesas discricionárias, que, além disso, se encontrariam em níveis criticamente baixos. Esse argumento carece de lógica, pois a Lei Paulo Gustavo, na verdade, alivia as despesas discricionárias, já que não “compete” com elas. Portanto, a LPG não tira recursos nem pressiona gastos com saúde, educação, Santas Casas, agronegócio ou investimentos públicos. Pelo contrário, uma vez que a LPG dispõe que transferências federais emergenciais no setor cultural não são computadas na meta de resultado primário (receita menos despesa, exceto os juros). 

Se não são computadas na meta, por definição, não a pressionam. Por sinal, o dispositivo aproximaria o Brasil das regras fiscais modernas adotadas em diversos países, que descontam o impacto de gastos extraordinários e não recorrentes da meta de resultado fiscal. 

Ademais, observando-se o último relatório de avaliação de receitas e despesas, o próprio governo admite que a estimativa de déficit primário para 2022 caiu R$ 9,2 bilhões. Portanto, caso a despesa da LPG fosse hipoteticamente computada na meta de primário, não haveria qualquer dificuldade em absorvê-la. A rigor, considerando a meta de primário definida na Lei de Diretrizes Orçamentárias, há mais de R$ 100 bilhões de espaço na meta de resultado primário.

A terceira restrição seria a regra de ouro, que impede emissão de dívida pública para financiar despesas correntes. O governo afirma que a LPG poderia agravar as condições para cumprimento da regra. Primeiro, o excesso de arrecadação do governo, no cenário de elevada inflação e subida dos preços do petróleo, lhe dá capacidade de utilizar receitas primárias, sem necessidade de emitir dívida. 

O Tesouro também dispõe do superávit financeiro de diversas fontes, que consiste de recursos não utilizados em exercícios anteriores, creditados na Conta Única do Tesouro. O ponto central é que o governo passou a utilizar, após a aprovação da “PEC emergencial” (EC 109/2021), superávit financeiro dos fundos públicos para atender a pressões financeiras e amortizar a dívida pública. Em particular, os recursos do Fundo Nacional de Cultura – FNC passaram a ser desvinculados de suas finalidades legais, inclusive a CONDECINE, uma CIDE paga pela própria cadeia do audiovisual e que deve ser reinvestida no setor, numa temerária ação de constitucionalidade duvidosa. 

Neste contexto, ao apontar como fonte de recursos o superávit financeiro do FNC, isto é, recursos direcionados ao FNC que não foram utilizados ao longo dos anos, a Lei Paulo Gustavo pode ser lida como ressarcimento ao setor cultural dos recursos vinculados ao FNC, mas que foram desviados para o mercado financeiro a partir da EC 109/2021.  Inclusive, mais de R$ 1 bilhão do FNC foi mantido em reserva de contingência em 2021 e 2022, numa manobra para gerar artificialmente mais superávit financeiro para poder ser utilizado depois na amortização da dívida pública. Para “devolver” o dinheiro da cultura, o governo também dispõe de fontes de livre aplicação. A propósito, o dogma do “Estado quebrado” não tem amparo nos dados. Afinal, a reserva de liquidez do Tesouro supera R$ 1 trilhão, sendo que parcela deste valor é composta por fontes não vinculadas, que podem ser utilizadas para custear a LPG. Sendo assim, não há qualquer necessidade de emitir dívida e a regra de ouro não é uma restrição. 

O Brasil tem um dos mais rígidos arcabouços fiscais do mundo. Ainda assim, a LPG foi construída de maneira a atender a essas regras. Superada a restrição fiscal e financeira, resta o verdadeiro obstáculo à LPG: a oposição política e ideológica do governo federal a um setor fundamental à vida social e econômica do país e responsável por nos definir como brasileiros. 

Tal oposição se manifesta na fala de que seria possível transferir recursos da LPG para Santas Casas e o agronegócio. Esse tipo de declaração prova que a única política cultural do atual governo é a chamada “guerra cultural”, em que tenta sempre jogar a opinião pública contra os artistas e o setor cultural como um todo. Não há, contudo, qualquer relação entre os recursos da LPG e as demandas de outros setores. Primeiro, porque a LPG deveria ser financiada pelo dinheiro do Fundo Nacional de Cultura, que não pode ser utilizado em outras áreas. Segundo, caso o governo utilize outras fontes para “ressarcir” a retirada de recursos da cultura, não há qualquer restrição de liquidez ao Tesouro para financiar despesas emergenciais, adicionais ao orçamento atual e não sujeitas às regras fiscais, de modo que a LPG não fecha o espaço no orçamento para outros gastos. 

O imaginário de que o Estado não dispõe de recursos suficientes serve apenas para legitimar a austeridade seletiva, aplicando os controles fiscais conforme a conveniência política, especialmente sobre aqueles setores representados como “inimigos” no discurso oficial.     

Neste contexto, é fundamental contar com o Congresso Nacional para restabelecer o interesse público, fazer justiça e derrubar o veto à Lei Paulo Gustavo. O setor cultural não pode receber do Estado apenas insultos, perseguição e censura, e o Congresso tem condições de mudar isso. O dinheiro da cultura pertence à cultura.

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