Economia

O ralo invisível do saneamento

Por trás das metas de universalização, há um sistema que canaliza recursos públicos e tarifas para remunerar o capital financeiro

O ralo invisível do saneamento
O ralo invisível do saneamento
Pessoas caminham em rua com água de esgoto de Guará, a 20 km de Brasília. (Foto: Evaristo Sá/AFP)
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Ao longo das últimas duas décadas, as políticas públicas de saneamento foram objeto de intensas disputas. Essas batalhas se refletiram na aprovação do Marco Legal do Saneamento Básico (2007, no segundo mandato de Lula), do Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab (2013, no governo Dilma) e, posteriormente, na criação do Novo Marco Legal do Saneamento (2020, no governo Bolsonaro). Cada marco revelou uma mudança de orientação: do protagonismo estatal à aposta em mercados competitivos e na crença de que apenas o setor privado seria capaz de destravar os investimentos, em meio à crise fiscal.

Menos debatida, porém, é a questão sobre o destino dos investimentos efetivamente realizados num cenário em que as grandes empresas de saneamento, públicas e privadas, passaram a ser guiadas por interesses financeiros e pela lógica de geração de valor a seus acionistas.

Esse modelo de gestão, que ganhou força nos Estados Unidos nos anos 1980 com a ascensão dos investidores institucionais e das práticas de governança corporativa, redefine o papel das empresas: a administração passa a ser pautada pelo valor de suas ações, símbolo do julgamento dos mercados sobre sua performance. O lucro de curto prazo e a valorização acionária passam a se sobrepor aos objetivos estratégicos de longo prazo — reforçados, sobretudo, por sistemas de remuneração executiva atrelados ao desempenho financeiro.

A consequência é conhecida. As empresas se concentram em seu core business, cortam custos fixos, terceirizam atividades e ampliam a alavancagem financeira para sustentar o pagamento de dividendos. Práticas como recompras de ações tornam-se comuns, impulsionando dinâmicas especulativas. Assim, cresce a remuneração dos executivos, amplia-se a distribuição de lucros e os investimentos produtivos encolhem, com impactos severos sobre a economia ‘real’.

No Brasil, essa lógica se dissemina nos anos 1990, acompanhando a abertura financeira, a expansão dos mercados de capitais e as privatizações. Mesmo sob governos progressistas, ela se mantém e redefine estratégias estatais e empresariais. No setor de saneamento, a financeirização já domina tanto as companhias públicas quanto as privadas, especialmente após o Novo Marco Legal de 2020.

Entre 2017 e 2024, a Sabesp dobrou seu endividamento, alcançando 25,3 bilhões de reais, e mais que triplicou a distribuição de dividendos, que chegou a 2,6 bilhões de reais. No mesmo período, os investimentos passaram de 3,4 bilhões de reais para 6,9 bilhões de reais. Em 2024, para cada 1 real investido em saneamento, a companhia contraiu 3,65 reais em dívida e destinou 37 centavos a acionistas. A remuneração da alta direção também triplicou, saltando de 4,4 milhões de reais para 12,5 milhões anuais.

Na Copasa, outra empresa financeirizada, o cenário é ainda mais vantajoso para os acionistas. Em alguns anos, o montante distribuído em dividendos supera os investimentos em saneamento. Em 2024, para cada 1 real aplicado, 41 centavos foram destinados aos acionistas e 2,79 reais transformados em endividamento. Entre 2017 e 2024, a remuneração da alta administração passou de 5,3 milhões de reais para 10,3 milhões por ano.

Na Aegea, gigante privada em rápida expansão, os investimentos variam conforme a aquisição de novas concessões e o estágio da infraestrutura. Em 2024, para cada 1 real investido, 18 centavos foram distribuídos a acionistas e 4,39 reais registrados como dívida. A remuneração de dirigentes e conselheiros triplicou, saltando de 45,5 milhões de reais para 154,4 milhões anuais.

Segundo o Instituto Trata Brasil, os investimentos totais em saneamento básico no país foram de 13,6 bilhões de reais (2021), 22,5 bilhões de reais (2022) e 25,6 bilhões de reais (2023). Comparando-se esses valores com o que Sabesp, Copasa e Aegea destinaram a acionistas e dirigentes, chega-se a margens de 12,4%, 8,8% e 11,2% — ou seja, cerca de 10% de todo o investimento nacional em saneamento foi convertido em remuneração financeira.

E isso sem considerar o custo do dinheiro tomado, embutido no endividamento e remunerado com os juros mais altos do planeta.

universalização do saneamento é um dos maiores desafios para reduzir desigualdades e garantir dignidade no Brasil. Os mercados financeiros podem ser aliado nessa empreitada, desde que sirva às empresas e à sociedade, e não o contrário. É urgente fechar esse enorme ralo financeiro que se alarga a cada ano, para que as finanças voltem a servir ao saneamento — e não drená-lo.

[Este artigo foi publicado antecipadamente no Boletim de Economia de CartaCapital, conteúdo exclusivo para assinantes. Assine para ter acesso a análises inéditas e aprofundadas sobre economia, política e desenvolvimento nacional]

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