Economia
O Leão atrás do filé
As propostas do governo para remodelar o Imposto de Renda, taxar os mais ricos e combater a desigualdade tributária


Davos, nos Alpes suíços, recebeu nos últimos dias mais uma edição do Fórum Econômico Mundial, o convescote anual de empresários, banqueiros e políticos. Como de costume, vieram a público números inconvenientes para a elite financeira global. A concentração de renda no planeta é absurda. Os cinco mais ricos detêm 869 bilhões de dólares, cerca de 4 trilhões de reais. O quinteto dobrou o patrimônio conjunto desde a pandemia da Covid-19, ao mesmo tempo que 5 bilhões de seres humanos empobreceram. No ritmo atual, em uma década surgirá o primeiro trilionário, e o favorito é o sul-africano naturalizado norte-americano Elon Musk, de 52 anos, no topo da lista (245 bilhões de dólares em patrimônio). A miséria persistirá no mapa por 229 anos.
A Oxfam, ONG defensora da justiça tributária e responsável por compilar os dados, diz que “a desigualdade não é acidental”, mas resultado da ação de grandes corporações em favor de seus donos e sócios. Tradução: as empresas usam subterfúgios jurídicos, ameaças econômicas e pressões políticas para proteger o próprio cofre e o bolso dos acionistas contra os impostos. A ONG reuniu números constrangedores, em particular para a pátria vice-campeã em concentração de renda no 1% mais rico em um ranking de 2019 da ONU. Os cinco maiores bilionários do Brasil enriqueceram 50% desde a pandemia, enquanto 129 milhões de conterrâneos ficavam mais pobres. À frente da fila figuram Vicky Safra, de 71 anos, viúva do banqueiro Joseph Safra, com fortuna (87 bilhões de reais) equivalente àquela dos bens somados de 107 milhões de brasileiros.
“Para entender a pobreza, devemos olhar para a base da pirâmide social, mas, para entender a desigualdade de renda, é preciso olhar para o topo, para os ricos.” É o que afirma a introdução de um livro lançado no fim do ano passado com o título Os Ricos e os Pobres – O Brasil e a Desigualdade. Seu autor, o sociólogo Marcelo Medeiros, professor visitante na Universidade Columbia, de Nova York, considera que, se há algum problema de “produtividade” na economia nativa, a culpa é dos donos do dinheiro, não dos trabalhadores. Uma maneira elegante de chamar a “elite” local de ociosa e rentista.
“É fundamental uma reforma na tributação sobre os ganhos”, diz Guilherme Mello, secretário de Política Econômica
A vida mansa dos privilegiados foi exposta no crepúsculo de 2023 pelo Ministério da Fazenda, em uma análise do Imposto de Renda entregue por 38 milhões de contribuintes no ano passado. Os 10% mais ricos concentram 51% da renda e 58% da riqueza. Os 5% abocanham 40% e 49%, respectivamente. E o 1%, clube de 380 mil cidadãos, apropria-se de 24% da renda e de 32% da riqueza. Não se trata de constatações inéditas: a brutal desigualdade nacional volta e meia é retratada em pesquisas. A diferença: embora tenha sido publicado sem alarde, o documento servirá de base para o governo tentar levar adiante uma promessa eleitoral do presidente Lula. “O relatório mostra por que é fundamental uma reforma na tributação sobre a renda no Brasil. A melhora da distribuição de renda depende do fim da regressividade da nossa estrutura tributária. Vamos mandar uma proposta de reforma ao Congresso”, diz Guilherme Mello, secretário de Política Econômica.
Além de promessa de campanha, a mudança na taxação da renda foi apontada pela reforma tributária de dezembro passado como passo seguinte. Aquela reforma mexeu nos impostos indiretos, incidentes no comércio de bens e serviços. O objetivo era simplificar a legislação, uma miscelânea municipal, estadual e federal. A baderna legal era uma das razões para o Brasil ter o sexto pior sistema tributário, entre 190 nações examinadas pelo Banco Mundial em 2020. Na reforma inserida na Constituição em 20 de dezembro está determinado que o governo mandaria ao Parlamento em até três meses um projeto de mudança na taxação da renda. O relatório da Fazenda saiu nove dias depois da inserção.
Os técnicos da área econômica têm desenhado alternativas de reforma a partir de certas premissas. Uma: nosso sistema é regressivo (quem ganha mais paga proporcionalmente menos). Outra: trabalhador sofre mais que os patrões. Mais: pequenas empresas são mais oneradas do que as grandes. Há ainda o contexto global. Neste ano, começa a valer um Imposto de Renda mínimo de 15% sobre multinacionais. É o resultado de um acordo de 2021 selado na OCDE, organização dos países desenvolvidos e aspirantes. A taxação depende de leis nacionais. Pelo acordo, se a nação onde opera um conglomerado não aplicar a alíquota mínima, o país da matriz cobrará a diferença. Caso uma companhia japonesa atuante na Irlanda recolha 8% ao Leão irlandês, por exemplo, o Fisco do Japão poderá cobrar outros 7%. Uma forma de combater a opção empresarial por paraísos fiscais.
Palco. Lula espera avançar no G-20 com a agenda da igualdade. Guimarães diz que há clima no Congresso para mudar o IR – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Marina Ramos/Ag. Câmara
A Fazenda tem em estágio avançado uma proposta sobre a taxação mínima tanto de grandes grupos estrangeiros quanto de multinacionais brasileiras. A ideia, segundo CartaCapital apurou, é acabar com a possibilidade de os estrangeiros reduzirem artificialmente o lucro ao descontarem certas quantias, como incentivos fiscais. É a mesma lógica por trás de estudos a respeito de mudanças no IR das pessoas jurídicas em geral: as grandes conseguem diminuir o lucro para pagar menos tributos, graças a regimes especiais. Hoje, a taxação do lucro empresarial é de 34%, a soma do IR e da CSLL, mas se trata de um nível teórico. Na prática, os abatimentos levam a algo mais perto de 20% ou 25%, segundo técnicos da Fazenda. É outra situação a ser enfrentada por uma proposta em gestação, quem sabe eliminar todos os regimes especiais e unificar a taxação das PJs em 25%.
O Congresso de maioria direitista aprovará a lei contra multinacionais, uma proposta mais madura na equipe econômica? Desde novembro, o Brasil comanda o G-20, bloco das maiores economias do planeta. É uma arena que o governo usará para defender bandeiras como o combate à fome e à pobreza, o crescimento econômico com distribuição de renda e, também, uma tributação mais justa e progressiva. O comando será exercido até novembro, quando haverá uma reunião de cúpula de chefes de Estado e governo no Rio de Janeiro.
A equipe econômica espera que o contexto internacional contribua no avanço de uma proposta bem mais delicada: voltar a cobrar Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos a sócios de empresas. A taxação existiu até 1995. Era de 15%. Seu fim talvez seja o maior responsável pela vida boa fiscal do 1% mais rico. Aquela análise da Secretaria de Política Econômica apurou que o IR pago efetivamente pelos 380 mil privilegiados, ao se considerar a renda total obtida, foi de 4% no ano-base de 2022. Menos do que o desembolsado por contribuintes sem a mesma receita (o pico efetivo foi de 11%). A regressividade começa a vigorar para os 6% do topo (2,2 milhões de contribuintes), controladores de metade da riqueza nacional.
Na mesa, a volta da cobrança de IR sobre lucros e dividendos, abolida em 1995
Em agosto passado, o Sindifisco, sindicato dos auditores fiscais, divulgou relatório semelhante, com base no IR de 2022, declarado por 36 milhões de brasileiros. Um terço de toda a renda do ano-base 2021 tinha sido de 4,3 trilhões de reais e que 1,5 trilhão era isenta. Com base nesses números e na estimativa de agora da Fazenda de que 35% da renda isenta é oriunda de lucros e dividendos, estes somariam cerca de 500 bilhões anuais. Voltar a taxar tal bolada com 15% renderia aos cofres públicos 75 bilhões por ano, mais ou menos metade sairia do bolso da turma do 1%. Pelos dados do Sindifisco, esse 1% é formado por quem ganha mensalmente acima de 60 salários mínimos (66 mil reais no ano-base 2021, 84 mil reais agora).
Nos planos do governo, os recursos da taxação dos dividendos permitirão dar o próximo passo na justiça tributária: cobrar menos imposto dos trabalhadores. Na campanha, Lula prometeu subir a isenção de IR da pessoa física para 5 mil reais. Em 2023, houve uma ampliação inicial (de 1,9 mil para 2,6 mil). O cumprimento da promessa eleitoral significará redesenhar toda a tabela do IR: suas faixas e alíquotas (estas vão hoje de 7,5% a 27,5%). Na equipe econômica, fala-se de uma alíquota máxima de 35%. Ao taxar mais o topo da pirâmide haverá espaço (é o que se acredita na equipe econômica) para mudar a composição do bolo tributário e torná-la mais parecida com o que há na Europa, por exemplo. Lá, metade da arrecadação nasce da taxação da renda e um terço, da tributação do consumo. Aqui é o contrário, o que é pior para que tem menos dinheiro e precisa gastá-lo inteiramente com a própria sobrevivência.
A reforma tributária de dezembro passado, restrita à taxação do consumo, trouxe uma medida capaz de promover alguma justiça tributária, mesmo com a preservação de uma alta taxação do comércio de bens e serviços. Está prevista a devolução do imposto pago por cidadãos de baixa renda. Isso pode ser feito por meio do chamado cashback, experiência bem-sucedida no Equador e no Uruguai. Por aqui, vai depender de uma lei que começará a ser desenhada nos próximos dias pela equipe econômica e que poderá definir, entre outras, uma lista de itens da cesta básica que dá direito ao comprador de ser reembolsado pelos tributos.
Embora haja vários estudos e planos na Fazenda para a reforma da tributação da renda, o tema é visto como sensível politicamente, por causa do Congresso direitista, das eleições municipais de outubro e da capacidade da oposição de influenciar o debate público via redes sociais. Por isso, não há certeza quanto ao envio de um pacote completo ao Parlamento no prazo de 90 dias definido na reforma de dezembro. Talvez haja um fatiamento, com o envio inicial daquela taxação mínima de 15% das multinacionais, com o debate sobre lucros e dividendos deixado para depois. Vai depender de uma avaliação política do governo.
“Defendo que o governo envie a proposta, há condições de aprová-la. Temos de aproveitar este momento”, diz o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE). Em 2023, os parlamentares aprovaram cobrar IR dos lucros de offshores (negócios no exterior) e de fundos exclusivos (internos), uma proposta do governo. Também mudaram o “tribunal dos impostos”, o Carf, para que o empate em um julgamento não mais favoreça o caloteiro. E, na reforma tributária, autorizaram a taxação de jatinhos e iates com IPVA, ideia surgida no Legislativo. “O Haddad fez um minirrevolução tributária. Taxar lucros e dividendos coroaria isso”, afirma um vice-líder governista, Alencar Santana (PT-SP). Será? •
Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Leão atrás do filé ‘
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.