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O fosso se aprofunda

O avanço da desigualdade, no Brasil e no mundo, só reforça a necessidade de um sistema tributário mais justo

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O país da fila do osso ostenta 284 bilionários na lista da Forbes - Imagem: iStockphoto
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As perspectivas para a maior parte da população mundial são desalentadoras. No ano passado, o Banco Mundial reconheceu que “o avanço global na redução da pobreza extrema foi interrompido” e não seria mais possível cumprir a meta de erradicar a miséria até 2030. O FMI, por sua vez, prevê que um terço das nações estará em recessão em 2023. Pela primeira vez, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, conhecido pela sigla Pnud, constatou que o Índice de Desenvolvimento Humano está em queda em nove de cada dez países. Dedicada ao combate das desigualdades, a Oxfam estima que 1,7 bilhão de trabalhadores em todo o mundo viram a inflação ultrapassar seus salários em 2022. Endividados, os governos nacionais planejam cortes brutais nos gastos públicos.

Uma ínfima minoria não tem, porém, do que se queixar. Nos últimos dois anos, o 1% mais rico amealhou quase dois terços de toda riqueza gerada no período – seis vezes mais que os 7 bilhões de indivíduos que compõem os 90% mais pobres da humanidade. As fortunas bilionárias não param de crescer. Aumentam, em média, 2,7 bilhões de dólares por dia. Sempre disputando as primeiras colocações nos rankings de desigualdade, o Brasil passou a ostentar 284 bilionários na lista da revista Forbes em 2022. No reino da fila do osso, com 33 milhões de cidadãos passando fome, os 3.390 brasileiros mais ricos – o equivalente a 0,0016% da população – detêm 16% de toda a riqueza do País, mais do que 182 milhões de compatriotas (85% do total), segundo dados do Credit Suisse.

Os dados mencionados figuram no relatório A Sobrevivência do Mais Rico, publicado pela Oxfam no domingo 15, às vésperas da chegada do ministro da Fazenda brasileiro, Fernando Haddad, ao Fórum Econômico Mundial, em Davos. A ONG britânica, com representação em outros 20 países, insta os governos a aumentar a tributação dos bilionários e multimilionários, para que os Estados tenham condições de financiar suas políticas públicas. A ideia é assegurar que o 1% mais rico pague tributos de ao menos 60% sobre a sua renda, decorrente tanto do trabalho quanto de investimentos de capital. Para tanto, acrescenta a Oxfam, seria necessário dobrar a alíquota média do Imposto de Renda, de apenas 31% para os mais ricos em cem países, e quadruplicar a alíquota sobre ganhos de capital, de apenas 18%, em média, em 123 países.

Nesse quesito, o Brasil é campeão em injustiça fiscal. Em 2021, a carga tributária correspondia a 33,9% do PIB, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, um valor próximo à média dos países da ­OCDE (34%), de economia mais avançada. Os impostos incidentes sobre o consumo de bens e serviços são, porém, bem mais pesados por aqui. Representaram 43% dos 2,9 trilhões de reais arrecadados. O porcentual é bem superior ao da OCDE, de 33%. Na tributação sobre a renda, a relação se inverte. No País, ela corresponde a 22,5% do total, enquanto a média das nações desenvolvidas do grupo é de 33,5%. O modelo brasileiro pune, sobretudo, os mais pobres, que gastam praticamente todo o salário no consumo de itens essenciais à sobrevivência, como alimentação, enquanto os mais ricos podem fazer reservas e aplicações com o valor excedente.

O patrimônio dos 3.390 brasileiros mais ricos é superior ao de 182 milhões de compatriotas

Como a tabela do IRPF não foi reajustada pela inflação nos quatro anos de governo Bolsonaro, um trabalhador com renda de um salário mínimo e meio por mês (1.953 reais) já tem o imposto descontado em folha. A alíquota máxima, de 27,5%, atinge todos os contribuintes que ganham acima de 4.664,68 reais, não importa se ele seja o gerente de uma loja que sofre para pagar as contas no fim do mês ou o CEO de uma grande companhia, com rendimentos superiores a 100 mil reais. Por obra de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil é um dos poucos países do mundo que não taxam lucros e dividendos, permitindo aos empresários pagarem porcentuais muito abaixo dos cobrados dos assalariados. Não por acaso, os 10% mais pobres no País gastam 32% de sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos perdem apenas 21%, segundo um estudo divulgado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos, o Inesc, em 2015.

Durante a campanha, Lula prometeu reformar o sistema tributário brasileiro, a começar pela isenção de Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais por mês. Para viabilizar a medida, será preciso aumentar a alíquota máxima de IRPF para os mais ricos e retomar a taxação sobre lucros e dividendos. “No segundo semestre, queremos votar uma reforma tributária sobre a renda para desonerar as camadas mais pobres do imposto e para onerar quem não paga imposto. Vamos reequilibrar o sistema tributário brasileiro, para melhorar a distribuição de renda no Brasil”, prometeu ­Haddad na terça-feira 17, durante o Fórum de Davos. Antes disso, o governo pretende simplificar a taxação sobre o consumo. Nos bastidores, ganha força a proposta de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, com um tributo único federal e outro estadual e municipal.

A simplificação dos impostos sobre o consumo não deve encontrar muita resistência no Congresso. Difícil será onerar os mais abastados, que sempre ameaçam abandonar o País diante da perspectiva de pagar mais impostos. “Na verdade, quem faz essa ameaça não teria muitos lugares para escapar, porque o Brasil é um ponto fora da curva, um verdadeiro paraíso fiscal para os super-ricos”, comenta ­Jefferson Nascimento, coordenador do programa de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil. “Só vamos sair das primeiras posições nos rankings de desigualdade quando aumentarmos a taxação sobre renda e patrimônio, de forma progressiva. O debate está colocado em todo o mundo. Em 2020, a Argentina criou seu imposto sobre grandes fortunas, com uma única cobrança, para financiar a luta contra a pandemia. No fim do ano passado, a Colômbia aprovou uma reforma com impostos mais altos para os ricos e as grandes corporações. O Chile também está revendo o seu modelo para financiar a educação pública e a previdência. Além disso, 85% da população brasileira é a favor de aumentar impostos para os muito ricos, segundo recente pesquisa que encomendamos ao Datafolha. Lula deveria aproveitar este momento.”

Não adianta, porém, ampliar as alíquotas do IRPF sem retomar a taxação sobre lucros e dividendos, alerta Livi Gerbase, assessora política do Inesc. “Isso só agravaria o fenômeno da ‘pejotização’. Como os empresários pagam menos impostos, sobretudo os donos de companhias com faturamento de até 4,8 milhões de reais, beneficiadas pelo Simples Nacional, os assalariados de maior renda estão se convertendo em falsos prestadores de serviços para escapar das alíquotas mais elevadas do Imposto de Renda”, observa. “Da mesma forma, é preciso revisar as renúncias fiscais, que somam 456 bilhões de reais no orçamento da União para 2023. Hoje, ninguém avalia a efetividade dessas desonerações e elas tampouco são levadas em consideração nos planos de ajuste fiscal.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O fosso se aprofunda”

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