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O calcanhar do capitão

O legado bolsonarista é uma mutilação tanto da economia quanto da democracia e será preciso remontar tudo

Efeitos. O País perdeu o poder de regular o preço dos combustíveis e o Teto de Gastos limita investimentos na Educação - Imagem: Agência Petrobras e Valdecir Galor/Prefeitura de Curitiba
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Os estragos sem precedentes provocados na economia pelo governo Bolsonaro aconteceram em grande escala, transbordaram para o plano político e constituem um ponto vulnerável para quem vencer a disputa do segundo turno, preveem diversos analistas.  O legado bolsonarista é uma mutilação tanto da economia quanto da democracia, aponta Juliane Furno, economista-chefe do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, o Iree. “O principal problema causado pelo governo à economia é a retirada de instrumentos que possam garantir a retomada ou a continuidade do desenvolvimento econômico”, observa.

A partir da década de 1990, acrescenta Furno, a regra é esvaziar os Estados nacionais de instrumentos que possibilitam uma política econômica de caráter mais autônomo. Isso significa esvaziá-los também de política e de democracia, por inviabilizar a decisão soberana, através do voto, em relação a que futuro se pretende para o País. “Se não é o Estado, o governo eleito democraticamente, que tem a prerrogativa de legislar sobre isso, quem decide é o mercado, os organismos multilaterais, com regras autoimpostas. Há, portanto, um cerceamento democrático.”

No governo Bolsonaro, acrescenta, os principais atos nessa direção foram a descapitalização e a mudança na regra da taxa de juros do BNDES, um processo fundamental na perda da referência de um banco de fomento, a mudança na gestão da Petrobras e a alienação das refinarias, como uma forma de descoordenação da política energética. Houve ainda a demolição de um pilar da política industrial, que eram as compras públicas com conteúdo nacional a partir de um modelo integrado. Acrescente-se toda a gestão da política monetária com a autonomia do Banco Central e a persistência da política fiscal alijada das decisões do próprio Congresso, a partir da manutenção de uma regra fiscal extremamente restritiva.

Para o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo, o maior problema da herança bolsonarista na economia é a desestabilização causada pelo questionamento das instituições, do Estado democrático, da liberdade de expressão, da laicidade e um retrocesso geral na visão de desenvolvimento sustentável, com a degradação do meio ambiente. Além disso, emenda, “há um vício de origem nas escolhas de inspiração ultraliberais que pregam o Estado mínimo e uma fé exagerada no setor privado como impulsionador da economia. Tal escolha não tem respaldo na teoria contemporânea e nas boas práticas internacionais”.

Sem o Estado, quem decide é o mercado e os organismos multilaterais, com regras autoimpostas

Na avaliação da economista Esther Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos principais legados do governo Bolsonaro é uma economia que cresce muito pouco, gera escassos empregos formais e com salários baixos. “Isso é agravado por uma estrutura de crescimento muito centrada num agronegócio bastante destrutivo, expansivo na Amazônia, com uma estrutura produtiva que já estava com problemas que foram agravados nos últimos anos, inclusive por medidas do próprio governo, como as tentativas de abertura comercial unilateral sem preocupação alguma com o setor industrial”, sublinha Dweck. Além disso, acrescenta, produziu um orçamento esfacelado por conta do Teto de Gastos, que está destruindo toda a área social e comprometendo, inclusive, políticas importantes como saúde e educação.

“O investimento público foi completamente aniquilado e pulverizado. Este governo destruiu vários instrumentos de ­desenvolvimento, forçou a atrofia dos bancos públicos e das estatais. Privatizou subsidiárias da Petrobras e vendeu a Eletrobras, empresas que tiveram, no modelo anterior, um papel central”, destaca a economista. Os bancos públicos perderam o seu foco, tanto a Caixa, na parte de apoio aos estados e municípios e em habitação popular, quanto o Banco do Brasil, com o crédito agrícola cada vez mais concentrado nos mais ricos, e o BNDES, perdendo seu papel estruturante na economia brasileira desde o governo Temer, com a mudança na taxa de juros. Há ainda o Teto de Gastos e toda uma pauta retrógrada no Congresso. No conjunto, tem-se um aprisionamento do orçamento público com medidas fisiológicas sem impacto relevante na economia, ressalta Dweck.

A continuidade da política econômica entre Temer e Bolsonaro resultou em uma economia estagnada, mais vulnerável a choques externos e com menor capacidade de reação, acrescenta o economista Rafael Ribeiro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. “Em consequência da Lava Jato, que gerou uma quebradeira na construção civil, um dos setores que mais empregam no País, ocorreu um forte processo de desindustrialização e aumento do desemprego”, destaca Ribeiro. Há também o desmantelamento da cadeia de óleo e gás em razão da mudança de estratégia de negócios da Petrobras, que desinvestiu nos setores de refino e distribuição e passou a seguir os preços do mercado internacional. “Quando a Petrobras aumentava a produção, puxava o setor industrial, que fornecia máquinas, equipamentos e insumos para a cadeia produtiva e contratava mão de obra qualificada, o que aumentava o investimento em pesquisa e desenvolvimento. O desinvestimento enfraqueceu a cadeia produtiva e aumentou a nossa vulnerabilidade aos choques externos. O País passou a ter menor poder de fixar o preço do combustível nas refinarias.”

Danos. A degradação ambiental é a marca do atual governo, que desfinanciou a saúde pública e outras áreas essenciais – Imagem: Arquivo/IGESDF e Bruno Kelly/Amazônia Real

A ampliação da desindustrialização reduziu a geração de empregos e isso diminuiu o poder de barganha dos trabalhadores, enfraquecido ainda mais pela reforma trabalhista de Temer. O resultado foi a redução da sua renda real, por conta da queda dos salários e do aumento da inflação. “Destaca-se ainda a completa desorganização das contas públicas com a implementação do orçamento secreto, que só é possível em um governo enfraquecido que, sob denúncias de corrupção, dá mais poder ao Legislativo”, acrescenta Ribeiro.

Para o economista Pedro Paulo Zahluth Bastos, professor do Instituto de Economia da Unicamp, os grandes problemas do governo Bolsonaro na economia são, primeiro, o Teto de Gastos e o orçamento secreto, e, segundo, a degradação ecológica e a passividade diante da transição verde. “O Teto perde cada vez mais credibilidade, a ponto de o governo estar sempre fazendo uma alteração emergencial nele. A médio prazo, impõe uma redução do tamanho do Estado em relação ao PIB, promove a seleção adversa do gasto público, no sentido de que vai sempre relegar o investimento, o gasto de longo prazo, portanto, o planejamento, e isso tanto mais com o orçamento secreto”, dispara Zahluth Bastos.

O problema mais importante no longo prazo, emenda o economista, é a degradação ecológica. “Este é um dos motivos de o mundo dar tanta importância para a eleição no Brasil, pois o governo Bolsonaro desmontou o sistema de fiscalização da degradação ambiental, particularmente no Cerrado e na Amazônia, e isso gera efeitos de longo prazo”, salienta Zahluth Bastos.  Há um risco enorme e o atual governo não está fazendo nada para resolver essa questão nem para preparar o Brasil para a transição verde, mesmo entendida numa dimensão mais simples, como a energética.

Segundo o economista Pedro Rossi, professor da Unicamp, a gestão econômica de Bolsonaro foi um desastre em vários aspectos. O crescimento brasileiro nos últimos quatro anos é um dos piores desempenhos do mundo, fica abaixo da média de qualquer agrupamento de países (ricos, em desenvolvimento, G-7, ­OCDE) e muito abaixo da média mundial. A pandemia não é, portanto, desculpa para o mau desempenho. A fome e a pobreza são resultado desse modelo econômico e da atuação na pandemia.

O orçamento público é sacrificado com medidas fisiológicas sem impacto relevante na economia do País

“A gestão da inflação também foi trágica. A alta inflação é em parte resultado da renúncia ao uso de instrumentos como a política de preços da Petrobras ou os estoques de alimentos. A gestão fiscal foi marcada pela hipocrisia em torno do Teto de Gastos, que foi sistematicamente furado, e pela privatização de parte do orçamento público para atender parlamentares via orçamento secreto”, chama atenção Rossi.

Em um novo governo, concordam os economistas, será preciso remontar tudo. Equacionar a questão fiscal e resgatar o papel do Estado como coordenador das políticas públicas são pautas prioritárias, mas difíceis de aprovar em um Congresso conservador que controla o orçamento. Há, no entanto, convergências de interesses, ressalta Ribeiro. “Como o investimento em infraestrutura tende a afetar positivamente diversos setores econômicos e camadas da sociedade, talvez seja mais fácil construir consensos políticos em torno da sua necessidade, que exigiria uma mudança nas regras fiscais. Acho possível também priorizar internalização da produção de fertilizantes, pois trará grande eficiência na produção doméstica.”

É importante mostrar as consequências do que o governo faz na economia e comparar com o que foi realizado no período do PT, com impactos distributivos fortíssimos, sugere Dweck. “É necessário sensibilizar as pessoas pelos efeitos econômicos que elas sentem na pele.” O que está em jogo vai muito além da chamada polarização entre esquerda e direita.  “Eu sou bem liberal, mas, em alguns momentos, a política e a saúde do nosso sistema, da nossa democracia, entram em discussão e elas dominam”, declarou o economista e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, ao declarar voto em Lula. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O calcanhar do capitão”

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