Economia

Nem toda inflação tem consequências negativas para os trabalhadores

A inflação não é desejada, mas pode decorrer de uma boa causa, como o aumento de salários. E não necessariamente tende a se descontrolar, a situação dependerá dos termos do conflito distributivo

Mercado
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil Bolsonaro, apoiadores e alguns ‘especialistas’ atribuem a inflação de alimentos à ‘conta que chegou’ por causa das medidas de distanciamento social. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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A elevação dos preços dos alimentos e da energia tem provocado aumentos nas taxas de inflação em boa parte do mundo, e a questão é especialmente delicada no Brasil, onde o índice de preços ao consumidor encontra-se na casa dos dois dígitos. Esta situação favorece a representação midiática deste fenômeno como um dragão feroz, descontrolado, pronto para devorar a renda das camadas mais pobres da população. Contudo, nem toda inflação tem consequências negativas para a classe trabalhadora. 

Em primeiro lugar é preciso deixar claro o que é a inflação. O fenômeno diz respeito à elevação geral e persistente do nível de preços, que se reflete na redução do poder de compra da moeda. Neste sentido um aumento da inflação, como o atualmente observado no Brasil e no mundo, consiste em aumento no ritmo de crescimento dos preços. Isso não necessariamente implica em descontrole: é possível que os preços subam e depois parem de subir, ou que continuem a subir a uma taxa de crescimento – ou de inflação – constante.  

Nos anos 1970 o então ministro da economia, Mário Henrique Simonsen, comparou a inflação a uma gravidez, no sentido de que ela começaria pequena, mas necessariamente cresceria. Esta afirmação não é necessariamente correta do ponto de vista histórico. A maior parte dos principais países capitalistas observou taxas de inflação moderadas (entre 2,5% e 5,5%) e constantes por duas décadas após a Segunda Guerra, fenômeno que ficou conhecido como “inflação rastejante”. Uma metáfora mais correta para esta realidade seria a de uma pessoa ganhando peso, em um processo que não continuaria indefinidamente. Depois de ganhar alguns quilos, a pessoa manteria constante a nova forma física e isso não necessariamente configuraria um problema. 

A proximidade com o pleno emprego da força de trabalho pode pressionar salários e, consequentemente, gerar um repasse deste custo aos preços. Se os salários crescem mais que os preços se observariam ganhos reais de salários. Nesse caso, mesmo com inflação, a classe trabalhadora estaria melhorando de situação. É o que o economista Hyman Minsky chamou de “a inflação que queremos”. Foi exatamente o que ocorreu no capitalismo do pós-guerra e também no Brasil entre o segundo mandato do governo Lula e o primeiro de Dilma.

Entre 2007 e 2010, segundo dados do DIEESE, cerca de 83,7% da classe trabalhadora logrou obter ganhos reais de salários, ou seja, ganhos nominais superiores à taxa média de elevação dos preços, de, então, 5,5% (medida pelo índice nacional de preços ao consumidor, o INPC). No primeiro mandato de Dilma, com uma taxa média de desemprego ainda menor, a situação ficou ainda melhor para a classe trabalhadora: entre 2011 e 2014, 90,2% desta obteve ganhos nominais de salários acima da inflação, que no mesmo período registrou uma média de 6%. 

É claro que toda redistribuição gera ganhadores e perdedores. Se os ganhos reais de salários forem maiores que os de produtividade, tem-se uma compressão dos lucros: a classe trabalhadora ganha e o empresariado perde. Neste caso, nada mais natural que as empresas tentem frear os ganhos salariais e busquem recompor suas margens de lucro. Isto tende a se dar de duas maneiras: por meio de pressão para que o governo, por um lado, desaqueça a economia (e com isso desacelere os salários), e, por outro, conceda incentivos ao setor privado. 

No caso concreto do Brasil recente, a situação que era extremamente favorável à classe trabalhadora até 2014 começou a mudar desde então. O governo Dilma já vinha adotando medidas para estimular a lucratividade do setor privado, como redução dos juros, desvalorização cambial, isenções e desonerações. E a partir de 2015 introduziu com força uma pauta de austeridade que jogou o país na recessão e freou fortemente o avanço dos salários, além de permitir um aumento da inflação (que foi de mais de 10% em 2015 e de 6% em 2016). Se no seu primeiro mandato mais de 90% da classe trabalhadora conseguiu ganhos reais de salário, essa parcela caiu para 52% em 2015 e 18,9% em 2016. Os resultados, claro, foram desastrosos para a economia. E não seria o empresariado que pagaria pelo pato da crise.

Desde o golpe de 2016, os governos não só dobraram a aposta na austeridade, como passaram a pautar uma agenda de reformas liberalizantes e de redução dos direitos sociais, como a reforma trabalhista, o teto de gastos e a reforma da previdência. Desde 2017, o INPC já subiu 24,69% (no acumulado até o setembro de 2021), enquanto o rendimento real médio do trabalho habitual caiu 2,34%. Assim, mesmo com uma média de inflação de apenas 5,2% ao ano, a queda do rendimento real do trabalho e o aumento da taxa de desemprego evidenciam qual classe saiu desfavorecida.

Intuitivamente, estes números recentes testemunham a favor da figura que a mídia faz da inflação como um dragão feroz, devorando a renda da classe trabalhadora. A verdade, contudo, é que a concentração de renda é fruto de uma política pública articulada desde o golpe parlamentar de 2016 para reduzir benefícios sociais e aumentar as margens de lucro. 

Como exemplo ilustrativo deste processo temos a questão dos combustíveis. Apenas no ano de 2021, a Petrobras dobrou a meta de pagamento de dividendos e pretende distribuir mais de R$ 63 bilhões de lucros para seus acionistas, mesmo com o preço dos combustíveis corroendo a renda (estagnada) da classe trabalhadora e reverberando sobre o preço de todos os produtos transportados até a prateleira dos mercados. Mas há quem prefira associar a inflação ao auxílio emergencial concedido para as pessoas mais necessitadas. 

Em resumo: a inflação não é desejada, mas pode decorrer de uma boa causa, como o aumento de salários, e nesse sentido tem seu lado bom. E não necessariamente tende a se descontrolar, a situação dependerá dos termos do conflito distributivo.  A inflação é apenas uma forma de se resolver tal conflito, e pode beneficiar a classe trabalhadora caso os salários cresçam mais do que o nível geral de preços. Neste caso, não seria possível tolerar uma inflação constante se esse fosse o preço a se pagar para melhorar a vida de uma maioria mais pobre? 

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