Economia

Na indústria automobilística, o céu e o inferno do acordo UE-Mercosul

Os fabricantes da Europa estão eufóricos e os do Brasil, cheios de dúvidas quanto aos efeitos do pacto sobre montadoras e setor de autopeças

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O contraste entre as reações das associações de fabricantes de veículos da Europa e do Brasil diante do acordo comercial selado em junho pela União Europeia e o Mercosul deveria alertar o Congresso Nacional para a necessidade de examinar com rigor os termos do pacto que só entrará em vigor se for aprovado pelos parlamentos dos países dos dois blocos econômicos. A Associação Europeia dos Fabricantes de Automóveis saudou o tratado em comunicado oficial divulgado no início do mês: “Sob as condições certas há um potencial real de crescimento para a indústria automobilística da Europa, dadas as dimensões do mercado do Mercosul, tanto em termos de população quanto em PIB”, disse o presidente da European Automobile Manufacturers’ Association (ACEA), Erik Jonnaert. A equivalente local, Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), dividiu-se entre a comemoração e os alertas para os fabricantes não ficarem para trás. “O Brasil vai precisar resolver rapidamente problemas históricos que atravancam o desenvolvimento da indústria se quiser usufruir das oportunidades, e não apenas dos riscos”, alertou o presidente da entidade, Luiz Carlos Moraes.

As perspectivas de ganhos parecem, a julgar pelas declarações dos presidentes das entidades, muito mais claras para as fabricantes europeias do que para o Brasil e demais países do Mercosul, apesar de serem ainda desconhecidos os mecanismos de cotas e reduções graduais de tarifas, que só serão divulgados nos próximos meses após um longo caminho de formalizações jurídicas e revisões do texto pelas partes envolvidas. Enquanto do lado brasileiro o presidente da Anfavea alerta para o risco de o País “ficar fora do jogo automotivo global” se não aprovar a reforma tributária, a ACEA sustenta seu otimismo em números.

“O Mercosul é um mercado de aproximadamente 270 milhões de pessoas, onde 3,3 milhões de novos carros foram vendidos no ano passado. A UE exportou 73 mil carros para a região em 2018, representando 2,2% do mercado total. Em contrapartida, cerca de 234 mil carros foram importados pelo Mercosul de outros países, representando quase 8% do mercado”, destaca o comunicado da associação das montadoras europeias.

A indústria automobilística é a espinha dorsal do setor industrial tanto na Europa quanto no Brasil. Mais de 90% do comércio internacional entre os quatro membros do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) e 28 países da UE terão as tarifas de importação zeradas no prazo de até 10 anos, incluindo 100% dos produtos industriais.

“A corrente de comércio do setor automotivo é entretanto amplamente favorável aos europeus”, sublinha a publicação especializada AutomotiveBusiness. Não há exportações de automóveis brasileiros para a Europa que, em contrapartida, venderam ao Brasil em 2018 perto de 700 milhões de dólares em veículos de passageiros de alto valor agregado. Com o acordo de livre comércio UE-Mercosul, tudo leva a crer que essa balança deve continuar pendendo mais favoravelmente para o lado europeu.

O setor de autopeças sul-americano oferece excelentes perspectivas às montadoras da União Europeia, mostra outro trecho do comunicado da ACEA: “As taxas tarifárias para veículos motorizados atualmente são de até 35% no Brasil e na Argentina. Além disso, a indústria de autopeças da UE se beneficiará do acesso preferencial aos fabricantes localizados no Mercosul.”

Segundo acompanhamento do Sindipeças, em 2018 a Europa foi o quarto maior comprador de autopeças brasileiras, as exportações do País somaram cerca de 1,7 bilhão de dólares, ou 21,3% do total exportado pelos fabricantes instalados no Brasil. No sentido inverso, no mesmo período foram importados 4,2 bilhões de dólares em componentes automotivos de países europeus, que responderam por 31% das importações do setor. Dizimado pela abertura dos anos 1990 o segmento nacional de autopeças, que chegou a ter grandes empresas-líderes mundiais, deslocou uma quantidade significativa de plantas industriais ao Paraguai em uma tentativa de sobrevivência a partir dos custos menores do país vizinho mas agora corre risco de desaparecer, avaliam vários analistas.

O acordo tenderia portanto a acentuar a relação de trocas desfavorável retratada em 2018 quando só 25,8% das exportações do Mercosul à UE foram manufaturas e 71,3%produtos primários enquanto que no sentido inverso as exportações da UE ao Mercosul foram formadas por 84,1% de manufaturados e 12,5% de primários. Os principais beneficiários do tratado, propala-se, serão os grandes agro-exportadores.

O Mercosul é atualmente o principal fornecedor de produtos agrícolas na União Européia, com 20% do total. Cerca de 70% dos alimentos importados pela UE são provenientes do Mercosul, principalmente do Brasil. Perto de 80% da carne bovina importada pela UE tem origem no Brasil, no Paraguai, na Argentina e no Uruguai. O acordo fortaleceria o perfil agroexportador das economias do Mercosul, aprofundando seu papel periférico.

A maior preocupação de vários economistas é quanto a vulnerabilidade da indústria ao zeramento paulatino de tarifas de lado a lado. Defensores do livre comércio querem fazer crer que a economia brasileira é fechada e propõe a abertura como “remédio” capaz de induzir a manufatura a tornar-se mundialmente competitiva. A suposição de uma economia brasileira fechada não se confirma, entretanto, no exame dos dados da indústria setor por setor, quando fica clara a enorme proporção de peças e insumos importados em segmentos nos quais seria fundamental o desenvolvimento local com um mínimo de autonomia para assegurar avanços, mostram estudos de think tanks e de analistas especializados.

Supor que a situação de fragilidades múltiplas e interconectadas da indústria brasileira será superada e não agravada com a eliminação das tarifas, sem política industrial consistente nem apoio do Estado como ocorreu nos países hoje avançados, alertam vários economistas, é subestimar o estrago provocado por erros da política de endividamento externo nos anos 1970 que levaram à crise da dívida dos anos 1980 e à defasagem crônica do setor.

A confiança excessiva nos poderes do livre comércio, acrescentam, implica ainda minimizar a devastação causada pela abertura comercial mal feita dos anos 1990 que acentuou o descompasso entre a manufatura local e seus competidores nos países avançados e nos emergentes bem sucedidos.

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