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Mão na cumbuca

A aprovação do orçamento do próximo ano escancara a queda-de-braço entre o governo e os líderes partidários

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Teste. O Parlamento atrasa a votação do orçamento em busca de mais vantagens. Lira e Alcolumbre só pensam na sucessão na Câmara e no Senado – Imagem: Zeca Ribeiro/Ag. Câmara e Jefferson Rudy/Ag. Câmara
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As dificuldades do governo Lula no Congresso durante o ano evidenciaram que o Brasil vive um parlamentarismo disfarçado. O reforço do Poder Legislativo nos últimos tempos deu-se com a captura de uma fatia crescente das verbas federais, por meio das chamadas “emendas”, aquelas obras que deputados e senadores incluem no orçamento. Uma situação confortável, com bônus e sem ônus, para os congressistas. Eles mandam no País, e se a população estiver fula da vida, quem paga o pato é o governo, na forma de baixa popularidade. “Emenda”, afirma um petista com mandato, “é uma palavra poderosa” atualmente. Dado que o quadro é este, chegou aquele momento de fortes emoções em Brasília: a votação do orçamento do próximo ano. “Vamos ter de fazer malabarismo”, diz um articulador político do Executivo.

São duas as encrencas por trás de negociações que se arrastam há semanas e devem ter um desfecho apenas às vésperas das férias parlamentares, marcadas para começar no dia 22. Uma é o tamanho do fundo público reservado às campanhas de prefeito e vereador em 2024. A outra diz respeito justamente às emendas. Haverá um cronograma fixado em lei que obrigue o governo a liberar o dinheiro dessas obras ao longo do ano?

O primeiro pepino está nas mãos do relator da lei orçamentária, o deputado Luiz Carlos Motta, do PL paulista. O outro foi criado pelo relator do rascunho do orçamento, a LDO, o deputado cearense Danilo Forte, do União Brasil. Curioso: Motta, de 64 anos, é do partido de Jair Bolsonaro, mas tem colaborado com o governo. É sindicalista de origem (do comércio), foi do PDT muito tempo. Forte é de uma sigla premiada com três ministérios, mas faz jogo duro com o Palácio do Planalto. Aos 65 anos, foi do PCdoB no passado, hoje é empresário (dono da empreiteira Poncar) e afinadíssimo com o tal “mercado” e o chamado “Centrão”.

Uma ala poderosa quer ao mesmo tempo um fundo eleitoral generoso e dinheiro de sobra para as emendas

Motta prefere um fundo público de campanhas mais enxuto, assim como o Palácio do Planalto. Desde a sua criação, em 2017, para valer na eleição a presidente, governadores, deputados e senadores realizada no ano seguinte, o fundo agigantou-se. Tinha 1,7 bilhão em 2018, pulou para 2 bilhões na disputa municipal de 2020 e alcançou 4,9 bilhões na campanha de 2022. Uma ala do Congresso defende para 2024 repetir o valor do ano passado. É uma turma liderada pelos chefes partidários, “donos” do dinheiro em seus respectivos ninhos. Vários presidentes de siglas são parlamentares: os deputados Baleia Rossi, do MDB, Luciano Bivar, do União Brasil, Marcos Pereira, do Republicanos, e Renata Abreu, do Podemos, e o senador Ciro Nogueira, do PP.

Outra corrente no Congresso defende que o fundo tenha como referência a quantia da eleição municipal anterior (2 bilhões de reais), sobre a qual seria aplicada a inflação acumulada, o que daria cerca de 2,6 bilhões. Além de Motta e do governo, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD, é desse time. Quanto mais polpudo for o fundo, maior tende a ser o desgaste político de Brasília. Por mais que o financiamento empresarial de candidatos tenha se mostrado fonte de corrupção, reservar 5 bilhões de reais a campanhas é demais num País onde 31% dos brasileiros estão na pobreza. No orçamento proposto ao Legislativo em agosto, o governo havia separado 900 milhões para o fundo. Qualquer que seja a cifra final (4,9 bilhões ou 2,6 bilhões), Motta terá de tirar recursos de algum lugar. Está disposto a morder das emendas. No esboço de seu relatório, havia retirado 4 bilhões de reais da margem dos parlamentares para destinar ao fundo, se necessário.

As emendas agigantaram-se ainda mais do que o fundo eleitoral de uns anos para cá, sobretudo por causa de uma aberração da era Bolsonaro. “Depois do orçamento secreto e desse protagonismo das emendas, a relação do governo com o Congresso é tensa”, diz um ex-deputado do “Centrão”, agora colaborador de um ministério. “Os ministérios não têm força, é tudo com o Congresso.” Em 2019, primeiro ano do capitão no poder, eram 8.912 emendas, total de 17,3 bilhões de reais, conforme dados do “Siga Brasil”, sistema mantido na web pelo Senado. No ano seguinte, o da estreia do orçamento secreto, havia 14.103 emendas e, em valores, mais do que o dobro (36,1 bilhões). Em 2023, orçamento aprovado no último mês de Bolsonaro e com a futura base lulista no centro das negociações, o secretismo acabou, por decisão do Supremo Tribunal Federal. Permaneceu, porém, a lógica de o Congresso apropriar-se de um naco enorme do caixa federal e direcioná-lo para onde quisesse. São 19.520 emendas que, somadas, perfazem 35,8 bilhões.

Por fora. O petista Guimarães foi lembrado por Lira como uma alternativa ao comando da Câmara dos Deputados – Imagem: Lula Marques/ABR

Nos três anos de vigência, o orçamento secreto movimentou 45 bilhões de reais. Na época da transição de Bolsonaro para Lula, a equipe do atual presidente tinha planejado tomar de volta do Congresso para o governo, ao longo de 2023, o controle das emendas. Objetivo facilitado pelo julgamento do Supremo de dezembro de 2022. As emendas são um instrumento do governo para, digamos, seduzir o Parlamento e conseguir aprovar projetos. Se deputados e senadores providenciam um caminhão de dinheiro para as emendas, e se estas precisam ser pagas de qualquer jeito pelo governo graças ao caráter impositivo a partir de 2015, há menos motivos para ajudar o presidente. As emendas bastam para ficarem bem com as bases e se reelegerem.

É comum ouvir de articuladores políticos lulistas que a área do Planalto encarregada de lidar com congressistas, a Secretaria de Relações Institucionais, ficava às moscas sob Bolsonaro. Era tudo delegado aos comandantes da Câmara e do Senado. Aquele plano governista de recuperar o controle da execução das emendas não andou como o esperado, diz uma fonte palaciana. E olha que nesse ano houve liberação recorde de recursos para emendas individuais. Até 4 de dezembro, 14,6 bilhões de reais, segundo o Siga Brasil. A média anual com Bolsonaro havia sido de 9 bilhões. “Toda vez que conseguimos acelerar ainda mais a execução, cria-se um ambiente ainda mais positivo dentro do Congresso Nacional para que a gente conclua as votações”, disse pública e abertamente o ministro Alexandre Padilha na terça-feira 5.

“A votação do orçamento terá fortes emoções”, diz José Guimarães, líder do governo na Câmara

Na queda de braço pelo controle das emendas entra em cena o deputado Forte. A Lei de Diretrizes Orçamentárias contém parâmetros norteadores do orçamento e precisa ser aprovada antes deste. Tem de ser enviada pelo governo ao Legislativo em abril. Os parlamentares não podem sair de férias, em julho, sem votarem a LDO. Pois neste ano saíram. É raríssimo que essa lei siga pendente em um mês de dezembro. Forte tenta inserir um cronograma de liberação das verbas de emendas ao longo de 2024. Um calendário do tipo tornaria automática, independentemente da vontade do Executivo, a execução das obras. E praticamente anularia os esforços do Planalto para retomar o controle do orçamento. “O Danilo é a voz do Arthur Lira neste jogo”, afirma aquele ex-deputado do Centrão citado no início desta reportagem.

Lira é o presidente da Câmara desde 2021, um dos mais poderosos da história do cargo. Foi quem colocou a LDO nas mãos de Forte. Perde poder quanto maior for o controle do governo sobre o orçamento. No fim das contas, eis o resumo da batalha: quem terá mais jurisdição sobre as emendas e, portanto, influência sobre os congressistas. “A votação do orçamento vai decidir o próximo presidente da Câmara”, diz um deputado petista. A sucessão de Lira será em fevereiro de 2025. Seu candidato é o baiano Elmar Nascimento, líder do União Brasil, a sigla de Forte. Houve, porém, uma situação curiosa há algumas semanas. Lira reuniu-se com líderes e, numa rodinha, comentou que o petista cearense José Guimarães, líder do governo na Câmara, era um bom nome para concorrer. Seria Guimarães o plano B de Lira? Em 2025, haverá ainda eleição para o comando do Senado. Um concorrente de peso é, desde já, Davi Alcolumbre, que presidiu a Casa de 2019 a 2020. Alcolumbre é do União Brasil. É improvável que as forças políticas em Brasília aceitem um mesmo partido à frente da Câmara e do Senado.

É com eles. Motta e Forte, relatores do orçamento e da LDO, jogam em times diferentes – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara e Gabriel Lemes/MDIC

“A votação do orçamento terá fortes emoções, porque é uma coisa que diz respeito aos parlamentares, então a tensão é natural”, diz Guimarães. Um deputado governista envolvido nas negociações aposta que, na hora agá, o relator da LDO vai desistir da ideia de um cronograma para a execução de emendas. A tentativa de impor o calendário não é o único problema criado por Forte. Este tem má vontade com a intenção do Ministério da Fazenda de colocar na LDO uma atenuante para a magnitude do corte orçamentário projetado para o início de 2024. É uma praxe, destinada a garantir que o governo cumpra a meta fiscal. Lula não quer, no entanto, começar o próximo ano com uma tesourada parruda. Pretende viajar pelo País para inaugurar obras e, com isso, dar um empurrãozinho na economia e, também, nos aliados que disputarão as eleições municipais.

A propósito, Forte gostaria de voltar a dar as cartas em uma estatal, a Fundação Nacional de Saúde, que Lula fechou logo ao voltar ao Planalto. Em clima de “fortes emoções” de fim de ano, será que o deputado ganhará esse, digamos, presente de Natal? Criar dificuldade para vender facilidade, eis um dos lemas no Congresso. •

Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.

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