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Lula e a meta de inflação

A independência não significa que os BCs não prestem contas aos políticos e à opinião pública

Lula e a meta de inflação
Lula e a meta de inflação
Os BCs devem justificar as suas ações e explicar seus desdobramentos - Imagem: iStockphoto
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Os humores dos mercados e de seus acólitos midiáticos azedaram. A gota de amargura foi derramada pelas críticas de Lula ao presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto.

Confesso ao eventual leitor dessas mal traçadas linhas que hesitei ao formular a frase acima. Na primeira versão, escrevi “críticas do presidente Lula a Roberto Campos Neto”. Senti um repelão nas costas. Um ente misterioso manifestou seu desagrado. Em sobressalto, minha filha Luísa advertiu: “Pai, você desagradou ao Espírito do Mercado”.

Diante dos poderes do Espírito, cuidei de atender à advertência da minha filha: transportei a palavra “presidente” que qualificava nosso Lula para a dianteira do nome de Roberto Campos Neto. Assim, respeitei os ritos, critérios e protocolos da Autonomia do Banco Central. O catecismo do Espírito ordena o seguinte: “O presidente do Banco Central é eleito por seus pares do Mercado e indica o presidente da República de sua livre escolha”.

O regime de metas de inflação, filho dileto da independência dos Bancos Centrais, tem o propósito de definir a regra ótima de reação do Banco Central. Trata-se da regra que, ao longo do tempo, fortalece a confiança dos mercados no manejo da taxa de juros de curto prazo entregue à responsabilidade dos BCs. Ao “ancorar” expectativas (sempre racionais) dos formadores de preços e dos detentores de riqueza, os Bancos Centrais tornariam mais suave o processo de manutenção da estabilidade do nível geral de preços, reduzindo a amplitude das flutuações da renda e do emprego.

O Committee on International ­Economic and Policy Reform, um grupo de especialistas independentes, publicou em setembro de 2011 o relatório ­Repensando os Bancos Centrais ­(Rethinking Central Banking). O comitê é formado por economistas acadêmicos, ex-presidentes de Bancos Centrais e ex-ministros das Finanças. Entre eles estão Barry ­Eichengreen, ­Mohamed El-Erian, ­Arminio ­Fraga, Carmen ­Reinhart, ­Kenneth ­Rogoff, ­Raghuram Rajan e ­Dani Rodrik.

Na contramão do ramerrame palpiteiro midiático que assola o debate brasileiro, o relatório faz uma avaliação sem rebuços nem preconceitos do desempenho dos Bancos Centrais no período pré-crise de 2008 e aponta para mudanças no escopo das políticas nos próximos anos. Entram na dança a independência dos Bancos Centrais e seus bravos escudeiros, as políticas de metas de inflação e a adoção das taxas de câmbio flexíveis.

O relatório reconhece que assiste razão aos críticos quando denunciam o fracasso dos Bancos Centrais em administrar de forma adequada os riscos do sistema financeiro. Isso deve ser debitado em boa medida ao foco estreito na política de metas e ao descuido com as medidas prudenciais, hoje invocadas por gregos e troianos.

Além disso, a visão convencional assume a inexistência ou a irrelevância dos efeitos internacionais negativos das políticas monetárias expansionistas executadas por países de moedas conversíveis, fenômeno observável a olho nu em um mundo aberto ao movimento de capitais.

Especialistas reconhecem o fracasso dos bancos centrais em administrar os riscos do sistema

Na visão do comitê, a dupla meta de inflação-taxas de câmbio flutuantes não possui credenciais para cuidar dos efeitos perversos da volatilidade dos fluxos internacionais de capital.

O economista-chefe do Citigroup, ­Willem Buiter, aponta as dificuldades de se executar a política de metas e, ao mesmo tempo, controlar o crescimento da dívida pública. Constata o óbvio: “A elevação da taxa de juros real causa o crescimento da dívida por duas razões. Primeiro, faz saltar o custo real do serviço da dívida. Segundo, ao reduzir a demanda de bens, serviços e de trabalhadores, a elevação do juro real provoca uma queda da receita fiscal e impede a obtenção do superávit primário”.

Aqui vou recorrer às observações do livro Le Banque Providence, de Eric ­Monnet. Ex-funcionário do Banque de France e respeitado economista em assuntos de moeda e crédito, Monnet envereda com suas conjecturas nos ardilosos e perigosos territórios da independência dos Bancos Centrais.

“O Banco Central deve ser integrado nos debates em instituições democráticas, e não como um gestor puramente técnico que lida com assuntos isolados do resto da política econômica e social. Não se trata de pôr em causa a independência dos Bancos Centrais, ou seja, o princípio de que tomam as suas decisões sem pressão do governo e do Parlamento. As autoridades administrativas independentes são uma parte legítima das nossas democracias. Além disso, a história dos Bancos Centrais mostra como a independência sempre foi, em graus variados, uma de suas características. A sua própria existência se justifica pelo fato de a moeda ser considerada gerida de forma mais eficiente por uma instituição autônoma do Ministério das Finanças. No entanto, as contrapartes da independência (responsabilização, transparência e reflexividade) devem ser reforçadas e mais bem adaptadas às atuais ações dos Bancos Centrais. Independência não significa falta de consulta e coordenação com outras políticas: é o que foi esquecido durante demasiado tempo. Assumir o papel protetor do Banco Central e redefinir sua independência é ainda mais necessário porque – como outras administrações públicas desde a virada liberal da década de 1980 – a política do Banco Central foi desviada dos princípios do Estado de Bem-Estar Social, com consequências adversas para a economia, a estabilidade financeira e a desigualdade.”

O economista Barry Eichengreen escreveu no site Project Syndicate que os Bancos Centrais gozam de independência operacional para exercer um mandato específico, porque existe um consenso de que os objetivos devem ser retirados das mãos dos funcionários eleitos. “Mas a independência não significa que os banqueiros centrais não prestem contas aos políticos e à opinião pública. Devem justificar as suas ações e explicar de que forma suas decisões políticas promovem os objetivos mandatados. O seu sucesso ou insucesso pode ser julgado pelo fato de o Banco Central atingir ou não os seus objetivos verificáveis de forma independente.”

Nos escritos dos economistas, a independência “técnica” dos Bancos Centrais está sempre ameaçada pelas traquinagens da “política”. Entre trombadas sociais e reconciliações provisórias, esse conflito, desde os primórdios do capitalismo, foi sempre apaziguado nos regaços gentis da sabedoria política, ou seja, nas instâncias da construção institucional. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lula e a meta de inflação”

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