Economia

Luciano Coutinho: “BNDES é íntegro, não funcionou como a Petrobras”

O presidente mais longevo do banco de desenvolvimento fala pela primeira vez sobre críticas a seus quase dez anos de gestão

Luciano Coutinho (Foto: ABr)
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O ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho deu poucas entrevistas após deixar a presidência do banco de desenvolvimento. O legado da sua gestão, a mais longeva da história da instituição (2007 a 2016), foi um dos temas em debate na campanha eleitoral de 2018. Nos dias que antecederam o segundo turno da eleição presidencial, o BNDES foi o principal tema de conversa em centenas de grupos acompanhados pelo projeto “Monitor do Whatsapp”.

Nesta entrevista à DW, Coutinho fala pela primeira vez sobre as críticas à sua administração, durante os governos Lula e Dilma. O economista defende a chamada política das campeãs nacionais e rechaça a ideia de favorecimento político. Tais suspeitas o levaram a sofrer uma condução coercitiva em 2017 e, um ano depois, a enfrentar um indiciamento pela Polícia Federal.

Coutinho também comentou as acusações de falta de transparência do BNDES, exploradas pelo grupo político do presidente Jair Bolsonaro. “Existem duas fake news. A primeira, que o BNDES era uma caixa-preta. A segunda, essa estratégia de arrombar uma porta aberta, mostrar coisas que já eram acessíveis a qualquer cidadão. Isso faz parte meramente de um marketing meio raso, que tem como objetivo, às vezes, desviar a atenção de outros temas mais relevantes para o país.”

 

DW: O que justifica, sob sua gestão, uma concentração tão grande de aportes do BNDES a um grupo seleto de empresas, a chamada política de campeãs nacionais?

Luciano Coutinho: Essa crítica omite todos os casos de sucesso de internacionalização de empresas. Não houve seleção arbitrária. Nós demos oportunidade às empresas que se apresentaram para o programa de internacionalização. Elas chegaram ao BNDES por si só ou foram trazidas por grandes bancos de investimento. Quem trouxe para a JBS as oportunidades de aquisição de empresas nos EUA foi o J.P. Morgan. A ideia era que o Brasil pudesse dar o passo de internacionalizar empresas em setores nos quais tinha competitividade comercial clara. Por exemplo, por ser um grande exportador, como na área de celulose, proteína animal e outras áreas do agronegócio, além da indústria.

Vários setores receberam apoio.

Bem ou mal, temos a oitava empresa de software, que é a TOTVS, para sistemas de gestão empresarial. Temos hoje empresas de escala internacional nos setores de celulose, cítricos, cimento, siderurgia, petroquímica. Há algumas também na área de bens de consumo que se internacionalizaram com sucesso.

Antes, tínhamos um número muito restrito de empresas internacionais. Basicamente, Petrobras, Vale e Embraer, todas produto de políticas de Estado. Além dessas, havia dois grupos privados, como a Gerdau, que se internacionalizou por mérito próprio, apesar de sempre ter tido apoio do BNDES em períodos anteriores à minha gestão. Havia também o grupo Ambev, que o fez via financiamentos junto ao mercado. Parava por aí. Era um número pequeno de empresas com projeção internacional, inclusive quando comparado a economias menos desenvolvidas, como algumas da Ásia.

O mesmo vale para a comparação com números do passado de economias como a da China e Coreia do Sul, que se desenvolveram desde os anos 1970 e 1980 multiplicando o número de empresas com porte internacional. Os próprios bancos de desenvolvimento e braços de investimentos europeus sempre apoiaram e continuam a apoiar as empresas de capital nacional europeias. Nos anos 1950 e 1960, incentivaram a criação de empresas transeuropeias para resistir à entrada avassaladora das multinacionais americanas no continente

 

DW: Os críticos acusam sua gestão de favorecimento político.

Leia também: Adeus ao BNDES

LC: Isso é um falseamento grosseiro. Nosso projeto tinha uma abrangência limitada porque não é possível transformar uma empresa incompetente, não competitiva, num campeão. O que se buscou foi realmente apoiar empresas que mostrassem capacidade competitiva. O apoio a esse processo de expansão foi apoiado principalmente pela BNDESPar (subsidiária) por meio de participação societária, e não através de empréstimos. Além disso, os recursos do BNDESPar sempre foram aplicados a custos de mercado e nunca vieram do Tesouro Nacional.

A BNDESPAR é detentora de uma carteira de ações bastante rentável, que o banco faz girar, vendendo ações para comprar e investir em empresas com o potencial de competir e inovar, o que gerou dividendos muito expressivos. Essa rotação de ativos foi feita a custo de mercado, sem nunca haver um centavo de subsídio. Afirmar o contrário é desonesto.

DW: O que o senhor tem a dizer sobre a acusação de que o BNDES é uma “caixa-preta”?

LC: O BNDES é o banco mais transparente do Brasil e também entre os pares de bancos de desenvolvimento. Nós já vínhamos aperfeiçoando o processo de transparência e esse processo continua até o presente. A lista dos 50 maiores tomadores de empréstimo já era conhecida. Existem duas fake news. Primeiro, que o BNDES era uma caixa-preta. Segunda, essa estratégia de arrombar uma porta aberta, mostrar coisas que já eram acessíveis a qualquer cidadão. Isso faz parte meramente de um marketing meio raso, que tem como objetivo, às vezes, desviar a atenção de outros temas mais relevantes para o país. A imprensa séria sabe que o trabalho de transparência do BNDES já vinha sendo feito há muito tempo.

Desde que ficou evidente o envolvimento de empreiteiras em ilícitos, o banco, ainda na minha gestão, suspendeu as operações com essas empresas até que os processos de regularização de leniência se concretizassem. Fico muito aborrecido quando vejo pessoas mal informadas relacionando o banco a redes de corrupção. As auditorias feitas pelos presidentes que me sucederam não revelam nenhuma participação de executivos e funcionários do banco em corrupção.

Todas as empreiteiras fizeram delação premiada. Nenhuma delas apontou qualquer linha de envolvimento do BNDES em corrupção.

Acho que há um oportunismo ideológico, que fantasia a hipótese de o BNDES ter funcionado como a Petrobras. Não é verdadeiro. O BNDES é uma instituição íntegra, com governança e processos colegiados de decisão. Isso previne o envolvimento da instituição práticas ilegais. As sucessivas auditorias têm mostrado isso.

O BNDES não é “caixa-preta”, diz Coutinho (Foto: Divulgação)

 

DW: Os críticos da sua gestão no BNDES apontam prejuízos ao Tesouro por subsídios dados ao banco. Qual é a sua avaliação?

LC: Essa questão do spread negativo do Tesouro, que captava juros pela taxa Selic e nos emprestava pela TJLP (taxa de juros de longo prazo, mais baixas), foi uma medida que entendíamos como transitória. Era inconveniente, sem dúvidas. Mas uma avaliação equilibrada deve considerar os ganhos obtidos com os empréstimos do BNDES para custear investimentos. Não só em infraestrutura, mas em outros setores importantes da economia. Além disso, há vários estudos mostrando que o retorno do multiplicador de renda e emprego a partir de investimentos adicionais na economia produziram mais receita tributária para o governo em vários níveis.

Leia também: BNDES: entre o incerto e o duvidoso

Portanto, de um lado da balança, deve-se colocar a conta dos subsídios – diferença entre TJLP e Selic multiplicada pelo volume de aportes ao BNDES – e, do outro, um conjunto de contribuições importantes. Aí entram os dividendos pagos pelo banco ao Tesouro, os impostos que pagamos diretamente à União e os que as empresas pagam em consequência dos investimentos alavancados pelos empréstimos que concedemos, fora o impacto econômico indireto dos investimentos realizados por terceiros.

 

DW: Qual seria esse impacto?

LC: Nele estão a formação de renda e a geração de empregos formais, o que contribuiu para o Tesouro tanto via receitas tributárias quanto previdenciárias. Feita a conta completa, mostramos em vários momentos que o resultado era positivo. Ou, no mínimo, a depender da diferença entre Selic e TJLP, uma fração muitíssimo menor do que a apresentada pelos críticos.

 

DW: A operação com as taxas era um obstáculo necessário?

LC: Na verdade, essa questão era um retrato de uma incompletude do sistema de crédito brasileiro, sempre muito enviesado para o curto prazo. O funding (financiamento) dos próprios bancos privados sempre foi de horizonte muito curto, e a única entidade capacitada a prover financiamentos de longo prazo, apoiar projetos de infraestrutura no país, ainda é o BNDES. A própria Selic é outra deformação do nosso sistema. Durante quase 30 anos, o Brasil foi campeão de juros de curto prazo. Poucos países mantiveram uma taxa de juros tão alta quanto a nossa.

Ante essa profunda deformação, infelizmente, nossa forma de financiar também era imperfeita. Mas, insisto, deve ser analisada dentro do contexto do mercado de crédito brasileiro. É muito fácil para os críticos esquecê-lo, considerando só o lado do custo. Fazem isso ideologicamente motivados pelo liberalismo exacerbado, que distorce os fatos para defender a tese da extinção do BNDES ou diminuir a sua relevância como banco de desenvolvimento.

 

DW: Ao assumir o BNDES, Joaquim Levy disse que um dos focos de sua gestão seria negócios ligados à infraestrutura, mas tudo orientado pelo mercado de capitais e parcerias com o setor privado, inclusive bancos. Como o senhor vê essa estratégia?

LC: A prioridade à infraestrutura é um consenso. Este país subinveste em infraestrutura. A taxa atual é inferior a 1,5% do PIB, quando deveríamos investir entre 4,5% e 5%. Então, anualmente, teria de haver investimentos adicionais da ordem de 3,5% da renda nacional só em infraestrutura, o que, a preços de hoje, representa cerca de 250 bilhões de reais. Supondo que, desses 250 bilhões, 30% venha do setor privado, por lucros retidos, restariam, ainda 175 bilhões a mais a financiar, além do que se faz hoje. A única instituição capaz de alavancar esse volume é o BNDES.

 

DW: Alguns economistas dizem que o mercado de debêntures oferecerá isso.

LC: Ora, o mercado de debêntures de longo prazo conseguiu emitir 10 bilhões de reais em 2017. No ano passado, alcançou algo próximo a 25 bilhões de reais. O potencial do mercado de debêntures fica muito aquém da necessidade de financiamento do País. Salvo se as debêntures vierem receber vantagens fiscais expressivas.

Em uma hipótese bastante otimista, de que as debentures possam suprir a metade do que precisamos (87,5 bilhões anuais), o que é pouco verossímil para o mercado de capitais brasileiro nas condições atuais, o BNDES ainda teria de entrar com a outra metade. Isso significaria superar o período de auge do banco, em que chegou a financiar em infraestrutura cerca de 70 bilhões de reais anuais. E falo só de infraestrutura.

Se considerarmos indústrias intensivas em capital, como siderurgia, petroquímica e outras, as necessidades de financiamento de longo prazo são ainda maiores.

Portanto, a tese de que os mercados serão capazes de suprir todo o financiamento de longo prazo no Brasil é duvidosa.

 

DW: Outros focos da nova gestão serão o apoio a empresas de médio porte e prioridade a negócios ligados à inovação tecnológica e responsabilidade ambiental. O que o senhor pensa a esse respeito?

LC: São prioridades corretas. Mas lembro o seguinte: os empréstimos atuais para micro e pequenas empresas caíram a menos de 30% do volume que nós operávamos em nosso período (2007-2016). O que estão fazendo hoje é uma fração muito pequena do que nós fizemos. Sobre a inovação, nós chegamos a operar, entre 2013 e 2015, níveis de aprovação e desembolso para a inovação em torno de 7 bilhões de reais por ano. Isso caiu para 1,5 bilhão. Não tenho dúvidas de que o BNDES deve apoiar a inovação, pois envolve riscos mais altos, que o setor privado não quer assumir. E nós o fizemos.

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