Política

BNDES: entre o incerto e o duvidoso

Mudar as regras de financiamento do banco é um salto no escuro e não vai, por si, estimular a participação do setor privado no crédito de longo prazo

Rabello de Castro comanda o BNDES
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Os interesses da alta finança no Brasil, não é de hoje, conspiram contra o crédito direcionado e, mais precisamente, contra o BNDES. Sob o disfarce de argumentos fundados na racionalidade econômica e justiça distributiva, como o que atribui a alta taxa de juros básica ao crédito direcionado, ou o impacto fiscal nefasto dessa forma de crédito, propugnam o desmonte daquela que é uma das mais importantes instituições econômicas brasileiras. O começo desse processo é a instituição de uma taxa de juros de longo prazo, a TLP, equivalente à taxa de juros de títulos públicos de cinco anos, a NTN-B, como taxa referencial dos empréstimos, em substituição à TJLP.

Para realizar esta mudança, dadas as suas implicações para o financiamento do investimento no Brasil, pois o BNDES respondeu nos últimos anos por cerca de 50% de todas as fontes domésticas de financiamento das empresas e famílias, o pressuposto maior seria que o mercado financeiro brasileiro possuísse uma taxa de juros compatível, i.e., em baixo patamar e com volatilidade limitada, podendo, portanto, servir de base para os financiamentos de longo prazo. A realidade, todavia, mostra o contrário: taxas básicas não só elevadíssimas como voláteis, atributos exacerbados nos prazos mais longos.

A pergunta que não quer calar é a seguinte: porque ao invés de se meter numa aventura de resultados duvidosos, não se dedicam a construir a condição necessária para o financiamento privado de longo prazo poder de fato se expandir no Brasil, isto é, uma taxa de juros básica baixa e pouco volátil?

Responder a essa questão supõe descartar dois sofismas principais da explicação ortodoxa. Primeiro, não é verdade que a taxa de juros básica tem de ser mais elevada para a política monetária ser eficaz por conta do crédito direcionado. A participação do BNDES no estoque de crédito da economia, por exemplo, é de cerca de 10%, mas isto decorre dos prazos mais longos desses empréstimos. Quando se olham os fluxos, isto é, as concessões, o critério relevante para medir o quanto o crédito direcionado impediria a eficácia da política monetária, o valor cai para 3% do PIB.

Em segundo lugar, não é verdadeiro que as exigibilidades sob os passivos bancários, origem de parte importante das linhas direcionadas, façam crescer o spread nas linhas do crédito livre. Isto ocorre como estratégia dos bancos privados para elevar a rentabilidade e não por razões de compensação. Ou seja, as taxas de lucro dos bancos brasileiros são sabidamente superiores àquelas da média nos demais países desenvolvidos e em desenvolvimento. Assim, haveria espaço para os spreads caírem se o oligopólio bancário brasileiro praticasse taxas de juros mais moderadas, independentemente do crédito direcionado.

Para se construir um sistema de financiamento de longo prazo no Brasil, com participação significativa, mas não exclusiva, do setor privado, a primeira tarefa antes de desmontar o atual arranjo seria resolver o problema da magnitude e volatilidade da taxa de juros básica.

Para tanto, haveria desde logo que atacar as consequências da abertura financeira geral e irrestrita. Esta última, associada à inconversibilidade do real, implica numa elevada volatilidade dos fluxos de capitais em direção à nossa economia. Assim, os ciclos de liquidez global se transmitem de forma ampliada à taxa de câmbio e aos preços dos ativos exigindo um manejo recorrente da taxa de juros básica para atenuar a flutuação desses preços e, em última instância, da própria inflação.

Se a volatilidade está diretamente associada à inconversibilidade do real e à abertura financeira, o patamar da nossa taxa de juros está amplamente determinado pelas características da dívida pública. E não se trata do tamanho dessas últimas, pois os estudos comparados não estabelecem uma correlação entre o primeiro e as taxas de juros.

Dinheiro Vamos transferir para o exterior a demanda de crédito? (Foto: Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas

Dito de outra maneira: há muitos países com dívidas mais elevadas e taxas de juros mais baixas. Assim, a razão essencial residiria no seu caráter de curto prazo e na indexação financeira. Aproximadamente 75% da dívida pública brasileira tem menos de cinco anos de prazo. Todavia, o mais importante é que cerca de um terço está indexado na taxa de juros do overnight. Isto reduz sobremaneira o efeito riqueza das variações da taxa Selic e dá poder excessivo aos rentistas, para os quais aumentos dos juros não produzem perdas, só ganhos.

Transitar de uma taxa fixa e favorecida, a TJLP, para uma taxa determinada no mercado, a TLP, significa lidar com juros mais altos e voláteis. Qual pode ser o efeito desta mudança sobre a decisão de investimento?

Em primeiro lugar, excluir projetos de investimento cuja rentabilidade seja inferior à desta nova taxa. Curiosamente, estes mesmos projetos seriam viáveis se financiados nos mercados financeiros internacionais, o que implicará o deslocamento da demanda de crédito de longo prazo para o exterior.  A volatilidade é outro complicador e não se trata de que, uma vez contratado o financiamento, a taxa seja fixa. Como a decisão de investir é prospectiva, ela se torna muito pró-cíclica, ou seja, em momentos de auge e de queda dos juros é excessivamente estimulada, deprimindo-a demasiadamente no descenso do ciclo.

A volatilidade terá outras implicações importantes sobre o balanço do BNDES, ampliando seus riscos. De um lado, o banco captará recursos a prazo de cinco anos, com taxa de juros variável a cada momento. De outro, emprestará a uma taxa fixa e em prazos superiores, que podem alcançar vinte e cinco anos no caso dos grandes projetos.

Administrar esse descasamento terá implicações, por exemplo, sobre a alavancagem, reduzindo-a, como forma de aumentar a cobertura dos riscos com o capital próprio. A solução possível para dirimir este problema seria a securitização dos créditos e sua venda no mercado. Todavia, isto não elimina os riscos apontados, apenas os transfere. Quais agentes os bancariam num sistema financeiro com mercados secundários atrofiados ou inexistentes?

O que dizer do argumento sobre o caráter fiscal deletério do crédito direcionado, incluindo o do BNDES? Aqui reaparece uma questão de fundo: o subsídio depende do diferencial de taxa de juros. Logo, ele seria elevado porque a TJLP é baixa ou porque a SELIC é alta?

Esta questão mais geral se coloca para os aportes recebidos do Tesouro. Para os fundos parafiscais (FAT e PIS-PASEP), remunerados com base na TJLP, a abordagem tem de ser diferente. Remunerá-los à base da TJLP implica a sua descapitalização? Ou exige aportes do Tesouro para que cumpram as funções para as quais foram criados?

Exceto para o período entre 2011 e 2015, no qual a TJLP foi negativa em termos reais, a resposta é não. Por outro lado, remunerar a taxas de juros de mercado recursos de origem fiscal destinados ao seguro desemprego e ao abono salarial soa como uma excessiva financeirização desses fundos. Assim ressalvada a manutenção do valor real e a necessidades de desembolso, o uso pelo BNDES parece legítimo.

Para além da discussão do subsídio, o impacto fiscal das atividades do BNDES merece ser examinada de outras duas perspectivas. Primeiro, há um efeito indireto da ação anticíclica da atuação da instituição, como dos outros bancos públicos, na sustentação da renda e, portanto, da arrecadação fiscal. Em segundo lugar, o BNDES é uma empresa rentável e gera dividendos para o Tesouro, logo o impacto fiscal precisa ser considerado em temos líquidos. Assim, de 2006 a 2016, o Tesouro aportou ao BNDES cerca de 665 bilhões de reais, a preços de 2016. Mas no mesmo período, recebeu a título de dividendos um montante de 105 bilhões. A consideração deste valor reduziria substancialmente os subsídios do Tesouro no seu relacionamento com o BNDES.

À luz do analisado neste artigo, a proposta do governo Temer de substituir a TJLP por uma taxa de mercado soa como um salto no escuro. É possível e desejável que o setor privado se responsabilize por uma parcela maior do financiamento de longo prazo no Brasil. Mesmo se ocorresse, o BNDES ainda teria um papel decisivo na estruturação e financiamento dos grandes projetos e naqueles de maior risco, necessitando de um funding especial. Nesse contexto o mais equivocado é tentar reformular o sistema sem o mínimo de pré-condições para sua viabilidade: uma taxa de juros baixa e estável e um mercado de capitais razoavelmente desenvolvido.

* Professor Titular do Instituto de Economia da UNICAMP

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