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Faca no pescoço

Os donos do dinheiro fecham os olhos para os desmandos de Bolsonaro, enquanto tentam enquadrar Lula

Lula, em Belo Horizonte, reforça o compromisso com a redução da miséria, a geração de oportunidades e a retomada do crescimento. O mercado financeiro alimentou o boato de que Henrique Meirelles assumiria o Ministério da Economia - Imagem: Ricardo Stuckert e Nelson Almeida/AFP
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Tenham paciência”, pediu o ex-presidente Lula em reunião com representantes de movimentos sociais, economistas e banqueiros em São Paulo, na segunda-feira 10. Instado pelo chamado mercado a revelar nomes do futuro ministério, caso vença as eleições, e a abraçar a agenda neoliberal, o petista desabafou: “A imprensa me cobra, quer saber do ministro da Economia, mas isso acontece desde 1989. Só se eu fosse bobo indicaria um ministro antes de ganhar as eleições”.

Pressões abertas e veladas de agentes do mercado e cobranças enviesadas por parte da mídia reeditam agora, de forma mais incisiva, a chantagem constatada no primeiro turno, com intensa participação dos meios de comunicação. Na sexta-feira anterior à eleição, a revista Veja deu como certa a escolha do ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles para o Ministério da Economia, no caso de uma vitória petista. Segundo o semanário, a indicação seria anunciada nas próximas horas. A fake news foi desmentida no mesmo dia e é discutível se contribuiu para forçar o segundo turno, mas deve ter proporcionado ganhos especulativos para poucos. Também se especulou a respeito de uma versão da “Carta aos Brasileiros” de 2002 direcionada ao agronegócio, que apoia em peso Jair Bolsonaro. Integrantes da campanha petista repelem a ideia (na quarta-feira 12, Lula lançou uma missiva aos cristãos, na qual defende a liberdade religiosa, forma de espantar os boatos sobre sua intenção de fechar igrejas e templos).

A “notícia” sobre Meirelles ministro foi claramente um hedge, ou proteção de parte do mercado financeiro, diz um operador que prefere manter o anonimato. Existia a leitura de que, em um segundo turno, haveria condições mais propícias para pressionar Lula a adotar a pauta liberal e uma vitória petista no primeiro turno seria, portanto, ruim aos interesses da Faria Lima. “Então, o que o mercado fez? Vazou notícia falsa, a Bolsa subiu, os grandes investidores venderam suas posições com o preço em alta, os pequenos compraram a ideia de que seria o Meirelles e a turma da grana ficou líquida para, na segunda-feira, não ter dor de cabeça no caso de Lula ganhar no primeiro turno”, disparou o profissional.

O mercado “não entendeu nada”, diz um empresário paulista. “Esta eleição não é sobre regra fiscal, é sobre costumes”

A presunção dos agentes do mercado de que um segundo turno era uma oportunidade caracteriza, contudo, um erro de previsão grosseiro. Os investidores achavam que, no dia seguinte ao da divulgação do resultado do primeiro turno, estariam à mesa para discutir a regra fiscal com a chapa Lula-Alckmin. “Eles não entenderam nada. O que se estava discutindo na segunda-feira? Satanismo. Porque essa eleição não é sobre regra fiscal, é sobre costumes”, disse um empresário que participou do encontro do candidato do PT com o Grupo Esfera, na terça-feira 27 de setembro, sob a condição de que seu nome não seria divulgado. “Ninguém vai ganhar a eleição prometendo regra fiscal. Foi isso o que eles não entenderam.”

Presumir que Lula estaria mais inclinado a aceitar as posições do sistema financeiro e do empresariado sobre a questão econômica foi um equívoco, por ao menos três motivos. Em primeiro lugar, como ressaltou a fonte acima, em nenhuma eleição os candidatos prometeram regras fiscais. Em segundo, o que costuma ocorrer em segundos turnos é o contrário: uma corrida para acenar com mais benesses e maior expansão dos gastos. As promessas de Bolsonaro, de concessão de 13º salário do Auxílio Brasil para mulheres chefes de família e a de Lula, de isenção de Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais, foram assumidas pelos candidatos logo após o resultado do primeiro turno. Terceiro ponto: presumir que o prolongamento da ­disputa iria forçar uma negociação sobre os temas econômicos mostrou-se um engano também porque o ex-presidente tem dito, aos que o cercam e em público, que aumentar o salário mínimo, acabar com a fome e com o teto de gastos são pontos inegociáveis. Lula diz estar convencido de que será preciso tomar atitudes que vão desagradar ao mercado e à imprensa, e que em um novo mandato, na situação desastrosa herdada de Bolsonaro, haverá necessidade de arrojo, de fazer diferente.

A campanha de Lula descarta a divulgação de uma carta ao agronegócio nos moldes da missiva endereçada aos cristãos que veio a público na quarta-feira 12 – Imagem: Wenderson Araújo/Sistema CNA/Senar e Carolina Antunes/PR

A história divulgada por integrantes do sistema financeiro, empresários e mídia, de que o petista não tem sido claro quanto à agenda econômica, não corresponde às evidências. No encontro com o Grupo Esfera, entre outros, o ex-presidente expôs de modo afirmativo e claro as suas proposições, com ênfase naquelas que considera inegociáveis, relacionadas acima. Como costuma acontecer nesse tipo de encontro, os participantes não escutam o que não querem escutar, e ele não falou o que eles queriam ouvir. “Ele explicou com muita clareza. Ali a agenda econômica ficou mais clara, mais transparente, do que em todas as outras oportunidades”, afirma o empresário. Lula relembrou que fez superávit fiscal em todos os anos do seu governo e o Brasil foi o único país a atingir esse resultado naquele período. Em consequência, a dívida pública diminuiu de 60,4% para 39,2% do PIB entre 2002 e 2010, destacam os economistas Eduardo Fagnani e Guilherme Mello, da Unicamp, e Gerson Gomes, do Centro de Altos Estudos do Brasil para o Século 21, no livro Crescer e Distribuir É Possível! Confrontando a Narrativa Golpista Sobre a Economia e o PT.

“Vocês ficaram o tempo todo brigando pela independência do Banco Central. Não é aceitável que, para controlar a inflação, o presidente do BC coloque os juros onde ele quiser, sem observar a situação do emprego e da renda. O Meirelles tinha que participar comigo das conversas para discussão dos temas de emprego e renda. E eu vou querer conversar com esse rapaz (o atual presidente do BC) sobre emprego e renda”, disse o candidato à plateia. E acrescentou: “Vocês se preparem, os bancos públicos vão voltar”. Nada disso mudou, porém, as obsessões do próprio mercado em ter no Ministério da Fazenda um Henrique Meirelles ou um Marcos Lisboa, secretário de Política Econômica do primeiro mandato petista. É o pedido de sempre.

Lula não fará uma carta ao agronegócio nem abrirá mão dos compromissos com o combate à fome, dizem aliados

A respeito de como a campanha de Lula pretende reagir às crescentes pressões do mercado e até onde é aceitável ceder, Mello, colaborador do programa de governo, aponta outra perspectiva. “Não é uma questão de responder às pressões do mercado. O programa de governo e as diretrizes estão sendo lançados e se mantêm. O que a gente está fazendo agora é incorporar as proposições dos candidatos que decidiram nos apoiar no segundo turno e vêm dando importantes contribuições para o nosso programa. Agregar propostas e ideias novas. Continuamos fazendo mesas de diálogo”, sublinhou. “Há muitos economistas, inclusive do PSDB, nos apoiando. O nosso compromisso é incorporar e melhorar as propostas com base no que os candidatos estão apresentando nessas mesas de diálogo. Não há uma discussão sobre como reagir a pressões do mercado. Não existe o mercado, mas agentes, que pensam diferente, muitas vezes.” Os economistas tucanos mencionados por Mello são Pedro Malan, Arminio Fraga, Edmar Bacha e Pérsio Arida, que declararam voto em Lula no segundo turno. Destaca-se também a adesão de André Lara Resende, da equipe do Plano Real.

O PT trabalha para ampliar o arco de aliança e derrotar Bolsonaro nas urnas. O partido reconhece que a senadora Simone Tebet, apoiadora no segundo turno, tem bons programas de educação e de transferência de renda, assim como Ciro Gomes elaborou boas propostas de transferência de renda e de renegociação de dívidas. A ideia é discutir e incorporar aquilo que puder enriquecer a pauta.

A tentativa da mídia de submeter Lula aos desígnios do mercado inclui até um esforço para redimir o governo do péssimo desempenho na área econômica. A ­Folha de S.Paulo, no editorial intitulado “É a economia, Lula”, defende que o panorama econômico não corresponde a um cenário de terra arrasada e sublinha o “otimismo com o futuro imediato”. Isso, cabe ressaltar, diante do retorno da fome em proporções oceânicas, do desemprego elevado crônico, da precarização da maior parte dos postos de trabalho novos, do rebaixamento do Brasil no ranking dos paí­ses com os maiores PIBs, da debandada de multinacionais instaladas há décadas no País e dezenas de outros indicadores de uma economia que segue ladeira abaixo. O desempenho que tanto anima o jornal paulista consiste em um espasmo de recuperação nos últimos meses, à ­custa de anabolizantes que devem provocar um rombo nas contas públicas de 430 bilhões de reais, ou 4,2% do PIB, nos cálculos dos economistas Manoel Pires e Bráulio Borges, do instituto FGV-Ibre.

Malan, Fraga, Arida e Bacha: tucanos avessos ao desenvolvimentismo declaram voto no petista – Imagem: Roque de Sá/Ag.Senado, Walter Craveiro/Flip, Arquivo/Inst. Teotônio Vilela e TV Cultura

De acordo com o IBGE, o IPCA não teria deflação nos últimos três meses se o preço da gasolina não fosse reduzido pela desoneração imposta aos estados pelo governo federal. Com grave prejuízo, é importante acrescentar, da receita tributária destinada à saúde e à educação. “As trajetórias de itens importantes mostram esgotamento da renda e abertura da economia. Em setembro, descontados os efeitos dos impostos, a contribuição dos preços livres teria sido de 0,20% e não de 0,02%. Nos preços administrados, em vez de queda, teria ocorrido uma contribuição positiva de 0,13%”, calcula o economista-chefe do Banco Fator, José Francisco Lima Gonçalves.

Não arredar pé da remoção do teto de gastos e adoção de outra regra fiscal é condição mínima para viabilizar um governo que não precise depender a todo momento da aprovação, pelo Congresso, de Proposta de Emenda Constitucional para tapar rombos, esclarece a economista Júlia Braga, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense. Apesar das PECs que permitiram estouros, com as situações excepcionais devido aos efeitos econômicos da pandemia e da guerra na Ucrânia, o teto de gastos está em pleno vigor, observa a economista. Para acontecerem esses estouros, diz, é preciso um processo de negociação e aprovação no Congresso.

Sem cobranças, Guedes e companhia aprofundam a farra fiscal no apagar das luzes

Péssima para as políticas públicas, a regra do teto de gastos parece justificar-se precisamente por esse efeito, pois seu papel no funcionamento da economia é pernicioso. “Acho que os agentes do mercado têm uma visão equivocada a respeito da importância dessa regra para a economia. Ao contrário do que eles pensam, nem o prêmio de risco, nem a taxa de juros, nem a taxa de câmbio dependem dela”, sublinha Braga. Seu efeito, diz, é um crescimento recorrentemente abaixo da média mundial. “Mesmo neste ano, com o ciclo eleitoral, a alta prevista não é nada excepcional e não ultrapassa a média mundial.”

Segundo Vinícius Amaral, consultor legislativo no Senado, “o problema central da elaboração do orçamento da União tem sido, especialmente desde a pandemia, a extrema rigidez do teto de gastos. O congelamento de despesas imposto, já desarrazoado quando de sua criação, tornou-se impraticável diante das demandas de maior atuação estatal”. Por isso, diz, houve sucessivas emendas constitucionais para ajustar o teto. Esses ajustes têm sido, no entanto, precários e provisórios, pois não alteram a dinâmica básica em operação desde a instituição da regra, de contínua compressão das despesas discricionárias, especialmente investimentos, por um conjunto de gastos obrigatórios que, por sua natureza intrínseca, aumentam acima da inflação, com destaque para a Previdência. “Calculamos que as despesas discricionárias do Executivo para 2023 estarão, em termos reais, 63 bilhões de reais abaixo do patamar de 2016, ano-base do teto de gastos, o que representa queda real de 35%. Isso significa um corte brutal nos serviços públicos”, contabiliza Amaral.

Paulo Guedes procura uma rota de fuga – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR

A confluência de teto de gastos e orçamento secreto agrava a questão crônica das distorções do orçamento. Segundo o consultor, essa combinação produziu as expressivas reduções verificadas no Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2023 em relação ao orçamento deste ano, como os cortes de 59% do programa Farmácia Popular e de até 97% em ações da assistência social, assim como levou os investimentos a patamares mínimos históricos. “Podemos dizer que o efeito do teto é reduzir o tamanho do bolo do orçamento disponível, enquanto a reserva para as emendas de relator ocupa uma parte importante desse bolo reduzido.”

O potencial de má utilização das emendas de relator ou orçamento secreto foi dissecado em um vídeo de Tebet que viralizou nas redes sociais. A emedebista disse que as emendas de relator podem ter sido usadas no “maior esquema de corrupção do planeta Terra”. A senadora explicou quais são as etapas da tramitação dessas emendas no Congresso. Disse que as cidades recebem o recurso sem menção da “autoria” da liberação da verba e, com isso, não é possível saber qual congressista destinou o dinheiro. Reivindicou autonomia do Ministério Público Federal para investigar o caso e citou, entre outros exemplos, o de uma cidade do Maranhão, com cerca de 20 mil habitantes, onde foram feitos mais exames de HIV do que em toda a cidade de São Paulo, que tem 12 milhões de moradores. Em outra localidade, há registro da extração, em um ano, de 540 mil dentes, o que significaria a remoção de 14 dentes por indivíduo, inclusive em recém-nascidos.

Enquanto a corrupção corre solta, dentro e fora do governo, especuladores e outros aproveitadores de oportunidades de lucros rápidos e fabulosos se refestelam com a política econômica em vigor. Bolsonaro insiste em privatizar a Petrobras e o ministro da Economia, Paulo Guedes, acaba de sugerir a venda das praias do País, “um negócio de 1 bilhão de dólares que o Brasil está deixando de ganhar”, enfatizou o Posto Ipiranga, que a esta altura parece trabalhar com combustível adulterado e agora busca uma rota de fuga em caso de derrota de Bolsonaro. Guedes cava uma indicação para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Faca no pescoço”

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