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É a economia, estupidos

A gestão incompetente e dedicada a beneficiar privilegiados armou uma bomba eleitoral para o governo

Quando os dois aí do alto ficarem desempregados, podem tentar a sorte nas comédias-pastelão de Hollywood. Os milhões afetados por suas decisões não têm a mesma opção e são obrigados a encarar filas quilométricas em busca de uma vaga que, na maioria das vezes, paga mal - Imagem: Edu Andrade/ME e Danilo Verpa/Folhapress
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A crise da economia, arrasada pela administração incompetente do governo em meio a um quadro internacional complicado, foi determinante no resultado das pesquisas eleitorais mais recentes, com projeção de vitória de Lula no primeiro turno e estagnação da candidatura Bolsonaro. Segundo o Datafolha, 53% dos eleitores dão muita importância à economia na hora de escolher o candidato, 24% acreditam que esse fator influencia um pouco a decisão e apenas 21% não o consideram importante na sua opção de voto. A vida está pior para 52%, acima dos 46% identificados em março. Uma parcela de 66%, ou dois em cada três eleitores, avalia que a situação econômica do País piorou nos últimos meses. Se a eleição fosse hoje, Lula alcançaria no primeiro turno 54% dos votos válidos, contra 30% de Bolsonaro, aponta a pesquisa.

A inflação, o desemprego e os juros, há dois anos na casa de dois dígitos, pioraram muito a vida dos trabalhadores e das empresas, em especial das pequenas e médias. Nos 12 meses até abril, o IPCA acumulou 12,13%, maior patamar desde outubro de 2003. O poder de compra caiu um terço em cinco anos e a destruição, pelo governo, da rede de proteção social e de todos os mecanismos de alívio da alta dos preços causou enorme sofrimento, sobretudo para os mais vulneráveis. Os maiores aumentos recaíram nos produtos essenciais, como gás de cozinha, alimentos, energia elétrica e aluguel. Uma parte dos salários subiu pouco, a outra ficou sem aumentos, o que piorou o efeito dos preços altos sobre o orçamento familiar. A desorganização causada pela gestão caótica da economia, direcionada de modo exclusivo ao atendimento tanto dos interesses dos grandes grupos econômicos quanto das demandas paroquiais de políticos e apadrinhados, impede o governo de capitalizar politicamente a melhora de alguns indicadores, em consequência da retomada das atividades possibilitada principalmente pelo aumento da vacinação contra a Covid-19. A melhora ocorre, entretanto, em simultâneo a um novo aumento do número de casos, com possibilidade de formação de uma nova onda de contágio, segundo especialistas.

A RUÍNA ECONÔMICA PAVIMENTA O CAMINHO PARA A VITÓRIA DE LULA. A ESTA ALTURA, NO PRIMEIRO TURNO

Os dados mostram uma arrecadação recorde de 195 bilhões de reais em abril. Entre fevereiro e abril, a taxa de desocupação continuou em dois dígitos, 10,5%, mas foi a menor para o período desde 2015. O alívio não deve, entretanto, ser duradouro. O emprego tende a perder dinamismo no segundo semestre, estimam analistas, em consequência da combinação de aperto monetário, incertezas políticas internas e desaceleração global.

O risco de desabastecimento de óleo diesel no segundo semestre expõe tanto os efeitos nefastos do entreguismo e da ideologização da administração da economia quanto a grande incompetência do governo, e demonstra como o fator econômico passou a ser o principal cabo eleitoral da oposição. A Petrobras alertou, na sexta-feira 27, o Ministério de Minas e Energia e a Agência Nacional de Petróleo sobre o perigo de falta, no segundo semestre, de diesel, combustível utilizado pelos caminhões que movimentam 70% do transporte de cargas, justo no momento de escoamento da safra agrícola. Acrescente-se que a produção agropecuária será a mais cara dos últimos anos, devido à decisão imprudente do governo de fechar as fábricas de fertilizantes e apostar todas as fichas no mercado, isto é, na importação, um canal bloqueado pela guerra e que estancou as exportações russas daquele insumo, elevou seus preços e trouxe risco às lavouras brasileiras.

O risco de faltar diesel afeta os caminhoneiros e o escoamento da safra agrícola – Imagem: Lucas Ninno/GOVMT

“A situação é dramática e existe mesmo a possibilidade de o Brasil ter problemas. As importadoras tentam fechar contratos com outros fornecedores, porque está difícil acertar importações dos EUA, e isso explica o aumento interno do preço do diesel, pois ele sobe nos mercados internacionais”, dispara a economista Júlia Braga, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A Petrobras fez o programa de desinvestimento, vendeu a distribuidora BR e refinarias e o País perdeu os instrumentos que havia para represar um pouco os preços em momentos extremos. Por esse motivo, apenas a estatal cobrar mais barato não resolve, acrescenta Braga. “Como há um excesso de ­demanda por combustíveis na ponta, mais no sentido da restrição da oferta, mesmo que a Petrobras cobre mais barato, pode acontecer de as refinarias ou distribuidoras simplesmente aumentarem suas margens de lucro e não repassarem a redução dos preços adiante, ao consumidor final.”

João Antônio de Moraes, diretor do Sindipetro unificado de São Paulo e ex-coordenador da Federação Única dos Petroleiros, concorda com Braga. “Estava previsto, no governo Dilma, dobrar a produção da refinaria Abreu e Lima, de Pernambuco, que é praticamente uma fábrica de óleo diesel. Ocorre que a opção da Petrobras por privilegiar os acionistas, que embolsaram quase 100 bilhões de reais em lucros e dividendos em 2021, retirou os recursos para os investimentos que garantiriam essa ampliação. Se isso tivesse ocorrido, o Brasil não estaria hoje ao sabor do mercado internacional, pois produziríamos praticamente a totalidade do óleo diesel aqui”, descreve Moraes.

O RISCO DE FALTAR COMBUSTÍVEIS É REAL E AFETA AINDA MAIS AS PERSPECTIVAS DE CRESCIMENTO NO SEGUNDO SEMESTRE

O País tem estoque de diesel para apenas um mês, depende em 20% da importação, mas as soluções do governo parecem limitar-se às trocas de comando na Petrobras e no Ministério de Minas e Energia e ao encaminhamento da privatização da empresa, com o auxílio do presidente da Câmara, Arthur Lira, que propôs a venda das ações da estatal em poder do BNDES. No Congresso, a Câmara e o Senado não se entendem em torno de um caminho para baixar os preços dos combustíveis e abrandar a inflação.

Com decisões guiadas apenas por uma preocupação eleitoreira e pela ansiedade em propiciar a uns poucos privilegiados negócios inconfessáveis e danosos ao ­País, o governo foi, porém, eficiente ao entregar a economia por completo ao domínio do dólar, com efeitos devastadores. Há um grande número de preços monitorados para serviços públicos e serviços privados de utilidade pública que, apesar de não serem negociáveis no exterior, são indexados contratualmente por um índice de preços em particular, que é fortemente afetado pela taxa de câmbio, mostra trabalho de Júlia Braga e do colega Ricardo Summa, professor de Economia da UFRJ.

Muitos brasileiros dependem da caridade para se alimentar. Item de primeira necessidade, o gás de cozinha virou artigo de luxo, entre tantos outros – Imagem: Lúcio Bernardo/Ag.Brasília e Pedro Ventura/Ag.Brasília

Além disso, no caso dos itens exportáveis, principalmente alimentos e bens industriais, o Brasil tornou-se uma economia cada vez mais aberta, na qual a grande maioria dos produtores toma por base preços internacionais em dólar, não as condições internas do mercado e da economia, para estabelecer as margens de venda domésticas. A complicação é que esses preços externos são absolutamente alheios ao nível e às condições da economia brasileira. Outro problema, acrescenta Braga, é que os exportadores também cobram, quando vendem no mercado interno, um preço equivalente ao que podem cobrar no exterior, só que convertido para a moeda doméstica. “Se ele pode exportar, não tem por que vender internamente a um valor inferior. Com a mudança da regra de preços da Petrobras, isso se tornou verdadeiro também no caso dos combustíveis”, destaca a economista.

Alheio a qualquer outra preocupação, ao que parece, além de se manter no cargo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse no Fórum Econômico Mundial, em Davos, que o Brasil não quer “dinheiro esperto”, isto é, especulativo. Isso está certo, mas o ministro, além de se omitir quanto ao seu papel central no desastre econômico brasileiro, esconde também o fato de que houve uma opção por tornar a economia mais vulnerável. Segundo Guedes, cerca de 90 bilhões de dólares de capital especulativo deixaram o Brasil em dois anos e meio, mas isso parece ter menos a ver com expectativas em relação ao “dinheiro esperto” do que com a posição do real na hierarquia monetária e suas implicações para as taxas de câmbio e de juros e a política econômica dos países periféricos, tema de pesquisa desenvolvida pelos economistas Bruno Martarello De Conti e Daniela Magalhães Prates, do Instituto de Economia da Unicamp, e Dominique Plihon, da Université Paris XIII.

O GOVERNO FOI EFICIENTE EM ENTREGAR A ECONOMIA AO DOMÍNIO DO DÓLAR, COM EFEITOS DEVASTADORES

Na hierarquia monetária internacional, o dólar estadunidense está no topo, seguido pelo euro e demais moedas centrais como o iene, a libra e o franco suíço. As moedas periféricas ocupam a posição mais baixa. Dólar, iene, libra e franco­ suíço­ são considerados divisas, isto é, constituem moedas nacionais aceitas internacionalmente. As moedas nacionais dos países periféricos não têm, contudo, essa força, alcançam no máximo uma aceitação externa em âmbito regional. Dado que as moedas periféricas e os ativos nelas denominados não possuem a mesma liquidez de uma divisa, elas são demandadas pelos agentes externos unicamente pela rentabilidade que oferecem. Diante da propensão a uma grande volatilidade das taxas de câmbio, as autoridades monetárias dos países periféricos veem-se diante de duas atitudes possíveis. A primeira delas, recomendada pelo FMI e outras instituições multilaterais, é deixar a taxa flutuar livremente, “uma negligência que resulta em grandes custos para a economia nacional”, sublinham os autores do trabalho. A outra atitude possível é procurar neutralizar essa volatilidade intrínseca das taxas de câmbio. Entre 2008 e 2010, um grande número de países periféricos, inclusive o Brasil, foi capaz de colocar em prática políticas anticíclicas para enfrentar os efeitos da crise financeira global, favorecidos, entre outros motivos, pelo fato de os problemas terem origem nos EUA e na Europa.

Uma das principais causas do fracasso da gestão da economia por Bolsonaro e Guedes é a redução brutal dos investimentos no País, com conse­quências arrasadoras para os indivíduos, principalmente os pobres, dependentes do gasto público e da proteção social. Em 2021, o investimento do governo nas esferas federal, estadual e municipal totalizou 2,05% do PIB, o menor índice desde 2017, quando chegou a 1,94% do PIB, taxa mais baixa desde 1947, destacou o economista Manoel Pires, pesquisador associado do IBRE-FGV, em artigo publicado no Observatório de Política Fiscal. O fator determinante para o resultado foi o desempenho dos investimentos das empresas estatais, que atingiram o menor valor da série histórica. “O que surpreende nessa queda é a baixa taxa de execução dos investimentos em relação ao que estava programado para o ano. A Petrobras, que responde pela maior parte do orçamento dos investimentos, executou apenas 38% do planejado”, ressalta Pires. Historicamente, diz, os porcentuais de aplicação tendem a ser superiores a 90%. O investimento líquido da depreciação do governo geral, por sua vez, “segue negativo desde 2015, e atingiu uma perda de estoque de capital de 30,9 bilhões de reais em 2021, o equivalente a 0,36% do PIB”.

Diante da escalada dos preços dos alimentos, melhor esperar a hora da xepa – Imagem: Célio Júnior/Prefeitura de Maceió

As perspectivas não são animadoras. O fim do lockdown na China reduziu um pouco o pessimismo quanto ao desempenho da economia mundial, mas também fez o petróleo subir para 120 dólares o barril e turbinou as expectativas inflacionárias. A alta dos preços na Zona do Euro atingiu o recorde de 8,1% e na Inglaterra ressurgiram em algumas cidades os bancos de alimentos para doação aos mais pobres. A programação de altas dos juros nos Estados Unidos não promete trégua às economias como a do Brasil.

No País, projeta-se um aumento do PIB em razão da reabertura da economia, mas as expectativas de juros altos e de trégua da inflação seguida de novas altas não trazem tranquilidade. As taxas de títulos públicos com vencimento em dez anos, importantes indicadores do mercado financeiro, foram para o espaço e só estão abaixo daquelas do Sri Lanka, Turquia, Egito, Uganda, Quênia, Paquistão e Cazaquistão, em uma amostra de países, revela um levantamento do especialista André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos. Por essas e outras, o Centrão acusa Guedes de “sabotar” o projeto de reeleição de Bolsonaro e tenta forçar o governo a uma guinada nas políticas de reajuste de combustíveis, que provoca o efeito de rastilho de pólvora nos demais preços. O ex-capitão e o “Posto Ipiranga” até hoje não entenderam a célebre lição de 20 anos atrás de James Carville, assessor de Bill Clinton, por isso vale a pena repeti-la: “É a economia, estúpidos”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “É a economia, estupidos”

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